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Portugal — e a cidade de Lisboa, de onde vos escrevo — acordou esta segunda-feira numa espécie de Paris em 25 de Agosto de 1944. Para quem não sabe, foi o dia da libertação da capital francesa. Para quem não sabe da libertação de quê, da ocupação nazi durante a Segunda Guerra. Para quem não sabe o que foi a Segunda Guerra, feche este artigo e vá ler resumos dos próximos episódios das novelas ou assim.
Ao fim de três longos e penosos meses de confinamento, a cidade volta a acordar vagamente do torpor dos meses de Inverno em que apenas saímos de casa para dar um passeio por três ruas do bairro arrastando um cocker spaniel; para comprar vinho, vodka, cerveja, whisky, cachaça e outros bens essenciais; para ir à farmácia comprar antidepressivos e caixas de preservativos que se acumulam na gaveta da mesa de cabeceira esperando melhores dias; e para ir ao vidrão despejar as garrafas mencionadas acima. Isto, claro, se não fizermos parte do grupo de pessoas esmagadas pelo capitalismo que, sem outra escolha, continuaram nos seus trabalhos. Como os rapazes e raparigas das entregas de almoços e jantares que encomendámos dia-sim-dia-sim, porque estamos demasiados deprimidos/bêbedos para cozinhar. Vai ficar tudo bem.
Claro que Lisboa não pode celebrar como a Paris de 1944. Com cocaína, orgias, absinto e danças eróticas em cima de uma mesa do Le Chat Noir ou do Moulin Rouge. Mas, se tudo correr bem, também os lisboetas acordarão amanhã, se não com cinco marinheiros ao lado na cama, pelo menos no meio de uma poça do seu próprio vómito.
Pois é. Se estavam à espera de uma elegante e cultivada visita guiada pelos mais interessantes museus da cidade — que também abriram nesta segunda-feira — desenganem-se. Aqui a peregrinação é outra.
O fotógrafo Filipe Amorim e eu enfiámo-nos no seu Smart e fomos fazer uma ronda por seis das esplanadas mais conhecidas da cidade das sete colinas. Como, naturalmente, não nos podíamos sentar numa esplanada sem pedir qualquer coisa, fica já aqui o aviso de que consumimos bebidas alcoólicas numa quantidade que, no caso do Filipe e em retrospetiva — ele será presente a um juiz amanhã — o deveriam ter impedido de guiar. No meu caso, já veremos.
Esplanada do Lisbon Story Center, Terreiro do Paço
Começámos pela praça mais emblemática de Lisboa e, salvo melhor opinião, uma das mais belas da Europa, a deitar para o Tejo. Claro que a nenhum lisboeta no seu perfeito juízo lhe passaria pela cabeça ir a uma esplanada no Terreiro do Paço. Seria o mesmo que um nova-iorquino ir almoçar ao McDonald’s da Time Square. Ou um londrino ir comer fish and chips em Piccadilly. Ou um parisiense ir jantar aquele restaurante da Torre Eiffel. Ou um morador de Campo de Ourique ir comprar droga ao Casal Ventoso. Ah, esperem. Isso acaba por fazer sentido. Mas creio que perceberam a ideia.
A esplanada do Lisbon Story Center era a única aberta em toda a praça. Soavam as badaladas do meio-dia na Sé quando nos sentámos no meio de uma mão cheia de turistas. A primeira impressão das recém-abertas esplanadas é a constatação de que o serviço, que já não era famoso, está agora péssimo. Simpático, sim, que está toda a gente feliz com esta liberdade condicional. Mas, por exemplo, uma cerveja que antes da Grande Pandemia (daqui para a frente GP) demoraria quinze minutos a chegar, demora agora o dobro. Verdade seja dita, ninguém se importa. Vai ficar tudo bem.
Não sou ótimo a avaliar nacionalidades, mas diria que as mesas estavam ocupadas por um assortiment de turistas europeus que provavelmente moram em Lisboa. Um furo acima de estudantes de Erasmus, mas um furo abaixo de jovens empreendedores de start-ups. Enfim, numa análise mais psicológica, o género de pessoas que acha boa ideia marcar um encontro numa esplanada no Terreiro do Paço. Com o belo passeio da Ribeira das Naus mesmo ali ao lado, sou levado a concluir que preferem beber umas cervejas num sítio onde possam ir à casa de banho. Com alguma desilusão, ainda não estava ninguém bêbedo. Aborrecidos, pegámos no carro e fomos embora. No meio da praça deserta, D. José, montado no seu cavalo, continuou a esmagar em vão as serpentes que lhe enfeitam o pedestal.
