“Se tiveres para onde ir, deixa Velas”. Goreti Pereira ouviu da sua mãe muitas histórias sobre o passado na ilha e nem pensou duas vezes quando recebeu o conselho de um amigo — ainda por cima é uma pessoa que “sabe do que fala, que trabalha para as autoridades”. Fez uma mala com o essencial e, depois de convencer a colega de trabalho, chamou a filha e o genro para partirem com ela. Era já perto da 1h da manhã (2h em Lisboa) quando chegaram ao centro de acolhimento da Proteção Civil da Calheta. Continuavam na ilha de São Jorge, mas já não estavam no centro do vulcão.
“A gente estava a trabalhar quando a Goreti recebeu essa indicação. Falámos com o patrão e fomos para casa arrumar as coisas para ir. Eu arrumei uma toalha, roupa e produtos de higiene pessoal. Mais nada, não pensei em nada”, conta Nélia Couto, brasileira a viver há 12 anos nos Açores: “Nunca passei por isso. Eu até brinco: eu sei me esconder de um tiroteio, não de um sismo”.
A noite das duas cozinheiras do snack-bar Flor foi passada em branco. Eram oito pessoas num centro com capacidade para muitas mais, mas a tensão não cabia naquelas quatro paredes.
Sobretudo a de Nélia, que deixou o filho para trás, a trabalhar num hotel perto de casa. Foi, aliás, a distância dele que a fez desistir da ideia de estar longe de casa e regressar na manhã deste sábado a Velas. Só aguentou uma noite no centro e não foi por falta de condições, “que até eram boas, tinha lá colchonete, banheiro, locais onde se podia comer…”. Foi mesmo o não conseguir sentir-se segura sabendo que o filho ficara na parte mais perigosa da ilha: “Hoje de manhã ofereceram café da manhã, mas eu já não tomei, vim embora”.
“Só saio daqui agora, da minha casa, quando o vulcão explodir”, diz ao Observador por entre risos nervosos que sobram do descanso que as férias no seu Rio de Janeiro lhe deram — voltou de lá no dia 14 –, e a impotência que sente perante a força da ilha que a acolheu há muitos anos.
“A minha casa fica lá em cima no Rochedo. Ali mexe muito”
Goreti também só ficou uma noite no centro de acolhimento — levou alguma roupa, produtos de higiene e alguns sacos de comida: bolachas e rosquilhas. Ao início da tarde deste sábado regressou a Velas, mas não foi para ficar. Longe disso. Uma amiga de longa data disse que conseguia arranjar-lhe um espaço em casa de amigos, no Topo, e não olhou para trás.
“A minha casa fica lá em cima no Rochedo, aquilo que a gente chama o Caminho dos Cavalos, a seguir a Velas, pela frente da Praça de Toiros e ali tem-se sentido muito, mexe muito”, conta ao Observador. Tão depressa, diz, não voltará. Nem ela, nem a filha Rute, de 20 anos, nem o genro João, de 30 anos e natural de Lisboa: “Não é daqui”.
Mas Goreti, 48 anos, é e conhece bem a história. “Eu passei os [sismos] de 80, de 90 e alguns mais pequenos que houve, mas quem me contou o que passou, e que foi mais parecido com isto, foi a minha mãe: viveu o de 1964 e, nessa altura, foi levada para a ilha Terceira, separada dos meus avós, contava muito isso à gente. Há sempre esse fantasma”.
São sobretudo aquelas duas pessoas e a irmã que mais a preocupam: “O meu filho está na Terceira, o meu marido no Pico. Ficou a minha irmã, que vai agora comigo para o Topo, ela e o namorado é o outro casal que vai connosco”, contou já este sábado à tarde ao Observador.
“O meu marido quer ficar, é maior e vacinado. Eu vou-me embora”
Débora Dias, 38 anos, é a amiga que ofereceu casa a Goreti no Topo. Só não sai da ilha, porque ainda não sabe o que vai acontecer com a empresa para a qual trabalha. “O meu patrão ainda não deu fecho do serviço, mas eu não me vou importar com o serviço, não me vou importar com mais nada, vou acolher uns amigos, deixar os animais em segurança e só volto de vez a Velas, se voltar, a 8 ou 9 de abril”.
Os amigos de que fala é Goreti, a filha e a irmã, e os seus namorados. Com a família, Débora já não tem de se preocupar: “Já meti os meus filhos em segurança”.
Foi esta sexta-feira ao aeroporto embarcar o filho, de 21 anos, que foi para a Terceira, e depois ficou a aproveitar as últimas horas que lhe restavam com a filha mais nova, de 10 anos. Nem deu, por isso, pela falta de Goreti, que decidiu ir com Nélia para o centro da Proteção Civil. E este sábado ainda ficou mais vazia. “Custou me muito, partiu-me o coração, ver hoje a minha filha partir e eu ficar para trás. Mas sei que ela está segura com a irmã”, diz Débora Dias, horas após ter embarcado a filha de dez anos, que foi também para a Terceira.
Tanto o mais velho, como a mais nova foram para casa de outra irmã, que tem 19 anos e que vive naquela ilha com o namorado: “Estão lá os três juntos. Só eu é que fiquei. Mas se eu vir que não me estou a sentir segura vou embora, quero que o trabalho se lixe, que vá para o diabo que o carregue“.
Débora Dias tem medo de qualquer que seja o desfecho destes sismos: “Eu moro à entrada de Velas, eu estou por baixo dele, se o vulcão rebentar ou explodir, estou em perigo”. E é, por isso, que não relaxa com as explicações do marido, de 52 anos, de que isto é tudo “alarmismo”: “Ele não quer sair de casa, mas eu não me importo com ele, porque é maior e vacinado. Eu vou sozinha, para mim a vida está em primeiro lugar”.
Velas tem por estes dias metade dos habitantes, depois de muitas pessoas terem decidido abandonar o concelho, quer para a Calheta, também na ilha de São Jorge, quer para outras ilhas do arquipélago dos Açores, com destaque para o Faial e para o Pico.
O presidente da Câmara Municipal de Velas confirmou esta tarde à Lusa que “cerca de 2.500 pessoas” já saíram desde 19 de março, dia em que se registou o primeiro sismo — destas, anunciou Luís Silveira, perto de 1.500 saíram por via marítima e aérea. As restantes só mudaram de concelho, mas mantiveram-se em São Jorge.