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Ebru Yildiz

Ebru Yildiz

Sara Serpa, a cantora portuguesa que brilha no jazz dos EUA: "Se o reconhecimento levar mais pessoas a ouvir, fico feliz"

Acaba de lançar "Intimate Strangers", disco que o New York Times já selecionou como um dos 10 melhores de jazz do ano. Vive nos EUA há 16 anos e aí tem feito carreira. Em entrevista, dá-se a conhecer.

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Quando em 2005 Sara Serpa saiu de Lisboa rumo aos Estados Unidos da América, de mochila às costas e com uma bolsa de estudo para frequentar a Berklee College of Music, os sonhos eram muitos. A realidade, porém, já os ultrapassou largamente.

Hoje Sara tem quase 15 anos de carreira (o primeiro disco, Praia, saiu em 2008), tem vindo a trabalhar com alguns dos principais músicos de jazz e música improvisada dos EUA e do mundo e, vivendo em Nova Iorque, acaba de lançar o seu 11º álbum, Intimate Strangers, uma colaboração com o escritor e crítico de arte nigeriano Emmanuel Iduma.

Não foi preciso esperar muito tempo para o disco começar a receber elogios: o jornal norte-americano The New York Times já o incluiu na sua lista de melhores discos de jazz de 2021, na 8ª posição. É mais um sinal de reconhecimento de uma cantora e compositora que hoje, com 42 anos, também dá aulas universitárias nos EUA (na The New School) e é tida como um valor seguro do jazz mundial e da música mais desafiadora, improvisada e vanguardista do globo.

A capa do novo disco de Sara Serpa, ‘Intimate Strangers’

Em longa entrevista ao Observador, antes de viajar para Portugal para um concerto este domingo em formato trio na Festa do Jazz, Sara Serpa recorda como começou a cantar e a interessar-se por música. E revela que alguma insatisfação com a música clássica chegou a fazê-la equacionar outro percurso: foi já depois de estudar pintura na Faculdade de Belas-Artes durante dois anos e após concluir uma licenciatura em Inserção e Reabilitação Social que decidiu dar “uma última oportunidade à música”, indo frequentar a escola do Hot Clube de Portugal. Em boa hora o fez.

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Durante a conversa, a cantora e compositora lisboeta recordou ainda os seus tempos a estudar música nos EUA, explicou como conseguiu passar de estudante a interveniente relevante do jazz norte-americano e mundial e falou sobre como ter ido para os EUA estudar a história deste género, que se insere na “música negra”, a fez confrontar-se com o racismo, o passado esclavagista, as origens da sua família e o colonialismo português, temas que aliás tem abordado na sua música.

Este disco mais recente, Intimate Strangers, é uma criação musical que incorpora e dialoga com textos de um livro do pensador nigeriano Emannuel Iduma chamado A Stranger’s Pose, uma coleção de histórias de viagens e de pessoas em movimento, várias das quais migrantes a quem a ausência de um passaporte impede a livre circulação e entrada na Europa.

Nesta entrevista, Sara Serpa menciona ainda duas iniciativas em que está envolvida, que visam combater a sub-representação de algumas comunidades — das mulheres à população trans — no acesso a oportunidades de afirmação musical. E explica como os anos a viver nos Estados Unidos da América a fizeram começar a cantar mais com palavras (algo que não fazia antes, usando a voz como instrumento mas sem letras), por ter estabelecido uma relação quotidiana com a língua inglesa e a narrativa lírica das canções neste idioma que antes não tinha.

“Ter vindo para os EUA estudar música negra fez-me refletir sobre o colonialismo do meu país”

Começando por coisas mais recentes: lançou há dias um disco em que colabora com o escritor nigeriano Emmanuel Iduma. O que lhe pareceu especialmente interessante no trabalho, na visão, nas perspetivas do Emmanuel, que fizeram com que quisesse colaborar com ele neste Intimate Strangers?
O meu encontro com o Emmanuel foi durante um período em que estava a fazer investigação para o meu projeto Recognition, que aborda o colonialismo português e como lidar com arquivos e com memórias que não são as nossas — como lidar com esse passado no presente, também. Por isso entrámos em contacto e conversámos. Nessa altura ele também estava a fazer pesquisa sobre arquivo, sobre memória. Ficou depois a ideia e a vontade de colaborarmos, que depois se materializou através de uma comissão do John Zorn em que ele convidou-me para apresentar uma peça completamente nova no National Sawdust.

