Índice
Índice
Um autocarro lotado de prisioneiros percorre aos ziguezagues a paisagem íngreme de Minas Gerais, a região que outrora sustentou o Brasil colonial. Estradas batidas pela mata e montanha adentro, com destino final na joia da coroa: Ouro Preto. A cidade histórica recebe o julgamento que está no olho do furacão, acompanhado pela imprensa nacional e internacional, desde que um polícia à paisana, disfarçado de vendedor de laranjas, surpreendeu em flagrante um grupo estrangeiro de teatro de vanguarda, alegadamente apetrechado de drogas. Este agente da polícia, Álvaro Lopes, defende ao jornal O Globo a apreensão dos atores revolucionários:
“São marginais, eles e seu grupo. Eles nos ofendem com suas roupas, seus cabelos e barbas compridas, sua falta de higiene e seus costumes exóticos. A simples existência do grupo é nociva, pois desvirtua o sexo, a família, os hábitos tradicionais, subvertendo a ordem normal da sociedade” (Jornal O Globo, 1971)
O autocarro é rodeado por uma multidão de apoiantes, estudantes de todo o estado de Minas Gerais, e os fotógrafos e as televisões acompanham a chegada dos prisioneiros ao tribunal de Ouro Preto. No interior, o único português da companhia, Sérgio Godinho, tenta comunicar com a companheira, Sheila Charlesworth, na outra ponta do autocarro, olham-se em segredo, falam baixinho, sob o olhar atento dos guardas prisionais. O músico que tinha acabado de gravar o seu primeiro disco, em Paris, estava subitamente com o risco da deportação a pairar por cima da cabeça, que para um refratário fichado da PIDE equivalia a passar de uma prisão brasileira para uma portuguesa. No presídio de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, os colegas pressentem a aflição do português. Sérgio Godinho mostra-lhes o esboço final de uma canção que começou numa viagem à Bahia; e agora, no cárcere, além das montanhas e areia, algas e lua, fala de assombrações de grades e paredes, de sussurros e segredos, dos tricotados de Sheila no presídio feminino, tudo embrulhado num mesmo sonho recente, mais precisamente, na noite passada:
“A noite passada um paredão ruiu
Pela fresta aberta o meu peito fugiu
Estavas do outro lado a tricotar janelas
Vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
Cheguei-me a ti disse baixinho ‘olá’
Toquei-te no ombro e a marca ficou lá
O sol inteiro caiu entre os montes
E então olhaste
Depois sorriste
Disseste ‘ainda bem que voltaste’”
As canções que Sérgio Godinho compôs ou gravou em 1971, desde a “A noite passada” a “Maré Alta”, são o itinerário conturbado do nosso maior compositor vivo: do Porto a Genève; do Maio de 68 ao musical “Hair”; das gravações num palacete nos subúrbios de Paris a dois meses de prisão e incerteza no Brasil. Em Paris, a 1500 km de Portugal, Sérgio Godinho entrou pela primeira vez em estúdio e gravou esta viagem em Sobreviventes, um álbum desgarrado, de canções arredias e apátridas, à deriva de um país que, mais tarde ou mais cedo, a maré e a liberdade iriam levantar. Hoje, 50 anos depois, é evidente que Sérgio Godinho é indissociável da música popular portuguesa, que há uma descendência constante, ano após ano, de um tipo de canção particular que é a consequência direta de um percurso de vida igualmente particular deste compositor. A forma de compreender este elemento singular que transformou o todo da canção portuguesa é seguirmos no encalço da estrada de Sérgio Godinho.
Romance de um dia na estrada
No início da década de setenta, segundo os registos de lojas de discos, o contestatário José Afonso é dos músicos que vende mais álbuns em Portugal, uma inesperada — e arriscada — aposta lucrativa da editora Orfeu, de Arnaldo Trindade, sediada no Porto. E José Afonso está contratualmente obrigado a obedecer a duas alíneas estabelecidas com Arnaldo Trindade: gravar um disco por ano e encontrar novos artistas. Um homem de palavra, José Afonso leva primeiro a Arnaldo Trindade a bobine com gravações caseiras de José Mário Branco e Sérgio Godinho, entregue ao compositor de “Grândola, Vila Morena” numa das suas passagens por Paris. Arnaldo Trindade hesita e Zeca não pensa duas vezes, bate à porta de António Marques de Almeida, o camarada da editora Sassetti, que se tentava impor no mercado discográfico como a resposta lisboeta à editora portuense. Marques de Almeida ouve José Mário Branco e entusiasma-se de imediato, pode estar aqui o cartão de visita para a nova sucursal da Sassetti: Guilda de Música. Liga para Paris, atende José Mário Branco, e diz-lhe que está contratado, que tem carta branca, trate do disco sozinho, do estúdio e o que mais for preciso, o dinheiro vem de Lisboa. Sim senhor, terá dito o músico, mas com uma condição, contrata também Sérgio Godinho. Quem?
