Sentado no sofá de sua casa, na zona do Rato, em Lisboa — e com livros espalhados sobre a mesa, papéis, discos pela sala e retratos a ocupar as paredes —, Sérgio Godinho diz logo antes de começarmos: não quer entrevistas de vida nem entrevistas de balanços. O que lhe interessa por estes dias é o futuro e o presente: o seu, mas também o do seu país e o do mundo, sobre os quais reflete numa nova canção escrita a propósito da pandemia do novo coronavírus.
O tema chama-se “O Novo Normal” e é lançado numa altura em que Sérgio Godinho se prepara para um aniversário diferente, que vai comemorar “de maneira condigna”, ainda que “um bocado insólita, de facto”.
A 31 de agosto, o músico, cantor e escritor que já não é só “escritor de canções” (para usar um termo que deu como título a um espectáculo, que depois resultou num álbum ao vivo), dado que está a trabalhar num livro de poesia e no seu terceiro romance, fará 75 anos. Quando chegou aos 70, fez “uma grande festarola para os amigos” e a ideia era “repetir a brincadeira” este ano, mas “esta porcaria, esta peste moderna [Covid-19], inviabilizou isso”.
Para trocar as voltas ao novo coronavírus, Sérgio Godinho arranjou uma alternativa: vai celebrar o aniversário em palco, com um concerto nesse dia 31 de agosto no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Não será o único espectáculo, dado que a lotação da sala está reduzida a metade (por imposição das autoridades de saúde) e os bilhetes voaram. Depois de anunciar uma também já esgotada segunda data, a 1 de setembro, voltará a pisar o Maria Matos nos dias 15 e 21 de setembro.
Em entrevista ao Observador, Sérgio Godinho reflete sobre aquilo que o inquieta e sobre aquilo em que tem pensado por estes dias. Por exemplo, a falta que lhe fez estar em palco e as reticências ao modelo de concertos drive-in: “Nada substitui a emoção do ao vivo. Evidentemente foram as circunstâncias que determinaram, mas uma pessoa ter o artista ali e estar a ouvir música pela rádio do carro acho um pouco deprimente”.
Também abordada foi a dificuldade que alguém que tanto preza a liberdade teve com as restrições provocadas pela pandemia e com um “novo normal” que “não é nada normal”. A liberdade “instalada” e “conquistada” em Portugal que “é sempre precária, é preciso lutar por ela, mas de qualquer maneira é invejável”, não escapou igualmente à conversa. Ou a inevitável passagem do tempo: “À medida que os anos correm, uma pessoa começa a pensar: epá, mas quanto tempo falta? Isto é inevitável e temos também de encarar isso. Sei que tenho uma boa energia, tenho uma alegria de viver grande. Gosto dos prazeres da vida, gosto dos meus amigos, gosto da família, dos meus filhos e dos meus netos. Mas sei que o tempo passa, sei olhar-me ao espelho.”
[“O Novo Normal” descodificado por Sérgio Godinho:]
Já alguma vez tinha planeado um aniversário com tanta antecipação?
Geralmente não festejo [assim], festejo mais as datas redondas. Farei agora 75 anos. Quando fiz 70 anos, fiz uma grande festarola para os meus amigos. Foi muito, muito especial. Este ano estaria a preparar-me para repetir a brincadeira, eu e os meus amigos. É evidente que tudo isto inviabilizou isso. Esta porcaria, esta peste moderna, inviabilizou isso porque como é evidente não ia arriscar infetar os meus amigos, ficar infetado, uns infetarem outros, etc. Então pensou-se numa alternativa que não deixa de ter piada, embora muito limitativa: pensámos em fazer um concerto e escolhemos o Maria Matos porque é um teatro com o qual tinha [relação]. Inclusive tenho um disco chamado Nove e meia no Maria Matos. Havia uma tradição, fiz lá vários concertos com grande prazer. Pese embora a sala estar reduzida a metade, queríamos estar num palco — no fim de contas é também a nossa função. É um prazer.
Tivemos bastantes concertos adiados ou anulados, nomeadamente em abril… Então achámos que seria uma maneira condigna de comemorar o aniversário. Um bocado insólita, de facto. O que acontece é que já vamos fazer uma outra data, porque entretanto as duas datas estão segundo parece esgotadas. Mas é um prazer também remexer um pouco no meu repertório, até porque não vamos fazer o mesmo alinhamento que temos vindo a fazer.
O que tenciona fazer?
