Um mês depois de ter sido inaugurada no Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a exposição “Sarah Affonso e a Arte Popular do Minho”, abrirá portas na outra ponta da cidade, no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC), uma segunda mostra dedicada à artista modernista, nascida há 120 anos. Com curadoria de Maria de Aires Silveira e Emília Ferreira, “Sarah Affonso. Os dias das pequenas coisas” pretende dar a conhecer a obra de uma artista multifacetada, pouco estudada e muitas vezes recordada apenas como mulher de José de Almada Negreiros. A partir desta quinta-feira, será possível encontrar nas salas do MNAC diferentes peças e facetas de uma mulher que, apesar de ter sido obrigada a interromper a carreira de pintora, nunca parou de ser criativa, deixando o seu cunho pessoal em tudo o que fazia, de alma e coração. Até mesmo no jardim que construiu em redor de casa.
É precisamente pela faceta de pintora que começa “Os dias das pequenas coisas”. A mostra acompanha cronologicamente o percurso artístico de Sarah Affonso, desde os tempos de formação e da pintura a óleo até aos últimos esboços a grafite. O quadro que inaugura a exposição, um retrato do irmão, foi pintado em 1921, quando Sarah, então com 22 anos, ainda estudava na Escola de Belas-Artes de Lisboa. “Terá sido feito antes do último ano letivo com um dos professores, Columbano Bordalo Pinheiro”, explicou Maria de Aires Silveira, que acompanhou o Observador numa visita guiada antes da abertura da exposição. A influência de Columbano é percetível nas cores utilizadas, num “certo tenebrismo, na pintura em mancha”, e na “observação psicológica”, de que o pintor gostava. “Ela foi uma das melhores alunas do Columbano, teve uma classificação final de 18 valores.”
O talento que o professor viu nela não escapou a Mário Domingues, jornalista de A Batalha, que a destacou num comentário à exposição dos finalistas das Belas-Artes, em março de 1923. “Ele sugeriu até que ela fosse para Paris. Tomava o Sud Express e ia imediatamente fazer a sua formação, que depois complementaria na Alemanha [a onde nunca chegou]. Ela mandou o recorte ao pai, e ele mandou-lhe imediatamente todas as suas economias. Foi com esse dinheiro que seguiu para Paris”, contou Maria de Aires Silveira. Chegou à capital francesa em 1924 e permaneceu ali durante oito meses, até que teve de regressar a Portugal por motivo de doença da mãe. Durante esse tempo, estudou desenho, assistiu aos bailados russos de Diaghilev, visitou museus e galerias, conviveu com outros artistas portugueses, Diogo de Macedo, Francisco Franco, Dordio Gomes e Abel Manta, e desenvolveu uma paixão por Cézanne e Matisse que a acompanhou para o resto da vida.
Embrenhada na vida artística parisiense, a influência dos grandes nomes da pintura passou a fazer-se sentir na sua obra. “Nota-se uma diferença de cor, de linha, mais simplificada, alguns cruzamentos de planos”, apontou a curadora. Algumas dessas obras, nomeadamente uma natureza morta com uma jarra com flores azuis e vermelhas — as cores de Matisse — podem ser vistas no primeiro núcleo de “Os dias das pequenas coisas”. “Ela contou que viu uma exposição de Matisse e que na rua viu umas flores à venda, umas anémonas, que as comprou imediatamente e as pintou em casa. [Matisse] tem uma série de pinturas de jarras com flores com estas cores.” Uma outra pintura que se destaca nesta primeira sala é Figuras num jardim, executada já no regresso a Portugal. “Existe uma grande simplificação da linha, figuras muito estilizadas, que entram já na linguagem do modernismo. E o que acho interessante é que as figuras não têm rosto”, referiu Maria de Aires Silveira ao Observador. “São apenas delineados, mas percebe-se o envolvimento do lugar, a expressividade e a amizade das raparigas, através de uma certa gestualidade.”