“É um tipo muito giro cheio de imaginação. Fez parte da equipa musical do ‘Hair’ e está atualmente com o Living Theater”, explica o cantor de intervenção e ex-padre, Francisco Fanhais, ao Diário de Lisboa, sobre a sua descoberta mais surpreendente em Paris. “É acima de tudo um indivíduo com uma magnética extraordinária ao nível da poesia. E tem a vantagem de tudo aquilo ser realmente vivido”. O mesmo jornal, na semana seguinte, descreve a nova contratação da Sassetti como um “jovem poeta e compositor”, “radicado em Paris”. O igualmente exilado Luís Cília, numa entrevista em 1971, à Capital, detalha o “estilo original” e o “humor corrosivo”. José Jorge Letria, então crítico de música no Diário de Lisboa, confessa que é uma “revelação, um tanto inesperada”, de um “poeta das palavras simples e certeiras”, que “apanha as velhas instituições pela cauda e arrasa-as com o tom cortante do seu humor”. Adelino Gomes, o primeiro jornalista que entrevistou Sérgio Godinho, em Paris, recorda-nos hoje o choque desta revelação: “Ele comprimentou-me e já estava a pegar na viola e a cantar, foi uma entrevista muito vaga, eu nem conhecia o EP, ele tinha uma musicalidade que lhe saltava do corpo”.
No Portugal de 1971, ninguém consegue precisar de onde vêm estas canções desamparadas — nem é balada, nem é canção tradicional, sequer intervenção. As entoações do canto são insólitas, os poemas são inéditos, mas assemelham-se a uma sabedoria de rua; e mais, este tal de Sérgio Godinho não apresenta um arco evolutivo, surge por inteiro à primeira tentativa, específico e abstrato, político e corriqueiro, profundamente melódico, como hoje o conhecemos, 50 anos depois. “Sobreviventes é um disco que eu acho bastante rico, onde há um universo musical já maduro, eu tinha 26 anos, que foi marcante para mim e penso que foi marcante também eu ter aparecido ao mesmo tempo que o José Mário e o Zeca a afirmar-se, realmente o ano de 71 foi um ano muito importante”, reflete hoje Sérgio Godinho, aos 75 anos, confinado em Coimbra. O ano de 1971 é importante, à partida devido aos três álbuns gravados entre abril e novembro nos estúdios de Château d’Hérouville: Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades de José Mário Branco; Cantigas do Maio de José Afonso; e uma estreia completa de Sérgio Godinho, primeiro com o EP Romance De Um Dia Na Estrada e depois o álbum Sobreviventes – lançado no ano seguinte por opção editorial da Sassetti.
No sossego pastoril de Hérouville, a 30 km de Paris, os dias começam lânguidos no palacete com mais de vinte quartos, divididos por duas alas extensas, o despertar é um farto pequeno-almoço e as horas de gravação são folgadas, há tempo para conhecer o jardim de cinquenta hectares, a piscina, o campo de ténis, o ping pong e os matraquilhos. “Nos Sobreviventes, posso dizer que comecei por cima e depois fui sempre descendo, o estúdio tinha condições excecionais”, brinca Sérgio Godinho, com algum fundo de verdade: afinal, era um estúdio quase por estrear com equipamentos de ponta, dentro de um casarão de 1740 recuperado pelo compositor francês Michel Magne, uma excentricidade impensável que atrai músicos da fina flor, desde Elton John a David Bowie. “Aquilo era fantástico, porque dormíamos lá, tomávamos o pequeno-almoço e íamos gravar, numas salas que tinham sido transformadas em estúdio”. Michel Magne espreita ocasionalmente as sessões, mas deixa os portugueses à sua sorte, com supervisão do engenheiro de som Gilles Sallé. Sérgio lidera as gravações; o multi-instrumentista José Mário Branco encarrega-se de colorir as canções; Gérard Crapoutchik pega na guitarra elétrica; o baixista é Christian Padovan, que voltaria ao estúdio naquele ano para Cantigas do Maio; Cras na bateria; Uli Plech na flauta; e Sheila, conforme descrito na ficha técnica, nos “coros, sandwiches e amor”.