O novo disco tem "muitas reflexões sobre o que é estar em movimento" e sobre "o que são os movimentos voluntários de pessoas que podem viajar de um lado para o outro e que têm o privilégio de ter um passaporte que lhes permite fazê-lo e de pessoas cujo movimento [para chegar à Europa] é criminalizado e proibido", explica Sara Serpa

Convidei o Emmanuel, disse-lhe: olha, aqui está uma oportunidade para pormos isto em prática. Ele na altura estava a terminar o seu livro, que se chama A Stranger’s Pose. É basicamente um diário de viagens. O projeto dele era ir da Nigéria até Sarajevo e atravessar vários países africanos de carro e a pé. São muitos encontros em que ele não só é a pessoa que está em movimento como encontra várias pessoas que também estão em movimento por várias razões — mas inevitavelmente vai encontrar muitas que estão em movimento a tentar chegar à Europa. Por isso, há muitas reflexões sobre o que é estar em movimento. E sobre o que são os movimentos voluntários das pessoas que podem viajar de um lado para o outro e que têm o privilégio de ter um passaporte que lhes permite fazê-lo e das pessoas cujo movimento é criminalizado e proibido. Por isso, vai um pouco ao encontro de toda a pesquisa que venho a fazer não só sobre colonialismo mas também sobre os efeitos do colonialismo, dado que vemos hoje esta barreira entre África e Europa e esta criminalização do movimento das pessoas que tentam chegar à Europa.

Há outro lado interessante nesta colaboração: revela uma abertura a outras artes e expressões de pensamento, nomeadamente a escrita e a história. Não é algo recente no seu trabalho. Acha que um criador que esteja focado apenas na linguagem específica e técnica do seu meio será menos completo do que alguém que consiga estar aberto a diferentes áreas de conhecimento e de expressão?
Não, acho que depende muito do artista. Tento combinar no meu trabalho as minhas preocupações e as minhas paixões e penso em como as posso transmitir de uma forma que faça as pessoas refletirem sobre elas e sentirem emoções quando estão a ouvir a música. Para mim é essencial pensar em histórias, em como podemos pensar nestas histórias e em como podemos usar elementos para as amplificar. Por isso, por exemplo, no Intimate Strangers está a palavra, que é super poderosa: há muitas histórias que nos transportam para uma viagem emocional, que humanizam todos aqueles encontros e todas as situações em que muitas vezes as pessoas são incitadas a ter medo e a recear encontros com pessoas estranhas, que não se pareçam connosco, que venham de um país diferente.

Acho que há uma perspetiva muito humana na forma como o livro está escrito. Qualquer pessoa pode relacionar-se com as histórias que estão descritas no livro. Depois o meu trabalho passou por perceber como poderia contar aquelas histórias através de música. Desde o princípio pensámos ter o Emmanuel a participar na performance, a contar as histórias. Depois como o Emmanuel também estava a fazer um projeto sobre imagem, sobre como as imagens também contam histórias, pareceu pertinente incluirmos componentes visuais na performance. Por isso temos várias projeções de imagens durante o concerto que vão acompanhando a história que é contada.