Vamos fazer algo que pode ser… provavelmente começarei sozinho e depois vamos acrescentando músicos. Estamos a estudar esse figurino. Mas repito, é um prazer. Sempre gostei do palco, foi sempre o meu território natural, um território onde me sinto em casa. E estar em nossa casa, nossa porque a casa é partilhada com o público, é um prazer renovado.
Sinto que o que há de extraordinário num concerto ao vivo, como numa performance, numa peça de teatro, etc, é que uma vez que comece e os dados sejam lançados tem de ser levado até ao fim com energia e emoção sempre constantes. A energia não chega se não houver emoção. Não é só algo de histriónico ou mecânico, há sempre uma emoção. Essa emoção é partilhada com o público, aliás, que também nos dá vibração e energia. De facto esse exercício de partilha é-me essencial. E outra coisa: o facto de tocar com a minha banda de há muito, os assessores, e de eles também terem sempre vontade de renovar arranjos, remexer material e ir buscar uma canção que estava esquecida numa prateleira e desempoeirá-la, ir, digamos, dar-lhe o beijo da bela adormecida [risos]… se bem que agora é preciso cuidado com os beijos mesmo nas belas adormecidas [risos]. Pronto, um beijo virtual.
Ser-lhe-ia estranho se os concertos passassem a ser todos online, virtuais, à distância? Já se percebeu que não vai ser assim mas chegou a temer-se essa hipótese, durante o confinamento mais intensivo.
Só mesmo como solução provisória… acho que nada substitui a emoção do ao vivo, de ter as pessoas ali. Acho no limite um bocadinho deprimente. Evidentemente foram as circunstâncias que determinaram isso e teve de se fazer a dada altura, mas por exemplo aqueles concertos de drive-in… nunca assisti a nenhum, nem sei se quero assistir, mas uma pessoa ter o artista ali e estar a ouvir a música pela rádio do carro acho de facto um pouco deprimente. Sem nunca ter estado lá. Mas pronto, joga-se com as armas que se pode e este período espero que não torne a acontecer, pelo menos com a mesma intensidade. Todos nós sabemos que vai haver uma segunda vaga, mas pronto, que possa ser um bocadinho menos intensa. Este período tão anómalo teve de chamar recursos também um bocado insólitos, não é?
Falava da festa que fez para comemorar os seus 70 anos. Escreveu recentemente que queria uma grande festa este ano [para celebrar os 75]. Tem dado por si mais com vontade de comemorar a vida — e esta vida de “escritor de canções” — do que preocupado com a passagem do ano?
Nunca fiz nenhuma resistência em relação a aniversários. Embora seja de 31 de agosto e era sempre um bocado estranho quando era miúdo. Passávamos as férias, tínhamos uma casa fora do Porto — eu sou do Porto —, em Ofir. E era um bocado estranho não estarem os meus amigos para uma comemoração de aniversário, de maneira que sempre achei um bocadinho um ato não muito relevante.
De facto não festejo todos os anos. Posso festejar com um grupo de amigos muito restrito, mas não festejo os meus anos todos os anos. Festejo outras coisas que são igualmente importantes — e essas até podem contar mais do que os anos. Não sou um fanático dos aniversários.
Há uns bons anos, numa entrevista, dizia: “Quando se tem 60 e tantos anos, dois ou três anos não têm importância. O que tem importância é já não ter os 20”. Ainda sente isso?
Oh, cada vez mais, claro. À medida que os anos correm, uma pessoa começa a pensar: epá, mas quanto tempo falta? [risos] Isto é inevitável e temos também de encarar isso, não é? Porque como diz a minha canção, “o elixir da eterna juventude estava marado, falsificado” [risos]. Portanto, eu sei que tenho uma boa energia, tenho uma alegria de viver grande. Gosto dos prazeres da vida, gosto dos meus amigos, gosto da família, dos meus filhos e dos meus netos, etc. Mas sei que o tempo passa, sei olhar-me ao espelho [riso].
No texto que escreveu a propósito desta comemoração, em junho, dizia a dada altura que a saúde tem-se mantido “geralmente por perto”.
Por perto, sim [risos].
E “geralmente”. Nos anos recentes tem-se mantido sempre por perto? Ou tem tido sustos de que tem conseguido recuperar bem?
Aí já é o boletim de saúde, tinha de falar com o médico… felizmente tenho tido saúde, mas já tive problemas. Há 25 anos ou 30 já tirei 20 centímetros de intestinos, mas felizmente correu tudo bem — como tudo.