No mesmo mês de abril, no mesmo estúdio, José Mário Branco grava outra obra-prima, Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades, lançado em conjunto com o EP Romance De Um Dia Na Estrada de Sérgio Godinho. Os músicos espalham mais de seis parcerias entre os dois discos, com José Mário Branco a comandar as sessões. “Os arranjos são meus com várias contribuições do José Mário, ele teve uma contribuição muito ativa”, revela Sérgio, lembrando que “o José Mário tinha essa vertente de produzir, de líder, aquilo era-lhe natural.” Os dois amigos colaboram praticamente desde o primeiro encontro, com Sérgio a tocar viola e pandeireta na estreia discográfica de José Mário Branco — Seis Cantigas De Amigo, em 1969. “Rapidamente começamos a trocar informação musical”, recorda. “Ele estava mais adiantado que eu na composição, era um universo mais elaborado, em 71 ele começa a compor mais em português, aprendi muito com ele”.
“Na vida da canção, a parte de gravação em estúdio é a que gosto menos, porque é muito desgastante. É muito laborioso, tem que se estar no detalhe, é feito por camadas”, defende Sérgio, a justificar alguma insatisfação com o resultado final da sua estreia, sobretudo com a prestação vocal: “Estava com uns problemas de garganta e era a primeira experiência de estúdio, embora tivéssemos alguma folga, o tempo era limitado. Não me sentia completamente à vontade, estava um bocado stressado, e a minha voz não se soltou.” O encontro da sua voz com a canção portuguesa ainda era recente, ainda no outro dia algumas destas canções estavam em francês, como “A Linda Joana” e “Paula”.
[“Paula”:]
“O meu primeiro bloqueio em relação às minhas canções foi a língua portuguesa. Eu não conseguia encontrar a minha voz poética em português, na minha própria língua, soava-me tudo que já tinha sido feito. E de repente houve ali um dique que se abriu, acho que fui ajudado por alguns químicos que não irei especificar. De repente percebi: há aqui um caminho e eu só posso estar à vontade com a minha própria língua”.
Subitamente, depois de anos desencontrado, o compositor virou uma esquina e bateu de frente com a língua portuguesa, resgatou os grandes poetas que a sua avó materna recitava na rádio, os velhacos do café de resposta pronta, as figuras comezinhas que sobrevivem a qualquer regime, marqueses e charlatães, e o período formador na casa dos pais, no Porto. “Começaram-se a unir esses universos com as minhas memórias, o escrever em português foi também uma maneira de não perder a ligação com o meu português, a minha infância, a minha adolescência, as minhas raízes, e a minha própria língua”. Em “Descansa a cabeça (Estalajadeira)”, o narrador exilado revela que, enquanto parte pela estrada fora entregue ao acaso, não deixa de ser filho dos seus pais:
“Vim
Ao mundo por acaso
Em Portugal, não tenho pátria
Sou sozinho e sou da cama dos meus pais
Sou
Donde vos apetecer
Sou do mar e sou do corpo
Das mulheres estranguladas nos canais”
[“Descansa a Cabeça (Estalajadeira):]
O tal vagabundo existencial
Escreve a PIDE: “Sérgio de Barros Godinho. Filho de Fernando Verdial de Magalhães Godinho e de Amélia Ferreira de Barros Godinho. Nascido a 31/08/1945 em Santo Ildefonso, Porto”. O relatório não vai ao pormenor, não detalha que o pai era um ferrenho anti-salazarista, que o piano da mãe ecoava pela casa, que o irmão mais velho dá-lhe lições de rock and roll com visitas apoteóticas ao cinema Nun’Álvares, que entre as primeiras paixões basilares estão os Beatles, Bob Dylan, a Bossa Nova, a Chanson, a canção italiana, e “Menino do Bairro Negro” de José Afonso, que lhe revela que no mesmo Porto que tão bem conhece, mais precisamente na Ribeira, existe uma miséria dilacerante.
As desilusões académicas e nacionais acumulam-se e um curso de Psicologia em Genève é uma solução boa como qualquer outra. “Quando estive em Genève, adiei a tropa, mas quando me tornei no tal vagabundo existencial tornei-me refratário e já não tinha passaporte”, explica, notando no entanto que “foi a melhor coisa que aconteceu, eu no fundo não queria seguir psicologia, era um pretexto para sair de Portugal, viver independente e ser autónomo”. No pavilhão de desportos de Genève assiste ao fenómeno Jacques Brel, que seria uma influência tremenda em canções como “A Linda Joana” e na sua própria presença de palco, que por osmose, é uma influência posterior na música portuguesa.
[“A Linda Joana”:]
“Eu saí de lá estourado, ele entrava no palco literalmente a correr e engrenava, quase que não parava entre canções, e não fazia encore, eu admirava muito isso”. Infelizmente, a admiração a Jacques Brel não se estende aos estudos: “No segundo ano em Genève comecei mesmo a entrar em crise, tinha de mudar, não queria aquilo, e tomei uma decisão abstrata para a vida: aquilo que eu fizer vai ser pelas artes”. A solução estava debaixo do nariz, nas páginas de um salvo-conduto: On the Road.