"Tendo vindo para os EUA há 15 ou 16 anos estudar música negra americana — jazz —, é inevitável ser confrontada com a história do jazz, com o racismo, com o período de escravatura. E é impossível não pensar em Portugal como um dos primeiros países que beneficiou disto e que fez o tráfico negreiro durante imensos anos. A minha perplexidade é tão pouco ser ensinado em Portugal e tão pouca consciência histórica e política ser transmitida às pessoas que estão a aprender a história do seu país."
Sara Serpa

Há pouco falava do projeto Recognition. O disco que esse projeto originou [Recognition, 2020] também já trazia reflexões sobre o colonialismo português em África. Aliás, começava logo com um tema que aludia à lei do indigenato. Ainda é preciso falar deste passado, trazer novas perspetivas sobre este passado histórico? O que falta ainda dizer, falar, discutir sobre isto que a impele a abordar o assunto na música?
Posso falar da minha experiência pessoal: tendo vindo para os Estados Unidos há 15 ou 16 anos estudar música negra americana — jazz —, é inevitável ser confrontada com a história do jazz, com o racismo, com o período de escravatura. E é impossível não pensar em Portugal como um dos primeiros países que beneficiou disto e que fez o tráfico negreiro durante imensos anos. Quando comecei a estudar mais sobre os movimentos sociais e históricos por detrás do jazz, a minha perplexidade resultou de tão pouco ser ensinado em Portugal e tão pouca consciência histórica e política ser transmitida às pessoas que estão a aprender a história do seu país.

Para mim, o projeto Recognition serviu para colmatar as lacunas que existiam no meu próprio conhecimento. Ainda mais tendo família… os meus pais nasceram em Angola, o meu avô nasceu em Angola. Existia todo este passado sobre o qual nunca tinha tido muita informação. Apercebendo-me também dos silêncios que há, dos traumas que há, acho que é importante haver consciencialização, conversas, projetos. Às vezes a arte permite-nos abordar todas estas questões de uma forma que faz as pessoas refletir. Fala-se muito de mudanças coletivas mas acho que muitas vezes os processos de mudança são individuais e pessoais, surgem quando nos confrontamos com uma história, com um projeto ou com um filme que tem um determinado impacto em nós e nos faz pesquisar mais sobre um assunto e aprofundar conhecimento.

Tem mais de dez álbuns editados. Mas para não sermos imprecisos: com este Intimate Strangers, quantos discos já lançou?
Acho que são onze discos.

Falávamos de preocupações que tem e que passam para a música que faz. Mas do que li e percebi, essas preocupações e esse interesse pelo mundo, por questões sociais, coletivas, também marcaram os seus estudos fora da música. A sua licenciatura foi em Reabilitação e Inserção Social, certo?
Sim. Isso foi muito antes do jazz, antes sequer de pensar que iria ser músico de jazz. E foi aí, na realidade, que comecei a ser exposta a realidades muito diferentes da que vivi e experienciei — e que me abriram portas para ver como há tantas pessoas que vivem o mundo de forma diferente. Seja por terem deficiência, seja por questões de imigração, seja por questões familiares. O meu último trabalho [no âmbito da licenciatura] na realidade foi sobre a situação das mulheres refugiadas em Portugal e abriu-me os olhos para uma realidade que não conhecia. O que concluo mais tarde é que ter estudado jazz e ter vindo para os Estados Unidos estudar música negra fez-me refletir sobre a história do meu país e faz-me constantemente questionar o meu papel como mulher e portuguesa nos Estados Unidos, a aprender uma forma de arte musical que tem raízes aqui, que tem uma herança muito rica e que não se pode simplificar só por escalas e acordes e informação musical. Tem muito mais do que isso.

Este Intimate Strangers foi selecionado pelo The New York Times como um dos melhores álbuns de jazz do ano. Imagino que tenha sido algo que a tenha deixado feliz, ainda mais tendo o álbum saído numa fase tão posterior do ano, já em dezembro. É mais um reconhecimento, tem-no tido bastante nos quase 15 anos que já leva de carreira. Ficou feliz? Pareceu-lhe inesperado, por o disco ter saído já em dezembro?
Deixou-me feliz porque é um disco bastante experimental, não é mainstream, não é ‘entertaining‘. É um álbum que requer muito do ouvinte, requer que seja ouvido com atenção e com cuidado. Isso deixou-me feliz: que esse reconhecimento possa levar mais pessoas a ouvir e a prestar atenção ao conteúdo do disco. É um trabalho que marca a primeira vez que colaborei com o [pianista] Matt Mitchell e por exemplo, com o [teclista, toca sintetizadores modulares] Qasim Naqvi. A possibilidade de trabalhar com pessoas que estão abertas às minhas ideias e sugestões e que são capazes de dar forma à música que escrevi deixa-me bastante satisfeita. Tivemos o concerto de lançamento do disco na terça-feira [14 de dezembro] aqui em Nova Iorque e correu muito bem. Tenho um sentimento de gratidão profunda pela família de colaboradores. E sim: também por haver reconhecimento que faça com que este trabalho seja mais ouvido.