[Vídeo. Os principais destaques da entrevista:]
E nestes últimos anos mais recentes tem corrido tudo otimamente, é isso?
Não, não é otimamente. Há sempre mazelas. Tenho remédios para isso. Se não tomasse um remédio para a tensão, estava com a tensão altíssima — porque a partir de uma certa idade a tensão tem de aumentar, não é?
Claro. Mas escreveu também em julho: “Embora fazer um som, haja música”. Nestes tempos, hoje em dia, quanto do seu dia a dia é ocupado pela música?
A música não ocupa 24 horas com certeza. Se ocupasse, não estavam aqui estes livros [sobre a mesa], não estavam outras fontes que vejo online. Não me ocupa 24 horas. O que acontece é que a música é uma segunda respiração para mim. A música está apesar de tudo muito presente e gosto de ouvir. Sou muito eclético, não me perguntes agora o que ando a ouvir… por acaso ontem até comprei o último disco do [Bob] Dylan, mas ainda não ouvi, ouvi uma ou duas canções.
Sou completamente eclético, de manhã muitas vezes gosto de pôr música barroca ou Bill Evans ou Keith Jarrett… mas a música acaba por estar sempre presente e tenho um repertório mental muito grande. Tenho um grupo de amigos com quem almoço e refiro canções com a letra, etc. Dizem eles: tens uma memória brutal. E de facto tenho boa memória. Já se foi um bocado porque com as drogas todas, enfim [risos], a memória fica um pouco mais frágil.
Mas ainda vai repescando canções alheias de cabeça…
Sim, completamente. Escrevi um livro de crónicas chamado “Caríssimas 40 Canções” e com músicas de outros, porque gosto também de partilhar com outros aquelas canções ou aqueles autores que são para mim especiais. O meu critério nessas crónicas foi por vezes um autor, ‘este é indispensável’. O Caetano é indispensável, o Chico ou o Dylan de que falei, etc. ‘E agora que canção?’. Outras vezes o critério era apenas uma canção especial, por alguma razão, que queria realçar ou trazer à tona. Foi uma prática semanal muito estimulante.
Tem uma canção nova. O título pega numa expressão que tem sido muito usada por estes tempos, “o novo normal”. O que é que lhe interessou tanto nesta expressão para a dar como título a uma música?
Foi tão usada que é quase uma banalidade mas é evidente que tem um sumo, digamos, perverso. Este novo normal não é nada normal, nem queremos viver para sempre assim. Portanto, é uma espécie de realidade que nos caiu em cima de uma maneira completamente inesperada. Quando este vírus começou a brotar achámos que estava muito longe [risos], estava na China e numa cidade cujo nome a maior parte de nós nem sequer conhecia. De repente estava à nossa parte e de repente estava a invadir-nos, a invadir o nosso dia a dia, os nossos gestos quotidianos, a limitar-nos de uma maneira estúpida, a fazer morrer gente, a fazer gente ficar doente. E foi uma coisa galopante, isto é a tal coisa exponencial: parece que não vai subir e de repente começa a subir. E a gente vê a situação desgraçada de certos países, que estão piores do que o nosso, que são muitas vezes mal governados mas nem sempre. É evidente que os casos lamentáveis do Bolsonaro e do Trump são casos que potenciaram e potenciam esta doença, mas há outros países que não têm governantes da mesma responsabilidade e que estão também muito assolados por esta história toda.
Em relação à canção, o que fiz foi resumir algumas, digamos, realidades. E resumir um bocado um desejo, expressa-se a dada altura na canção, de que tudo não passou de um pesadelo fugaz, uma história do medo largada ao ouvido em segredo. Uma espécie de: e se a gente acordasse e afinal de contas não tivesse acontecido nada? Há a meio da canção uma espécie de um sonho, irrealista não é?, mas uma espécie de um desejo utópico.
A realidade ou, como a dada altura canta nesta canção, “as circunstâncias”, continuam a impeli-lo para a escrita, a ser o motor para a vontade de escrever? Escreve aqui uma canção sobre as circunstância, sobre o que está a acontecer no mundo e o que está a mudar nos modos de vida e organização social.
As circunstâncias muitas vezes impelem-nos, mas muitas vezes não é isso. Normalmente é algo de… há um ímpeto criativo, sem dúvida. E isso inclusivamente não se exprime só nas canções, exprime-se também na ficção narrativa que tenho praticado muito. Mas esse ímpeto criativo não vem só do quotidiano, muitas vezes vem também de uma vontade de contar histórias, de pôr personagens em cena, quase como um exercício de dramaturgia, não é? Mas por outro lado, muitas canções são só reflexões, interrogações, com certeza são olhares sobre o mundo — e olhares críticos — mas tenho muitas canções que têm pontos de interrogação. Gosto de suscitar respostas aos outros, de ao mesmo tempo que relato algo que me é próximo estar também noutra dimensão com os outros.