“O livro do Kerouac foi um enorme impulso para eu ir para a estrada, foi o Manuel António Pina, meu colega de liceu, que me mostrou o livro e decidi que também queria fazer aquilo. Eu tinha um impulso de sair e ir para a estrada muito grande. Nesse aspeto, resume uma vivência minha. Se há canção que pode ser comparada às minhas vivências é ‘Romance De Um Dia Na Estrada’.”
É ao frio, ao vento e à fome — “um dia fraco, outro forte” — que o jovem Sérgio Godinho decide encarnar um andarilho beatnick — “às escondidas da sorte” — a começar como estivador em Amesterdão, e depois, embarcado como ajudante de cozinha, a navegar à vista, espreita os portos de Cuba e Jamaica. O cenário erótico — “afundados num colchão” — de “Romance De Um Dia Na Estrada” é um episódio deste período errante do compositor, enquanto percorre os caminhos traiçoeiros para a maioridade. “E enquanto julgas que estás a ensinar alguém, e estás no fim de contas a fazer atalhos para a tua maturidade, é que aprendes com alguém, julgando que estavas a ensinar”, medita Sérgio, que nos cita o verso: “E eu que falava de estradas/ E só conhecia atalhos/ E ela a mostrar-me caminhos”.
[“Romance de um dia na Estrada”:]
As canções de Os Sobreviventes partem de episódios que são interrupções momentâneas à estrada — “Me fez parar de repente” — onde colhe experiências em cada estação, num olhar distante desgarrado de gente e lugares: “Se ao/ Partir pela estrada fora/ Encontrar vida no mundo/ Pararei onde calhar, entre os mortais”. Sérgio Godinho pousa as palavras no chão somente para nos apresentar o seu estado singular de embalo existencial — “Só suspenso por água de um lado/ E do outro a cair” — descreve algumas breves amantes, e depois, enfim, enquanto a revolução não chega, retoma a estrada — “Paula até já”.
E certo dia, por capricho do destino, todos os caminhos levam a Paris. Em 1967, Sérgio Godinho vai dar a um sétimo andar na Boulevard Sébastopol, à boca do rio Sena, e conhece Luís Cília, um dito cantor de intervenção absolutamente integrado na cidade; e mais tarde, por indicação de um colega de Genève, apresenta-se a José Mário Branco, que vive em Villeneuve-la-Garenne, um subúrbio a Norte de Paris, com a mulher, um filho e outro a caminho. Os primeiros anos em Paris são de penúria, vive ao deus-dará, impele-se a ficar, assim como os mais de 600 mil emigrantes portugueses em França, em busca de alguma dignidade, ou em retirada de um país conservador e miserável. E a sorte protege os audazes: “Em 69 eu tinha feito audições para o musical ‘Hair’, fui escolhido no meio de seis mil e estive muito tempo no ‘Hair’, foi uma escola, porque aprendi a estar no palco, aprendi a cantar”, explica Sérgio, que naquela altura retomava uma atividade que tinha experimentado de forma amadora no Teatro Universitário do Porto. A imprensa parisiense anuncia audições para uma versão francesa do célebre “Hair”, um musical alegadamente de jovens para jovens, que renega a normalidade, e seguindo esta lógica, não procuram atores normais — “ne sont pas des acteurs normaux”. “Havia multiplicidade na peça, eram vários pequenos papéis, era uma grande agilidade e deu-me esse traquejo, que no fim de contas nunca deixei de gostar do palco”.
No dia 30 de maio de 1969, no Théâtre de la Porte Saint-Martin, estreia o “Hair” adaptado por Jacques Lanzmann depois de Serge Gainsbourg abandonar o projeto, com o cantor Julien Clerc à cabeça, e um ator português que, explica o encarte, tem “maçãs de rosto brasileiras e olhos chineses”, que adora a estrada porque “ela nunca para”. Durante dois anos ensaia duas vezes por semana, conhece uma colega canadiana chamada Sheila Charlesworth, e invariavelmente, está completamente nu em palco, à meia-luz, durante oito segundos. A nudez choca os parisienses mais púdicos, com protestos em frente ao teatro, e na plateia, é tiro e queda, está sempre um grupo de portugueses. “Bolas, eu até sei o ‘Hair’ de cor”, confirma-nos Luís Cília, que viu o amigo nu em palco provavelmente mais vezes que desejava. “Quando havia portugueses que vinham a Paris, perguntava logo, queres ir ver o ‘Hair’? Telefonava ao Sérgio e dizia: ‘Sérgio, arranja aí uns bilhetes’. As versões francesas dos clássicos do “Hair” — “Aquarius” e “Let the Sunshine In” — são trauteadas pelas ruas de Paris, e Sérgio aprofunda a sua paixão pelo pop-rock anglo-saxónico, que o distancia dos seus camaradas do canto de intervenção; e com contribuição do guitarrista do “Hair”, Gérard Crapoutchik, escreve uma das linhas de guitarras mais célebres do rock português: “Maré alta”.