Sara Serpa e Emmanuel Iduma em palco (@ D. R.)

Este fim-de-semana será possível ouvi-la a alguns quilómetros de distância, em Lisboa, na Festa do Jazz. O que se poderá esperar deste concerto de domingo?
É um reencontro com o Demian [Cabaud, contrabaixista] e com a Ingrid [Laubrock, saxofonista]. Hoje estava a pensar que a última vez que tocámos juntos foi em 2019 e foi em dezembro, também. Foi a última digressão que fiz antes de fechar tudo devido à Covid-19 e correu bastante bem, por isso é bom podermos voltar a tocar. É um formato bastante íntimo porque é só voz, saxofone e contrabaixo. Estou entusiasmada e contente por poder tocar e cantar com eles.

Vem a Portugal regularmente? E por motivos artísticos ou não só por motivos artísticos?
Tento estar em Portugal durante o verão, tem sido assim a minha vida: pelo menos entre finais de junho e agosto tento sair de Nova Iorque e estar por aí. Depois vai variando um pouco com o trabalho, às vezes tenho trabalho na primavera e no outono e é possível passar mais tempo em Portugal. Tenho aí família, por isso é sempre bom voltar. É bom poder ter acesso aos dois mundos. Nova Iorque é uma cidade super exigente, há sempre muito trabalho e é muito bom poder ir a Lisboa e poder encontrar os meus lugares, todas as minhas memórias e poder concentrar-me em mim e em relaxar um pouco, não trabalhar tanto [ri-se].

Nem só de Sara Serpa se faz a Festa do Jazz

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Como habitual com um programa abrangente e eclético, aquele que é o grande ponto de encontro anual do jazz português — a Festa do Jazz — propõe este ano debates, encontros nacionais de escolas, jam sessions e, claro, concertos. Além de Sara Serpa Trio (dom., 19, às 22h, com a saxofonista Ingrid Laubrock e o contrabaixista Demian Cabaud), o Centro Cultural de Belém recebe este fim-de-semana atuações de FOCA, César Cardoso “Dice of Tenors” , ENTER THE sQUIGG e Diogo Alexandre Bock Ensemble, entre outros projetos

“Fui para o Hot Clube tentando dar uma última oportunidade à música”

Recuando agora uns bons anos: começa logo na música muito cedo, aos sete anos. Hoje é a sua profissão. O que acha que a fez encaminhar-se para a música desta maneira?
Todos os meus anos formativos no conservatório [estudou na Escola de Música do Conservatório Nacional] e ter começado a tocar música clássica europeia cedo foi fundamental. Mas nunca tive modelos de profissionalização, nunca me foi mostrado que poderia ser um músico profissional durante todo esse período em que estive no meio da música clássica. Por isso houve uma altura que tentei procurar outras carreiras, não sabia se seria possível. Hoje em dia há muito mais opções e possibilidades das pessoas se profissionalizarem mas nessa altura parecia que só os músicos distinguidos em concursos e com prémios seriam capazes de ser profissionais. Foi por isso que tentei primeiro ir para pintura: estudei pintura durante dois anos na Faculdade de Belas-Artes e depois decidi fazer a licenciatura em Reabilitação e Inserção Social.