Ou pelo menos pôr os outros a fazerem essas perguntas, a lembrarem-se dessas perguntas, a confrontarem-se com essas perguntas?
E cada pessoa interpreta à sua maneira… aliás há obviamente muitas canções que são mais citadas — sei lá, “O Primeiro Dia” é muito citada, “Com Um Brilhozinho nos Olhos”, etc —, mas há pessoas que têm canções especiais porque lhes bateu num determinado momento da sua vida e ficaram com essa canção como algo de referencial. Referencial para um momento da vida. Isso pode ser muitas vezes por razões muito positivas ou até por razões negativas. Houve uma vez um homem que eu não conhecia, era um taxista, que me disse: ‘sabe, há uma canção sua na qual penso muito’. Eu a pensar: pronto, é uma daquelas óbvias [risos]. Ele diz: ‘toda a gente passou horas em que andou desencontrado / como à espera do comboio na paragem de autocarro’ [versos da canção “Lá em Baixo”]. E ele dizia: ‘a minha vida foi tantas vezes assim’. E dizia aquilo com uma certa amargura. Foi muito tocante, aquele momento.
Perguntam-me muitas vezes porque é que as canções têm uma longevidade grande. Eu penso: porque elas tocam num determinado ponto que é comum a todas as pessoas mas que ao mesmo tempo é mais especial para algumas do que outras.
Num texto em que a canção nova é apresentada, usa-se a palavra “crónica” e faz-se uma leitura das suas canções como crónicas do seu quotidiano e “do nosso quotidiano”. É assim que as sente? Já conhecíamos a expressão escritor de canções. Também podemos usar a expressão cronista de canções?
Não fui eu que escrevi isso, essa das crónicas.
Daí perguntar [se se reconhece].
Aceito como uma definição entre outras. Mas o que há de característico nas minhas canções [risos], ironicamente, é não terem uma característica única. A minha paleta de cores, digamos, é variada, não sou monocromático. Não teria mal nenhum em si [sê-lo], há certos autores que são muito mais dentro de um mesmo universo, a explorar sempre um mesmo universo, e que no entanto são riquíssimos. Mas gosto muito de experimentar géneros, inclusivamente.
Por exemplo, não sou fadista mas compus muitos fados para vários fadistas — para o Camané, para o Carlos do Carmo, para a Mísia, para a Cristina Branco, etc etc. A Lia Gama canta “O Fado do Kilas”, inclusivamente. Não sou um fadista mas gosto de experimentar esse género, como um género específico que tem certas regras, embora depois interpretando-as à minha maneira. Aliás, vou fazer agora ainda este ano… estava para fazer em abril, teve de ser adiado mas ainda farei uns espectáculos com o Filipe Raposo e um guitarrista de fado — ainda estamos a decidir — que se vai chamar “Os fadinhos do Godinho”. Vou interpretar à minha maneira essas canções que dei a outros e que ouros cantaram. Não sou fadista, portanto cantarei à minha maneira. Porque são canções, também. Acho que o que é interessante nas canções é poderem ter múltiplas leituras e serem compatíveis. Eu próprio já cantei canções minhas de maneira muito diferente.
Mudando o arranjo, ganham uma vida diferente?
Ganham uma vida diferente, sim. O arranjo não é só a vestimenta, dá uma outra vida à canção. Parece muitas vezes que é uma canção nova. Os meus músicos são muito sensíveis a isso, aliás são eles que muitas vezes suscitam isso: ‘bora tratar esta canção de esta maneira’. E de facto dá uma espécie de nova vida à canção e é por isso que os espectáculos ao vivo nunca são uma mera reprodução de um disco. Até porque o meu som foi-se alterando ao longo do tempo, com diferentes músicos, diferentes épocas.
Sempre tive uma componente pop-rock, digamos, mas tive muito também uma componente folk ou folk-rock, ou inspirada em certos ritmos populares portugueses. Uma canção é um ente vivo… E mesmo esta canção, “O Novo Normal”, que teve um parto um bocado prolongado no arranjo até se encontrar o tom, é um ente vivo que vai continuar a existir e pode ser que leve, digamos, voltas se continuar a ser tocada. Espero que se continuar a ser tocada o seja já como uma recordação de passado [de pandemia], mas não o vai ser tão cedo [risos].