[“Maré Alta”:]
“Eu quis fazer um rock puro e duro, talvez a letra mais curta que tenho. Essa canção também tem um conceito que é, a liberdade não estava a passar por Portugal, mas ela existe, e ao afirmá-lo, estamos a dizer que ela existe, e que temos que lutar por ela. O nosso chão é livre. A repetição incessante desse quase mantra é importante para acabar o disco, foi quase pronunciador.”
A frase de efeito “que a liberdade está a passar por aqui”, mote para o Portugal de amanhã, que a censura mais tarde considerou que “não deve ser musicado por intencionalidade política”, tem resquícios das mensagens escritas pelas paredes durante o Maio de 68. As manifestações estudantis parisienses são mais um momento profundamente transformador para a música de Sérgio Godinho, que marca presença nos protestos incendiários na Sorbonne, no Quartier Latin; e acompanha Luís Cília e José Mário Branco, e os franceses Jean Sommers e Colette Magny, a cantar na Casa dos Estudantes Portugueses, e em fábricas ocupadas. A anarquia ajusta-se à mundivisão de Sérgio Godinho que começa a compor sátiras como “A-a-e-i-o” — “poema de revolta, terminando em reticências obscenas”, considerou a censura. O escárnio agrada a José Mário Branco e o amigo começa a musicar algumas destas canções. “Refiro o humor como uma particularidade muito importante, pois ele é, em geral, o grande ausente da canção portuguesa. Muitas vezes a forma mais eficaz de desmistificar qualquer coisa, é pô-la ao ridículo”, explica José Mário Branco em 1970 ao Comércio do Funchal, reiterando que, “tenho feito muitas experiências desse tipo com o Sérgio Godinho”.
Se “A-a-e-i-o” arruma a meritocracia, “Que força é essa” e “Que bem que é” denunciam a exploração laboral e ameaçam revolução — “vincada intencionalidade de revolta política”, observaria acertadamente o censor. “Senhor Marquês” e “Charlatão” são personagens-tipo portuguesas, que seria uma especialidade ao longo da carreira de Sérgio Godinho. Escreve Tito Lívio, crítico de música na Mundo da Canção: “é a reprodução de um microcosmos — um bairro marginal de proletários explorados por um charlatão”. “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos” é outra parceria marcante com José Mário Branco, carregada de pathos, ao jeito do compositor de “FMI”, apesar de ter sido escrita inicialmente para José Afonso, que preparava o repertório de Cantigas do Maio. “É uma história forte, a mãe que tem os filhos e que diz, doa a quem doer, faz o que tens a fazer, é um conceito forte”, defende Sérgio, que estava então radiante com a possibilidade de dar letra à melodia que seria “Maio Maduro Maio”. “Passaram-se uns meses e o Zeca voltou, que era bastante despistado e tinha aquela criatividade à sua maneira. Disse-lhe que já tinha a letra. ‘Ah, mas já fiz uma letra’. Tirou-me o tapete debaixo dos pés, fiquei muito desiludido”.
[“Cantiga da Velha Mãe e dos seus Dois Filhos”:]
A agitação purificadora do Maio de 68 vitaliza as associações de estudantes parisienses, os sindicatos com maior pendor político começam a convidar os cantores de intervenção para animar a malta operária portuguesa, surgem novos partidos dissidentes do PCP, aumentam os concertos de solidariedade contra a Guerra Colonial, ou qualquer outra causa justa, desde que haja um convite e uma viola. Mas Sérgio Godinho tem outra vida, está em palco no “Hair”, não faz o frete do café, seja no Select Latin ou no Café du Luxembourg, onde os portugueses debatem fervorosamente se vamos de Maoísmo ou de Marxismo-Leninismo — “eu era um bocado freak”, justifica. Em 1971, sobe ao palco com Luís Cília em Bruxelas, um certame organizado pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, com direito a uma nota diretamente dos serviços consulares de Bruxelas para a Rua António Maria Cardoso, sede da PIDE. E no ano anterior, Sérgio é a abertura do tumultuoso concerto no Mutualité, em Paris, onde uma série de divergências políticas e bocas para o ar interrompem sistematicamente os cantores. “Un nouveau camarade Portugais”, apresenta José Mário Branco, e Sérgio prossegue com sangue-frio, deixa a assobiadela passar e retoma a cantoria, explicando em francês que a próxima trata do que está em falta, e segue assim: “la liberté passe par ici, marée haute, marée haute, marée haute”.