Foi só no final dessa licenciatura que fui para o Hot Clube de Portugal, tentando dar uma última oportunidade à música. Houve aí um clique porque percebi que tinha capacidades para aprender esta música, que era uma linguagem completamente diferente que me dava possibilidades de liberdade. Às vezes a música clássica tende a ser muito restritiva, o ensino também tende a ser muito repressivo, há uma disciplina muito severa. Não quer dizer que no jazz não haja disciplina, mas deu-me uma motivação e um entusiasmo que não tinha sentido até aí — principalmente em termos de improvisação, em perceber como a improvisação acontece. E todo o aspeto sonoro do jazz que comecei a ouvir era super intrigante. Pensava: o que está a acontecer aqui? Como conseguem estes músicos interagir desta forma uns com os outros? E como posso conseguir fazer isto? A partir dessa altura tornou-se bastante claro que era isso que queria fazer.

"Há todo um ecossistema musical que ainda é maioritariamente masculino, tanto em Portugal como fora. É geral. Isto afeta todas as decisões que são feitas: quem são as pessoas programadas, quem são as pessoas eleitas como as melhores e quem são as pessoas deixadas invisíveis. Vemos que ao longo da história do jazz isso sempre aconteceu, as mulheres tiveram sempre um papel secundário e não são reconhecidas."
Sara Serpa

Quando olhamos para a música jazz, música improvisada e música experimental em Portugal, a impressão que se tem é que a maioria que compõe e lidera projetos continua a ser masculina. Conhecerá melhor esses meios do que eu, portanto pergunto-lhe: é uma impressão que se justifica e que mostra que ainda há desigualdade de género nestas áreas? E nesse aspeto a realidade norte-americana tem semelhanças com a portuguesa?
Sim, é verdade. O que se vê em termos de representação, seja em festivais, em clubes ou nos jornais, é isso. Portanto, é verdade. Aqui nos Estados Unidos também acontece. O que acontece em Portugal e o que vejo acontecer na Europa é o mito da ausência. Há sempre o mito de dizer que não existem outros, que as pessoas até os querem contratar mas não existem. Depois o que se percebe é que há bastantes mulheres e pessoas não binárias a tocar, mas não há incentivos — e por isso é muito difícil navegar num mundo que é maioritariamente masculino.

É importante estarmos conciencializados em relação a isso. Tenho estado bastante envolvida em questões de equidade de género no mundo da música. Apesar de não ter tido situações traumáticas no meu percurso, a verdade é que até há cinco anos era a única mulher num grupo. Isso levava-me a questionar: como será não ser a única mulher num grupo? Será que há outras pessoas que sentem a mesma coisa que eu? A verdade é que há. Por causa disso, envolvi-me em duas iniciativas.

Que iniciativas são?
Uma chama-se We Have Voice Collective. Surgiu como resposta a muitas notícias de abusos sexuais e abusos de poder dentro das instituições de educação do jazz. É uma tentativa de recuperar a dignidade das pessoas que foram abusadas, que se expuseram por relatar casos e que depois sofreram consequências por se exporem. Basicamente o We Have Voice Collective escreveu uma carta aberta que foi assinada por montes de pessoas da comunidade [musical] e depois criou um código de conduta em que se identifica o que poderá ser abuso de poder e o que fazer nessas circunstâncias. E outra coisa, às vezes as pessoas acham que a comunidade do jazz passa só pelos músicos mas há todo um ecossistema: há os técnicos de som, todas as equipas que apoiam concertos, há os curadores e os programadores, há os media… há todo um ecossistema que ainda é maioritariamente masculino, tanto em Portugal como fora. É geral. Isto afeta todas as decisões que são feitas: quem são as pessoas programadas, quem são as pessoas eleitas como as melhores e quem são as pessoas deixadas invisíveis. Vemos que ao longo da história do jazz isso sempre aconteceu, as mulheres tiveram sempre um papel secundário e não são reconhecidas.