Voltando ao momento que inspira uma canção como esta “Novo Normal”: para uma pessoa a quem a palavra liberdade significou e significa tanto, este período de novo normal foi uma provação? Foi difícil, contraditório até, a ideia de ter se abdicar de liberdade individual?
Claro que sim, claro que sim. E aí falo da liberdade individual, a própria canção fala disso: ‘refreia essas ânsias de beijos e abraços’. A própria canção refere esse distanciamento necessário como uma coisa não normal, digamos. É evidente, há desde logo no título da canção uma ironia muito grande, que é a ironia terrível de tudo estar a acontecer.
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A própria palavra “normal” aplicada a uma circunstância destas…
O Caetano [Veloso] dizia há muitos anos: visto de perto, ninguém é normal. [risos] Lembrei-me dessa definição dele quando fiz a canção, embora não tenha nada a ver.
Nas suas motivações, no que a motiva, é uma privação de liberdade muito diferente das privações de liberdade que decorrem de um autoritarismo natural, ideológico, convicto, escolhido como modelo preferencial. No entanto, não deixa de existir privação de liberdade individual neste contexto. Viveu muita coisa ao longo destes anos. Presumo que não tenha nunca vivida uma privação de liberdade deste género, aliás ninguém…
… Não, nem eu nem ninguém.
Isto foi mais complicado? Falou-se de uma invisibilidade deste inimigo que nos retira liberdade individual, o que é uma coisa complexa.
A noção de liberdade e de prisão, digamos, porque já estive preso fisicamente, no Brasil… a noção de prisão pode revestir muitos aspetos. Quando se está por exemplo agarrado a uma cama de hospital, seja neste caso — e houve gente que esteve muito mal, inclusivamente tenho um amigo que esteve ventilado muito tempo — ou não, quando se tem uma doença grave, quando se tem um desgosto de amor, alguém muito próximo que morre e que se vai, são formas de prisão tão grandes como as que é sujeito muitas vezes um povo que tem um líder autoritário.
Mas de qualquer maneira, bem, penso que cá em Portugal nesse aspeto conquistámos uma liberdade instalada que é precária, é sempre precária e é preciso lutar por ela, mas que de qualquer maneira é invejável. Continuo a achar, e não sou só eu, que o 25 de abril foi uma data absolutamente extraordinária.
Perguntei-lhe isto por causa da discussão que tem existido em torno dos prós e contras deste maior policiamento e vigilância de comportamentos — que pode ser interno, das pessoas consigo mesmas, mas que também é externo, das autoridades.
Tem de haver esse equilíbrio, até porque nem toda a gente tem a responsabilidade suficiente para não ter de haver um agente exterior — não no sentido de agente de polícia, mas alguém exterior — a vigiar o que está a acontecer à sociedade. Não somos só responsáveis por nós próprios, somos responsáveis por transmitir muitas vezes uma doença.
Começa-se já a falar daqueles movimentos anti-vacinas, em relação à possível vacina contra este vírus. Mas por exemplo aquelas pessoas que não querem vacinar os filhos contra o sarampo, etc, estão no fim de contas a propagar uma doença que pode ter complicações. Esses movimentos anti-vacinas, sou completamente contra. É evidente que uma vacina tem de ser testada e provar a sua eficácia. Neste momento por exemplo esta fuga para a frente da Rússia em relação a uma vacina… ‘pronto, encontrámos, está tudo bem, a terceira fase ainda não está bem estudada mas está tudo bem’. O Putin diz que a filha também já se vacinou e correu tudo bem. É evidente que é saltar etapas e é perigoso, não é por acaso que está a ser muito olhada de lado pelas autoridades de saúde mundiais.
Este período de maior confinamento alterou-lhe muito a rotina, as práticas, os hábitos? A escrita de canções pode ser feita [mais em casa]. Até que ponto o confinamento interferiu no dia a dia?
Para já não estou a escrever canções [genericamente]. Escrevi esta canção, mas tenho estado é a escrever e a avançar com o terceiro romance. Tenho estado na ficção narrativa, na poesia também. De maneira que…
Ao princípio, é evidente que quando começa aquele período de confinamento [mais] duro fica-se um bocado apanhado e há uma tendência para estar sempre a checkar as notícias e a saber o que se está a passar. Mas depois uma pessoa tem de descentrar um bocadinho, se não dá em maluca. Aí a criatividade ajuda, a ficção sempre me ajudou bastante.