Esta simplificação da linha e da forma tornar-se-ia numa das marcas de Sarah Affonso, que recorreu a esta mesma linguagem para pintar o seu conhecido autorretrato de 1927. Este ocupa o centro da sala, colocado sobre um padrão decorativo inspirado num dos seus desenhos mais tardios, já da década de 1970, quando a sua grande atração eram os estudos de plantas e flores. Foi, aliás, aos retratos, mas de outros, que Sarah dedicou muitas horas do seu trabalho. Numa outra zona da exposição, é possível encontrar os rostos de familiares e amigos da artista, como o pintor José Tagarro, o escritor Manuel Mendes ou a poetisa Fernanda de Castro, mulher de António Ferro. As suas expressões, retratadas através de um traço simples, revelam a complexidade do carácter e a identidade de cada um.
É, contudo, a pintura de um estranho — um missionário — que mais se destaca nesta terceira sala. Pouco se sabe sobre a obra, que terá sido executada durante os tempos de Paris ou ainda com essa referência em mente. “Não se sabe porquê é que ela a pintou, porque ela dizia que nunca teve encomendas e isto parece uma encomenda”, afirmou Maria de Aires Silveira, sugerindo talvez tratar-se de um retrato do Padre António Vieira. Emília Ferreira, que também fez a curadoria de “Os dias das pequenas coisas”, adiantou uma outra hipótese: “Da primeira vez que a Sarah foi para Paris, terá ido à atenção de um amigo do pai, que era missionário. Existe também essa hipótese, mas são tudo hipóteses”, alertou a diretora do MNAC. “Não há nada que saibamos de forma concreta. Ainda não se encontrou documentação.”
Outro quatro que também salta à vista é o das Três Graças, que mostra três figuras femininas, desnudas, em redor de uma árvore. A do meio segura uma maçã, colocada no ponto central da tela, junto ao peito. “É um daqueles temas que atravessam a história da arte desde o Renascimento, que teve um momento áureo no neoclassicismo e que depois foi tratado pelas vanguardas, que pegaram nalguns destes temas [clássicos] e lhes alteraram completamente a forma”, apontou Emília Ferreira. “É também muito engraçado perceber que ela entrou por essa linha experimental.” Todos os traços característicos de Sarah estão lá, assim como os olhos amendoados. Esta “obliquidade” do olhar” pode ser encontrada “recorrentemente, não nos retratos, mas em tudo o que é personagem. São olhos muito penetrantes, incisivos, e não sei até que ponto não terá tido uma intenção, que ela não terá pensado numa forma de nos fazer relacionar com a pintura de outra forma”, considerou a diretor do Museu do Chiado.
“A Sarah não desistiu, converteu o seu percurso numa outra coisa”
Na parede oposta às obras de Paris, na primeira sala, foi colocada uma série de retratos de meninas, “um núcleo muito consistente” na obra da pintora, de finais dos anos 20, início dos anos 30. As formas são, mais uma vez, “muito simplificadas”, fazendo um aproveitamento da ingenuidade infantil. “É uma pintura lisa, com linhas muito definidas que, mais uma vez, identificam a figura, mas de uma forma muito simplificada.” A recordação das jarras de flores de Matisse está presente na escolha das cores, como o azul forte e o rosa. Tal como os estudos na capital francesa, também este projeto teve de ser abandonado. O mesmo aconteceu em 1937, quando Sarah começou a explorar, com uma grande simplificação de linha e contraste cromático forte, figuras de camponesas. Esses trabalhos, que podem ser vistos na exposição da Gulbenkian, têm, na opinião da curadora, “uma modernidade mais ousada, que não tem a ver já com uma pintura naïve que Casamento na Aldeia ainda podia ter. É uma coisa mais ousada, mais moderna, que ela interrompe também por motivos familiares”.