A noite passada na prisão
Em abril de 1971, enquanto Sérgio Godinho está a gravar Os Sobreviventes, na longínqua cidade de Ouro Preto, a placitude das ladeiras resvaladas, dos alicerces barrocos deste antigo posto do Império Português, são ocupados por um punhado de marginais de cabelos e barbas compridas, com alegada falta de higiene, e vontade de “subverter a ordem normal da sociedade”. Os membros do teatro de vanguarda do The Living Theatre, liderados pelos fundadores nova-iorquinos Judith Malina e Julian Beck, montam um grande carnaval para o Festival do Inverno de Ouro Preto, o evento anual organizado pela Universidade Federal de Minas Gerais que reunia milhares de professores e estudantes na cidade.
“O Living ficou conhecido inicialmente como o teatro da contestação, do movimento da off-broadway, em oposição ao teatro comercial da Broadway”, contextualiza Ilion Troya, em Nova Iorque, antigo ator da companhia, então batizado como José Carlos Troya, parceiro de cela de Sérgio Godinho e até hoje envolvido com o The Living Theater. Em Nova Iorque, a companhia de Judith Malina e Julian Beck tem o IRS à perna, mudam-se para a Europa e colhem mais uma série de controvérsias e célebres encenações, cada vez mais provocatórias, entre elas, “Paradise Now” no Festival de Avinhão, em resposta ao Maio de 68. Um convite de ocasião, do encenador e dramaturgo José Celso — o rosto do Teatro Oficina, em São Paulo — é levado à letra pelo casal do The Living Theater, que decide deslocar-se para o Brasil no momento de maior repressão da Ditadura Militar, sob a presidência linha-dura de Emílio Garrastazu Médici. “Os estudantes eram profundamente perseguidos, sobretudo depois do Ato Institucional de 68”, explica o antigo estudante de Ciências Sociais em Rio Claro, São Paulo, a recordar a legislação que deu carta branca ao regime militar para perseguir, prender e torturar qualquer cidadão. Por sorte, uma das paragens da companhia é na cidade de Ilion, que decide embarcar na loucura do The Living Theater em São Paulo, e depois, nos preparativos de uma ambiciosa encenação nas ruas de Ouro Preto. Mas são necessários reforços. “Eu já tinha uma grande admiração pelo Living, tinha-os visto em Genève e depois eles foram ver o ‘Hair’, foram conhecer os atores”, nota Sérgio Godinho, que aceita o desafio e vai para Ouro Preto com Sheila, considerando hoje que foi escolhido por “falar português e também por estar integrado naquele espírito”.
“O Festival de Inverno era um baluarte de resistência à ditadura”, diz-nos Ilion Troya, confirmando as reportagens da época que descrevem mais de 350 mil visitantes em 1971, numa miscelânea de aulas extracurriculares, happenings, e rock and roll, com farristas a acampar por todo lado da cidade, um mês antes de sequer começar o arraial. Sérgio Godinho fica uns dias, mas o bichinho da estrada leva-o à Bahia, onde começa a compor “Barnabé” e “A noite passada” — segundo a sua biografia, Retrovisor, assinada por Nuno Galopim, “com uma grande ganza numa praia de São Salvador”. Regressado a Ouro Preto, à casa que viviam em comunidade mais de quinze pessoas, o The Living Theater prepara uma invasão cénica às ruas intitulada de O legado de Caim, sem o aval, no entanto, da própria organização do festival, apesar da companhia estar há quatro meses na cidade. “Havia uma grande repressão, fomos presos no primeiro dia do festival”, sublinha Sérgio, recordando que, “já havia uma campanha contra nós, à porta das igrejas estavam a distribuir panfletos de uma organização chamada ‘Tradição, Família e Propriedade’, a dizer que tinham que nos expulsar”.