A escapar?
É um bálsamo.
Nesta canção colabora pela primeira vez com o Samuel Úria na composição musical, pelo que sei…
A música pode dizer-se que é a três. Havia uma versão que era só minha, a letra é minha. Depois o Nuno Rafael que fez o arranjo propôs-me algumas alterações melódicas e depois também estava com o Úria e o Úria acabou por entrar um pouco nisso. Não consigo medir o grau de envolvimento do Samuel, que eu estimo imenso, em relação ao Nuno Rafael e às alterações que propôs. Mas digamos que é uma canção que pode-se dizer que é a três. Não era originalmente assim, mas acabou por ter uma adaptação que achei interessante e uma atitude diferente em relação à canção. Mas é uma colaboração muito pontual.
No disco Nação Valente tinha colaborado com vários músicos portugueses, também de outras gerações. Aqui temos o Samuel Úria. Estes novos compositores com quem vai colaborando referem quase sempre o legado deixado por si, pelo José Mário Branco, pelo José Afonso, pelo Jorge Palma, pelos grandes arquétipos da canção escrita em português. Como é que alguém com o seu percurso, longo, que foi acompanhando o que se foi fazendo na música portuguesa, vê o que se está a fazer hoje?
Não consigo resumir isso numa só palavra porque acho que cada pessoa é cada pessoa, cada banda é cada banda, cada compositor é cada compositor. Sobretudo não penso as coisas muito em termos de geração, isso não me interessa muito. Ou as pessoas me estimulam ou não me estimulam, não consigo olhar para o cartão de cidadão e ver qual é a idade real de uma pessoa…
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A minha dúvida era se havia muita gente que o estimulasse e que tenha aparecido mais recentemente.
Há várias pessoas que me estimulam. Inclusivamente, não é por acaso que cantei uma canção da Márcia no [disco] Nação Valente. Há pessoas a quem reconheço a qualidade de trabalho e que fazem coisas muito interessantes. Mas repara, isto não é novo. Isto acontece em várias áreas, mais pop-rock, mais tradicionais, o fado levou também uma renovação. Mas acho que sempre houve isso, sempre houve gente a aparecer que é interessante. Não professo nada aquela coisa: ‘isto já não se fazem canções como se fazia antigamente’. Não, fazem-se outras. Não sou nada passadista, não consigo funcionar assim.
Falava há pouco das referências. É sabido que numa fase inicial ouviu muita coisa: a música francesa, a música anglo-saxónica, a música brasileira até pré-bossa nova. Em alguma fase antes de começar a ser músico e a fazer música, viveu um período de maior devoção a algum artista ou alguma banda? Alguém teve um peso cimeiro?
Houve nomes na canção francesa que foram fundamentais, como o Brel e o Bressans e depois o Gainsbourg. De certo modo o Ferré, menos. Sempre me relacionei com a música brasileira de uma maneira muito intensa, em minha casa ouvia-se muita música e nomeadamente também música brasileira. Houve movimentos que foram muito, muito marcantes como a bossa-nova, com o aparecimento do Jobim e do João Gilberto. Mas também a música anglo-saxónica foi para mim um manancial.
Mas nunca teve posters afixados de nenhum artista? Nunca houve alguém que tenha sido uma referência tal a dada altura que seguisse tudo o que fazia?
Não, não. Mas gostei muito do Dylan. Curiosamente gostei muito dos Beatles e dos Rolling Stones, há sempre aquela coisa de quem é mais [fã de] Beatles e de quem é mais Stones, posso dizer que gosto deles ainda que de maneira diferente. Gostava muito dos Kinks, também. Havia muita música americana que ouvia. Depois apareceu o Zeca, quando eu tinha 18 anos. E o Zeca Afonso foi um estoiro na minha cabeça, porque de repente percebi que se podia fazer canções em português de uma outra maneira. Ele é um desbravador, não é? E uma canção como “Os Vampiros” é uma canção absolutamente histórica, aliás cantei-a durante muito tempo, numa versão muito diferente. Mas o Zeca foi absolutamente fundamental na renovação da música portuguesa.
Vai tendo contacto com quem o ouve. Que impressão é que acha que as pessoas têm de si, como acha que o veem?
Acho que os outros é que têm de responder a isso, não tenho eu de responder [risos]. Guardo essas opiniões para mim próprio, até porque seria um bocadinho presunçoso estar aqui a dizer como os outros me veem. É presunçoso. Eu sei, mas não gosto de partilhar.