A iniciativa mais recente em que me envolvi é o Mutual Mentorship for Musicians. É um projeto que me tem dado bastante satisfação, prazer e trabalho. É feito com a vocalista e compositora Jen Shyu e tenta imaginar como poderá ser a mentoria para mulheres, não-binários, trans e todos os géneros que estão sub-representados. Basicamente desafiamos artistas a criarem uma peça em conjunto, através de comissões [artísticas]. Isto começou na pandemia e já conseguimos dar comissões a 36 artistas para poderem criar. Em janeiro de 2022 vamos ter uma residência no Winter Jazz Fest, que é um dos maiores festivais de jazz aqui de Nova Iorque, e vamos ter uma residência onde vamos apresentar 21 artistas. Cada uma das 21 vai liderar a sua banda. Tem dado muito trabalho mas é uma recompensa ver todas as coisas que temos conseguido fazer. Vamos publicar também uma antologia, escrita por todos os músicos que participaram nos grupos. Acho que todo este avanço em termos de género tem de partir um pouco de trabalho — e de trabalho dirigido especificamente a uma população que não tem estado representada — mas também de uma consciencialização de toda a gente que faz parte da comunidade, não pondo o peso das mudanças nos ombros das pessoas que não têm tantos acessos e tantas oportunidades.

Ebru Yildiz

Fazer do jazz carreira nos EUA: “É muito mais competitivo, há muito mais gente”

Tentando situar o seu percurso cronologicamente. É em 2005 que se muda para os Estados Unidos, certo?
Sim.

O que encontrou nos Estados Unidos que a surpreendeu mais? Podemos começar pelo que encontrou no ensino, na Berklee College of Musice na New England Conservatory of Music, onde estudou.
O que encontrei foram escolas que tinham instalações incríveis, que tinham tudo em termos de salas, de material, de professores. E encontrei uma população de estudantes brutal — então na Berklee há milhares de alunos. Isso foi super inspirador mas ao mesmo tempo muito intimidante: senti-me solitária. Não havia muitos portugueses naquela altura e é muito difícil uma pessoa mudar-se para um país que tem uma cultura completamente diferente e onde não há pontos de referência familiares. Lembro-me que os meus primeiros anos na Berklee e na NEC… então o meu primeiro ano, em que estava sozinha, a minha vida era apenas a música. Pensava: a única coisa que estou aqui para fazer é mesmo música. Acordava super cedo, ia para a escola estudar, acabava as aulas e ficava a estudar na escola.

Foi uma grande lição relativamente ao que significa ser profissional, também. Houve um progresso muito grande em termos de pensar o tempo que tinha de dedicar a isto para ser músico profissional. E depois não só isso: senti o trabalho recompensado. Os professores que viam que trabalhava e que procurava o que queria davam-me oportunidades. Isso foi sempre uma boa sensação.

"Nova Iorque é uma cidade extremamente cara. Babysitter, dar aulas a crianças: ao princípio faz-se o que é possível para se conseguir ter dinheiro para pagar o custo de estar aqui. Felizmente ao longo dos anos as coisas foram evoluindo e agora tenho uma posição um bocadinho mais estável."
Sara Serpa

E no resto? Nas interações pessoais, nas relações entre músicos, na vida que teve fora da academia e do ensino, que diferenças principais notou na forma como as coisas funcionavam?
É muito mais competitivo, há muito mais gente. Essa competição faz com que tenhamos de dar o melhor de nós próprios e faz-nos confrontarmo-nos com muitos hábitos e vícios que possamos ter. Por isso, é um questionamento constante de nós próprios, da nossa identidade, das nossas capacidades. Em Boston havia uma pequena comunidade de portugueses: o Gonçalo Marques estava lá quando cheguei, o guitarrista Nuno Matos e depois também o André Matos, que é hoje meu marido, que tinha acabado de se licenciar na Berklee e voltado para Portugal mas veio para Boston fazer um mestrado. Houve aí algum conforto em ter algumas pessoas que falassem a minha língua. Mas a partir do momento em que uma pessoa acaba a escola, que é um meio relativamente protegido,  é lançada para o mundo real e em Nova Iorque o primeiro ano no mundo real é muito difícil, é muito avassalador.