Esplanada do Príncipe Real
Rumámos colina acima até ao jardim do Príncipe Real. Aqui, num quiosque do tempo em que os quiosques ainda não se chamavam quiosques, encontrámos por fim lisboetas. Uns lisboetas pouco risonhos. Algo cinzentos, até. Tristonhos. A esplanada fica à sombra de grandes e centenárias árvores, o que também não ajuda. A sombra faz péssimo à pele. Tive ocasião de escutar uma ou duas conversas das mesas vizinhas, e prontamente me arrependi. Fala-se, claro, da GP. Parece ser opinião geral dos lisboetas — pelo menos destes cinco — de que pouco faltará para voltar tudo para casa. Como não amar esta eterna veia trágica? Cheguei a imaginar que entravam em cenas dois guitarristas para acompanhar o fado da Covid. Porém não.
Ao contrário dos turistas do Terreiro do Paço, que escolheram cores mais alegres — camisas e polos para eles, vestidos leves para elas e camisas, polos e vestidos leves para elxs — os lisboetas do Príncipe Real vão mais para as t-shirts de cores neutras. Talvez as mesmas com que dormiram nos últimos quinze dias. O cheiro das árvores em flor impediu-me de tirar a prova dos nove. Vai ficar tudo bem. Não era, contudo, ainda aqui que encontrámos a chusma de pessoas que imaginámos. Longe, muito longe de uma Paris em 1944. Seguimos.
Miradouro Sophia de Mello Breyner, na Graça
Tem graça, a Graça. De todas as coisas que esperei para este dia — que incluíam ser atropelado por um elétrico, porque desde pequeno que tenho um pesadelo em que sou atropelado por um elétrico desgovernado na Calçada da Estrela —, a última era que este miradouro, um dos mais bonitos e frequentados de Lisboa, estivesse fechado nesta verdadeira rentrée das esplanadas. Mas assim foi. Cadeiras e mesas empilhadas, trancadas com cadeados, uns quantos lisboetas apreciando a vista ou vendendo louro prensado por marijuana, apenas. Assim, não sei se irá ficar tudo bem.
Uns metros à frente do Miradouro Sophia de Mello Breyner, na Graça
Porquê ir a uma esplanada com vista sobre a cidade se, uns metros mais à frente, podemos beber tranquilamente umas imperiais com vista, de um lado, para uma fila de carros estacionados e, do outro, para uma capela mortuária com o respetivo velório a decorrer? Foi o que pensámos nós e as outras pessoas que se sentaram nas esplanadas em frente ao Botequim da Graça e das cervejarias circundantes. Entretanto, tinha chegado a hora de almoço e era o que a maior parte das pessoas estava a fazer. A almoçar. Na parte mais movimentada da esplanada, um único homem atendia como podia os clientes, que não eram poucos. E como podia ele? Mal. Bastante assarapantado, corria de mesa em mesa. “Café não temos, pode ser um café?”, perguntou-nos, pousando em cima da mesa duas garrafas de cerveja. É preciso notar que uma parte das pessoas que trabalha na restauração está, mais coisa menos coisa, há um ano sem experimentar a adrenalina de um restaurante ou uma esplanada cheia. E acaba por perder-se o ritmo. Certas coisas que se desaprendem.
Tal como todos desaprendemos a dar um beijo, a dar um abraço, a tomar banho todos os dias. Olhando em volta, os lisboetas elegeram como prato da primeira fase do desconfinamento o bitoque com batatas fritas e ovo a cavalo. E salada num prato à parte, se faz favor. Obrigado. A clientela desta esplanada oscilava entre os jovens profissionais liberais, contentes de poder voltar a ter um almoço de trabalho que podia ter sido resolvido por um email, os jovens com imensos cães, os casais de meia idade felizes de poder voltar a almoçar sem trocar uma palavra e uma ou outra pessoa vinda do velório ao lado, que se lixe, estou cheio de fome e, assim como assim, a tia Teresa era uma cabra mesmo. Vai ficar tudo bem. Sobretudo, claro, para a tia Teresa, que Deus tenha. Seguimos.