Sarah Affonso casou com José Almada Negreiros em 1934. O primeiro filho, José, nasceu no ano seguinte. “Continuou a pintar, a pintar muito e a trabalhar, mas, claro, passou a ser completamente diferente”, apontou Maria de Aires Silveira, acrescentando que a artista deixou de conseguir “entregar-se exclusivamente à pintura”. “Não tinha condições de trabalho. Cedeu, inclusivamente, o seu espaço ao marido porque a casa era pequena e faziam da sala um ateliê. Era um espaço onde ela não cabia.” Aos poucos, a pintura, que ocupava um espaço central na sua vida, foi passando para segundo plano. Até que Sarah Affonso deixou totalmente de pintar. “O que me parece é que ela optou pela vida familiar. Dedicou-se à família porque não conseguia dedicar-se exclusivamente à pintura e fazer um trabalho verdadeiramente profissional. Andaria sempre a fazer isto, a andar em avanços e recuos sem conseguir seguir um eixo forte. Portanto, preferiu desistir. Era por isso que dizia que se não tivesse desistido da pintura, nunca teria sido feliz.”
A decisão pode parecer trágica, mas foi tomada de forma consciente, numa altura em que uma mulher, depois de casa, pouco espaço tinha para si. “Ela casou de livre vontade, ninguém a obrigou. Teve dois filhos, e teve de assumir essa responsabilidade. O Almada era a grande figura. Ela estava na sua sombra e, sendo mulher nos anos 30, o que é que qualquer uma de nós faria? Deixava os filhos a morrer à fome? Fazia uma birra? Ela não teve condições. Não tinha ateliê, nunca teve uma encomenda estatal. É muito fácil para nós hoje, de uma forma um pouco sumária, olharmos para a vida dela e dizermos ‘a Sarah desistiu’. A Sarah não desistiu, converteu o seu percurso noutra coisa. Assumiu uma responsabilidade. E, também, entre si e os outros, pôs sempre os outros à sua frente. Já tinha posto a mãe, os irmãos, depois pôs o Almada. No fundo, foi sempre uma cuidadora”, disse a diretora do MNAC. “A Emília dos Santos Braga, uma pintora do século XIX, dizia às suas alunas que, se quisessem ser profissionais, para não casarem porque, de facto, as duas coisas eram muito difíceis de conciliar na altura”, acrescentou. “A Sarah fez uma opção, e depois fez as outras opções decorrentes [dessa primeira opção].”
Os dias das pequenas coisas
Sarah Affonso pode ter desistido da pintura, mas nunca desistiu de ser criativa. Nos anos seguintes, explorou o seu talento de diferentes formas e em diferentes suportes, na ilustração, no desenho, no bordado, em que era exímia, e na cerâmica. A sua primeira experiência no mundo da ilustração infantil aconteceu após o regresso de Paris, quando ilustrou o conto Mariazinha em África, da amiga Fernanda de Castro. Foi, contudo, após o nascimento do primeiro filho, que começou a levar a atividade mais a sério. O ponto alto da sua carreira foi talvez o da criação dos desenhos que acompanharam a primeira edição de A Menina do Mar, que fez a convite da própria Sophia de Mello Breyner, e cujos originais podem ser vistos no MNAC.
“Ela tinha estado no Minho [onde Sarah Affonso passou a infância] uns tempos antes. Já conhecia a Sara, mas estou em crer que a terá convidado pela proximidade que tinha com o Minho e pelo facto de poder entender bem a linguagem da própria Sophia” afirmou Emília Ferreira. “Por um lado, a Sarah sempre se definiu como uma pintora minhota e, por outro, sempre teve uma boa relação com a natureza. A Sophia também queria um trabalho que não fosse excessivamente obscuro em termos formais, que não fosse demasiado abstratizante ou realista e que tivesse um nível de sedução para as crianças e que fosse apelativo.” Encontrou isso tudo na artista, que foi capaz de criar um conjunto de ilustrações simples, mas com detalhes suficientes para serem apelativas para as crianças. “[Usou] uma paleta muito tranquila, mas sedutora, com lápis de cor, um material também muito próximo dos leitores. As formas são realmente estilizadas e existe, mais uma vez, evocações do seu querido Matisse, que encontramos nos recortes das algas e até nas cores utilizadas. Ela ia sempre fazendo essa piscadela de olho aos seus mestres, que o que os artistas fazem”, considerou a curadora. “Vão reequacionando as suas fontes de inspiração através da renovação do seu trabalho.”