Nova Iorque é, desde logo, uma cidade extremamente cara. Por isso uma pessoa tem de garantir que tem meios para se manter aqui. É um meio duro. As pessoas têm todas uma agenda, têm o seu trabalho, têm as suas vidas e portanto obriga a uma grande adaptação. E obriga a ter de fazer todo o tipo de trabalhos: babysitter, sei lá, dar aulas a crianças…

Fez isso?
Sim, sim, claro [ri-se]. Ao princípio faz-se o que é possível para conseguir ter dinheiro para pagar o custo de estar aqui. Felizmente ao longo dos anos as coisas foram evoluindo e agora tenho uma posição um bocadinho mais estável. Dou aulas na [universidade nova-iorquina] The New School e isso dá-me alguma estabilidade. Mas nada é garantido e sinto que no mundo da música é sempre assim: uma pessoa pode estar em alta numa altura e depois pode estar em baixa. Como se navega todos os altos e baixos de uma carreira artística? Para mim, esse é o grande desafio. E é o desafio de uma vida.

Ebru Yildiz

Tornou-se a primeira portuguesa a tocar no The Village Vanguard em Nova Iorque, essa Meca do jazz, em 2008 e em 2009. Sente que teve o reconhecimento devido em Portugal, não só por isso mas por todo o reconhecimento internacional que tem tido durante estes anos nos Estados Unidos, pelo tipo de artistas com quem tem trabalhado, pela música que tem feito?
Não sei, não penso muito nisso. A minha carreira tem-se desenvolvido mais aqui, com todas as vantagens e desvantagens que isso possa trazer. Uma desvantagem é estabelecer menos relações profissionais em Portugal. Sendo a minha música independente, também tenho de gerir todos os aspetos da minha carreira. E aqui as coisas acontecem muito mais rápido do que em Portugal: as programações são feitas com anos de antecedência. Não penso muito se tenho reconhecimento ou não, a coisa mais importante é poder trabalhar, continuar a apresentar o meu trabalho e poder continuar a criar. Sei que ter sido a primeira portuguesa a tocar no The Village Vanguard está na minha biografia — e acho que às vezes este também é um complexo de país pequeno, enaltecermos o ser-se o primeiro a conquistar alguma coisa. Há tantos primeiros aqui, de tantos países diferentes, que chegam e conseguem ter sucesso.

Dito isto, o The Village Vanguard é um lugar muito difícil de conseguir um concerto. E se repararmos, é também um lugar em que há muito poucas mulheres a tocar. É também uma experiência única porque é um dos poucos sítios onde uma pessoa pode tocar durante uma semana inteira. A possibilidade de expansão musical que pode acontecer ao longo de uma semana é espetacular. É o que todos os músicos querem: poder tocar e desenvolver a música, fazendo-o ao vivo. Esse é um aspeto muito importante no jazz, na música criativa e na música improvisada.

A forma criativa e ampla como tem usado a voz enquanto instrumento é também uma marca da sua linguagem musical. Percebeu cedo que não queria ser apenas uma cantora tradicional, fosse na pop fosse no jazz? E houve algum momento ou alguma descoberta musical em particular que a tenham feito sentir: ‘ok, faz sentido arriscar e ir por aqui’?
Penso mais que isso tem a ver sempre com os exemplos que temos à nossa volta. Há toda uma arte em cantar standards e em cantar música com a qual não cresci, numa língua que também não é a minha. Isso não me pareceu o caminho natural quando comecei a estudar jazz. Basicamente foi essa a razão. Não tinha nenhuma ligação emocional com a língua inglesa e não conseguia ter nenhum ponto de conexão com muitos dos standards, com muitas das canções. Por isso, a minha perspetiva foi sempre abordar tudo de uma forma instrumental. Houve muitas questões musicais que me intrigaram — por exemplo como é que uma pessoa olha para uma partitura que não tem quase informação nenhuma e consegue criar a partir de tão pouca informação, como acontece esse processo de improvisação, de criação e de comunicação com os músicos que estão à nossa volta?