A polícia política brasileira — DOPS — cria a Brigada do Vício propositadamente para reprimir a promiscuidade do Festival do Inverno de Ouro Preto, com polícias à paisana espalhados por toda a cidade. No dia 1 de julho de 1971 entra em cena o agente Álvaro Lopes, da Brigada do Vício, disfarçado de vendedor de laranjas. O policia à paisana bate à porta da casa comunitária do The Living Theater, é convidado a entrar e, segundo os relatos posteriores, como gente simpática que era, perguntam se não quer fumar um baseado. Álvaro Lopes despede-se e chama os respetivos reforços. “A polícia não leu nenhuma ordem, o cachorro foi o primeiro que entrou, e sumariamente foram levando todos para a cadeia local”, narra Ilion, considerando que “talvez houvesse alguma coisa de maconha, mas nada como o que a polícia disse ter descoberto no subsolo da casa”. No dia seguinte, escreve Fernando Brant, o poeta do Clube da Esquina, então jornalista no Cruzeiro: “Treze foram presos em flagrante, com cigarros de maconha na mão”. Segundo a acusação, uma segunda busca encontrou enterrado no subsolo da casa um bidão repleto de drogas. “Nunca foi provado”, lembra Sérgio, que foi imediatamente levado para a sede do DOPS em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. “Evidente que se fumava maconha, mas foi tudo uma história mal contada, acabámos por ser absolvidos”. De seguida, descreve-nos Ilion:
“O DOPS em Belo Horizonte era a casa das torturas da época. Os homens foram separados das mulheres. Judith e Julien não foram flagrados, então foram presos, foram soltos, foram presos novamente como responsáveis pelo grupo. No DOPS ouvia-se os gritos das torturas, as mulheres acho que foram as que mais sofreram, inclusive Sheila, foi uma situação terrível. Depois os homens foram para um depósito de presos, um lugar onde estavam pessoas que não viam a luz do sol há muito tempo, fizeram até festa para nós, foi emocionante. A partir do momento que estávamos nos cadastrando para ser presos, começámos a acompanhar o nosso caso na televisão, o telejornal estava ligado e vimos a nossa casa e a destruição que estavam causando.”
Os contornos do caso — um grupo de estrangeiros “marginais” que vivia em comunidade, o diz-que-diz da vizinhança que assistiram a perversões da moral e bons costumes — tornam o julgamento num irresistível momento mediático. Na prisão, enquanto aguarda o julgamento, Judith Malina começa com Julian Beck uma mobilização solidária internacional, e publica num jornal local um diário onde descreve Sérgio e Sheila como Romeu e Julieta, separados pelas grades. No presídio de Ribeirão das Neves, os irrequietos membros do The Living Theater aproveitam o espaço recreativo da Sessão de Recuperação, onde estavam hospedados, para apresentar uma peça de teatro baseada nos sonhos dos prisioneiros. Curiosamente, depois de uma longa viagem e três meses no Brasil, ‘Sonhos dos Prisioneiros’ é a única colaboração de Sérgio Godinho com a companhia de teatro, sendo que o músico ainda se inspira no cenário de clausura para terminar a canção “A noite passada”. “Nesse momento, o caso do Sérgio Godinho era o mais grave, porque ele não podia ser deportado para Portugal”, nota Ilion. “Aliás, a deportação só não aconteceu felizmente porque fomos todos expulsos como medida profilática enquanto decorria o julgamento”, acrescenta Sérgio, que onze anos depois seria preso novamente no Brasil como consequência deste caso.
Em agosto de 1971, a campanha internacional começa a surtir efeito, o New York Times acompanha atentamente o julgamento, e o próprio presidente Médici recebe telegramas de Allen Ginsberg, John Lennon, Mick Jagger, Jane Fonda, Samuel Beckett, Jean Paul Sartre, Pasolini, James Baldwin, entre muitos outros. No final de agosto, o Ministro da Justiça Alfredo Buzaid anuncia a expulsão dos estrangeiros: “Sua prisão determinou o surgimento de uma onda de protestos em várias partes do mundo, atribuindo ao Governo brasileiro conduta inamistosa para com a classe teatral, o que tem sido explorado pelos inimigos da nossa pátria, na campanha difamatória que empreendem contra o Brasil.”
“Uma autêntica revolução na canção nacional”
Após meses de incerteza, de vagamente contratado como ator, Sérgio Godinho estava de volta à Europa, e agarrava-se à possibilidade de conseguir a condição de asilo político na Holanda; e ao mesmo tempo, num país indolente que não girava à mesma velocidade desenfreada de Sérgio Godinho, são finalmente apresentadas as canções de Romance De Um Dia Na Estrada e Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades. No dia 28 de novembro de 1971, a Sassetti organiza no Cinema Roma, em Lisboa, um lançamento surrealista para os cantores exilados, com duas cadeiras vazias em palco. A entrevista de Adelino Gomes, em Paris, é transmitida para a plateia e para os ouvintes da rádio Renascença, em direto, obra de José Manuel Nunes que comandava do estúdio o emblemático programa “Página Um”. Escreve o Diário de Lisboa: “O Cinema Roma foi cenário do chamado acontecimento discográfico” e “dois portugueses radicados em França e que de lá vêm provocar uma autêntica revolução na canção nacional”.