O bordado também foi importante para Sarah. A artista chegou inclusivamente a expor alguns dos seus trabalhos juntamente com pinturas, seguindo um modelo internacional que em Portugal nunca teve grande expressão. “As ditas artes menores, que no final do século XIX, em Inglaterra, começaram a ter grande atenção por causa do movimento Arts & Crafts, tiveram uma grande recuperação no modernismo. E de facto todo o modernismo é decorativo”, disse Emília Ferreira. “Esta síntese do decorativismo que as suas obras criaram é inovador, assim como esta experimentação em diversas expressões, suportes, técnicas, meios, etc.. Cá não se tem dado muita atenção a isso.” É essa uma das razões pelas quais a curadora Maria de Aires Silveira considera esta mostra, em que se reuniu pela primeira vez este grande conjunto de materiais, importante, “porque a Sarah Affonso é um dos raros exemplos que liga estas atividades. Em relação aos bordados e à cerâmica, é também uma maneira de rever os ambientes do modernismo daquelas época, como eram os quotidianos. Foi por isso que demos este título à exposição, ‘Os dias das pequenas coisas’”.
A grande obra de Sarah Affonso é “uma obra viva”
A última sala da exposição é dedicada à Quinta da Lameirinha, a casa em Bicesse, no Estoril, que Sarah e Almada transformaram no seu refúgio. Esta foi adquirida pelo casal em 1938, seguindo um conselho de Porfírio Pardal Monteiro, e o seu jardim tornou-se no grande projeto da artista. “É uma obra da Sarah”, começou por dizer Emília Ferreira. “Foi desenhado com base em saberes pragmáticos do que é uma quinta tradicional e de como essa quinta tem de se resguardar dos ventos, como deve ser organizada espacialmente para que o verde possa crescer e para criar também espaços de fruição para quem a visitava e para quem a habitava. É uma obra viva, e a Aurora [Carapinha, que escreveu sobre a quinta] sublinhou esse aspeto de um jardim ser também uma questão de humildade, porque a natureza tem os seus próprios recursos, os seus próprios ritmos. As coisas vão morrendo, é necessário refazê-las e replantar; é necessário cuidar constantemente.”
Na opinião da diretora do MNAC, Bicesse é, sem dúvida, “o grande projeto pictórico” de Sarah Affonso, onde é possível encontrar “uma série de referentes pictóricos”, como as plantas de que Matisse usava. “Vai sempre citando [esses referentes]. Mesmo as janelas [que criou] sobre a paisagem, não são apenas uma forma de se manter um contacto. Não nos podemos esquecer que, na história da pintura, a janela é o princípio do género da paisagem. Primeiro surgiu a paisagem vista como detalhe através de uma janela, só depois é que surgiu a pintura de paisagem como género autónomo. A Sarah também deu aí essa piscadela de olho. Há um rasgamento de janelas sobre o jardim, que invade a casa e que é a sua grande obra”, explicou Emília Ferreira, lembrando que a artista não participou no desenho da casa, que já existia e que foi ampliada. “Ela tratou sobretudo da organização do exterior, e o exterior era o seu mundo. É um cosmos, de um hectare e meio, como ela dizia.”
As curadoras admitem que há ainda muito para estudar sobre o universo artístico de Sarah Affonso, uma artista tão completa que conseguiu extravasar o modernismo para todos as artes. mas esperam que as exposições do MNAC e da Gulbenkian, às quais se irá associar em breve um primeiro grande livro sobre a pintora, suscitem o interesse dos investigadores e também do público. Foi com essa vontade que montaram “Os dias das pequenas coisas” e será com o mesmo espírito que abrirão esta quinta-feira as portas de casa de Sarah. A mostra poderá ser visitada até março de 2020.