Por isto tudo, sempre me pareceu uma forma natural não cantar com palavras — e só mesmo quando me mudei para aqui para os Estados Unidos é que houve uma mudança. Só houve um clique de mudança quando comecei a usar a língua inglesa para a vida quotidiana, quando passei a ter de me expressar não apenas de forma profissional mas pessoal, por ter amigos e relações próximas em que tinha de usar o inglês para expressar emoções. Creio que foi o meu trabalho com o [pianista] Ran Blake que me permitiu encontrar o meu espaço no cancioneiro americano, nas canções em inglês. Até então não conseguia. E ter ouvido a Jeanne Lee com o Ran Blake, por exemplo, ter ouvido o disco que eles fizeram, The Newest Sound Around, foi uma revelação: foi ver uma cantora que consegue navegar um ambiente sonoro super desafiador, porque o Ran Blake como pianista não toca as coisas mais óbvias e pode viajar para tonalidades completamente diferentes, e ainda assim conseguir encontrar significado nas canções. Acho que o meu trabalho com o Ran Blake teve muita importância nesse clique. Depois, teve a ver também com apreciar cada vez mais a arte de cantar um standard. Há imensas cantoras que admiro por isso, a Dianne Reeves é uma delas, a Cécile McLorin Salvant também. São pessoas que têm muita profundidade quando cantam, mostram que há mesmo uma arte na forma de cantar uma canção.

Já referiu vários nomes, vou juntar outros: já trabalhou com a Ingrid Laubrock, John Zorn, Nicole Mitchell, Guillermo Klein, Linda May Han Oh, Kris Davis, Mark Turner… e podíamos continuar. Como se consegue isto? Visto à distância de Portugal parece algo impressionante.
Estando em Nova Iorque e fazendo parte desta cena musical, ao princípio custa um bocado entrar mas depois é tudo uma questão de pensar em quem são os músicos que nos inspiram e com quem gostaríamos de trabalhar, primeiro, e depois existirem de facto encontros que proporcionam grupos ou oportunidades profissionais. O meu encontro com o John Zorn, por exemplo, foi através da [da cantora e compositora] Sofia Rey. Ela cantava com um quarteto vocal, precisavam de uma cantora e eu fui substituir uma das cantoras que saiu do grupo. Foi assim que entrei um bocadinho na órbita do John Zorn.

Com os outros músicos acho que passou por as pessoas procurarem-se, encontrarem-se e encontrarem pontos de referência e interesses comuns. Há sempre uma procura musical e para mim tem sido assim: com quem gostaria de colaborar e quais são as pessoas que me intrigam musicalmente e com quem gostaria de aprender? Tem sido um processo sempre de procura. Depois às vezes há coisas que não resultam, porque não resultam sempre, mas consegui vencer um pouco a barreira do medo e deixar de pensar no que outros vão pensar, pensando mais no que quero fazer, no que quero transmitir e em quem são as pessoas que acho que podem contribuir para isso. Acho que houve uma mudança minha na forma de abordar a questão. Mas estando em Nova Iorque, tudo muda: é grande mas ao mesmo tempo é pequena porque toda a gente se conhece, há umas atuações aqui e ali, depois as pessoas vão tocando umas com as outras e vão surgindo mais oportunidades.

Ebru Yildiz

Para terminar: estivemos bastante tempo a falar sobre o que já fez. O que lhe falta ainda fazer?
[ri-se] Muitas coisas! Tenho um projeto para fazer que está há muito tempo na minha cabeça, sobre o qual não vou revelar muito mas que também envolve colaboração com um artista plástico… algo um pouco na continuação deste trabalho que tenho desenvolvido tanto com o ‘Recognition’ como com ‘Intimate Strangers’, em que possa combinar várias áreas que me interessam e trazer artistas que me inspiram para colaborar comigo. E depois continuar a trabalhar o meu instrumento [voz]: há muitas coisas que quero ainda trabalhar a solo.

Tenho uma comissão da Chamber Music America para terminar que vou fazer com um trio e uma convidada especial, isso tem de ser terminado porque vai haver uma estreia em fevereiro. Neste momento quero sobretudo arranjar financiamento para os meus projetos e continuar a trabalhar. Também tenho um projeto em calha com o André Matos, gravámos outro disco. Não me faltam ideias, acho que às vezes falta é tempo [ri-se].

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