No início de 1972, o instante de catarse da música popular portuguesa seria completo, com o lançamento de Os Sobreviventes e uma razia na atribuição dos Prémios de Música Ligeira, organizados pela Casa da Imprensa e deliberados por José Duarte, Tito Lívio, João Paulo Guerra e José Manuel Nunes: José Afonso é o melhor intérprete; José Mário Branco melhor arranjador; e Sérgio Godinho melhor letrista — “pela linguagem porreira, extremamente musical, mordaz e corrente e pela lúcida visão crítica das situações escolhidas”. E os restantes músicos e escritores de canções, obviamente que se levantaram em aclamação por este momento inigualável da música portuguesa, a celebrar os arranjos magistrais de José Mário Branco, o coloquialismo mordaz de Sérgio Godinho, correto?
“O júri saberá o que é um orquestrador?”, reage irritado Fernando Tordo após a atribuição dos prémios, que embirra especialmente com este tal de Sérgio Godinho que claramente não sabe escrever: “Gostaria de saber qual o processo utilizado pelo autor-compositor na elaboração dos temas, pois só assim poderia saber o motivo das constantes más acentuações das palavras”. Fernando Guerra bate na mesma tecla: “Não quero com isto dizer que Sérgio Godinho não saiba pôr ideias no papel, ainda que custe admitir que não saiba o que são acentuações de palavras e não pareça preocupado com a ligação letra-música”.
O poeta Ary dos Santos sugere que a melhor letra deveria ser de Natália Correia, Maria Teresa Horta, ou claro, dele próprio: “Todos sabem que modéstia não é o meu forte — os meus ‘Cavalo à Solta’ e ‘Canto Franciscano’, por exemplo?”. Duarte Mendes encontra uma explicação: “Parece concluir-se que os emigrantes são mais facilmente considerados génios musicais”. Paulo de Carvalho vai mais longe e deixa no ar a suspeita que Sassetti tem o júri na mão. Em grande entrevista, Carlos do Carmo também não perde a oportunidade de cascar na nova canção portuguesa: “ouvi o LP do José Mário Branco que toda a gente diz que é uma maravilha. Acho que tem muitos erros de interpretação e que a sua popularidade se deve a um conjunto de circunstâncias”. Em breve, as circunstâncias de Portugal seriam outras, os contemporâneos de José Mário Branco e Sérgio Godinho não se atreveriam a repetir as mesmas considerações e o legado destas canções seria incontestável.
Os jornalistas de música do Diário de Lisboa, liderados por José Jorge Letria, não consentem este enxovalho mesquinho a deturpar a revolução musical que vai finalmente matar o “nacional-cançonetismo”: “No momento em que Calvário ressuscita e Paco Bandeira ocupa triunfalmente os primeiros lugares das tabelas de vendas, a tripla atribuição de prémios a José Afonso, Sérgio Godinho e José Mário Branco vale antecipadamente como atitude crítica”. Numa coluna no mesmo jornal, o compositor Nuno Gomes dos Santos diz-sem-dizer, o que hoje é descarado, os três álbuns produzidos em Paris eram um grito de independência musical e ideológica absolutamente necessário: “Numa altura em que o disco desempenha um papel fundamental na formação de uma cultura popular, trabalhos como os dos três premiados pelo júri da Casa da Imprensa merecem o incondicional aplauso de quem saiba compreender o seu verdadeiro significado”.
“Renovar a música era uma coisa natural de criação, não era uma intenção programática”, reflete Sérgio Godinho, que em 1972 retorna ao Château d’Hérouville para gravar Pré-histórias e começa o processo de mudança para o Canadá, onde fica até à Revolução dos Cravos que tanto profetizou. Neste ano de 1972, e mesmo no ano seguinte, Os Sobreviventes entra e sai das lojas consecutivamente, com a censura ainda a tentar responder à sua própria reformulação. A Direção dos Serviços de Censura é renomeada de Direcção Geral da Informação, cria-se o eufemismo do “exame prévio” e as editoras são obrigadas a negociar as letras diretamente com os censores. Em relação à maioria das canções de Os Sobreviventes, um dos censores é sucinto à Sassetti: “não é de divulgar”. Adriano Correia de Oliveira, representado pela Orfeu, recusa-se a entregar qualquer letra ao exame prévio e deixa de editar discos. A fresta benigna de liberdade do ano anterior encerra-se abruptamente. E no entanto, em breve, como um vagabundo existencial tinha previsto, a maré iria levantar.
Este domingo, 25 de Abril, Sérgio Godinho é convidado do concerto comemorativo da data a decorrer na residência oficial do primeiro-ministro, nos jardins do Palácio de S. Bento, acompanhado ao piano por Filipe Raposo. O concerto será transmitido pela RTP1 às 19h