Jardim de Belém
Apontámos então a parte da frente do carro para Belém. Íamos a achar que os jardins do bairro mais visitado de Lisboa estariam cheios de gente, ao barrote, como se costuma dizer. Tipo, pariu a galega. (Sem querer revelar os meus truques, devo dizer que não faço ideia se Belém é o bairro mais visitado de Lisboa, mas é para não repetir outra vez “Belém”, que as repetições ficam feias e atrapalham a leitura). Pariu a galega, dizia eu. Pois se pariu, não foi em Belém. Quer as esplanadas quer os jardins estavam desoladoramente vazios de gente. Nem um único turista à porta da segunda coisa mais sobrevalorizada de Portugal — depois da poesia de Florbela Espanca —, os pastéis de Belém. Fomos comprar mais umas cervejas. Não direi em que restaurante, mas deram-nos as garrafas dentro de sacos de papel. Foi o toque mais sofisticado desta viagem. Saímos do restaurante sorridentes, sentindo-nos verdadeiramente cosmopolitas, como sem-abrigo de Manhattan. Sim, eu sei que é um problema social gravíssimo, mas não é disso que estamos aqui a tratar. Não me estraguem a imagética.
Fizemos então como as poucas pessoas que salpicavam o jardim do bairro dos Jerónimos (Viram? Mais uma vez, para não repetir “Belém”). Fomos bebê-las para um pagode chinês, e foi um pagode. À nossa chegada, uma francesa com bom ar fugiu assustada, levando consigo os cinco filhos. É incrível o poder de uma garrafa dentro de um saco de papel.
O sol agora começava a aquecer, ainda que sopre sempre no bairro do palácio uma suave brisa do rio que lhe corre aos pés. Credo, pareço a Florbela Espanca, caraças.
Do pagode chinês, ficámos a ver os quatro casais que namoravam em cima de toalhas estendidas na relva, as sete pessoas de ar absorto que engoliam hamburgers do McDonald’s e a francesa que afinal não era parva nenhuma e namorava com um tipo com um terço da idade dela. Vai correr tudo bem.
Quiosque em Benfica
Quisemos acabar num bairro onde, de facto, morassem lisboetas. E fomos até um quiosque em Benfica, num lugar que já foi um parque de estacionamento debaixo de um viaduto da Segunda Circular, mas que agora é um sítio bastante agradável. Sentados nuns bancos pós-modernos de betão brutalista, ficámos a observar o público. Interessante demografia: jovens de ar desportivo, despreocupado e até vagamente alegre, misturavam-se com velhos a cair da tripeça. As pessoas de meia idade, em Benfica, ou estão a trabalhar ou parecem todas jovens de ar desportivo, despreocupado e até vagamente alegre, ou velhos a cair da tripeça. Bebemos mais umas quantas cervejas. E refletimos na dureza deste confinamento. Nos dramas verdadeiros da GP, aqueles mesmo a sério. E nos pequenos dramas de quem tem sorte de poder ter pequenos dramas. O tédio dos dias todos iguais, a falta dos amigos, dos beijinhos dos avós, e porcarias assim. Rimos um bocado. Chorámos um pouco. Imaginámos o que será voltar à multidão de um concerto de Verão. Estávamos precisamente a contar histórias do Boom quando chegaram os polícias. Foram simpáticos, dentro das circunstâncias. É que, sem nos darmos conta, tínhamos deixado para trás a esplanada, tínhamos entrado no carro e, pelos vistos, é gravíssimo entrar numa via rápida em contramão.
Trocámos um aceno rápido enquanto o Filipe entrava para o banco de trás do carro da polícia e eu assegurava mais uma vez aos agentes que não o conhecia de lado nenhum.
Foi um dia bem passado. Ao fim de um ano, não pode ser senão emocionante voltar a ver Lisboa um bocadinho mais Lisboa. Com um bocadinho mais de vida. Com os lisboetas um bocadinho mais na rua. Ainda não foi hoje que encheram aos magotes as esplanadas da cidade. Esperemos que por cautela. Era bonito e sensato. Mas, provavelmente porque é que segunda-feira, há os empregos e assim, e os aspiradores inteligentes não se pagam sozinhos. Seja como for, ainda não será amanhã que acordarão com cinco marinheiros ao lado na cama, nem no meio de uma poça do seu próprio vómito. Mas, quando a GP passar de vez, poderemos todos fazer uma festa nem bonita nem sensata, como todos temos saudades. Como era dantes. Como em Paris em 1944. Numa cidade, num mundo, enfim libertado. Vai ficar tudo bem.
Ah, e o Filipe não bebe e guia bastante bem.