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Springsteen, Bowie e a música que derrubou o comunismo

Bruce Springsteen vai tocar em Lisboa este ano e não planeia derrubar nenhum muro. Mas há quase 30 anos, em Berlim, foi diferente. Ele, Bowie e outros tiveram um papel importante no combate à RDA.

A morte de David Bowie despertou inúmeros reconhecimentos públicos, todos eles agradecendo a sofisticação artística do “camaleão” inglês. Mas houve um desses reconhecimentos que se destacou. Através dos 140 caracteres do Twitter, o gabinete dos Negócios Estrangeiros do Estado alemão agradeceu a Bowie o seu contributo para o derrubar do Muro de Berlim e para a consequente reunificação da Alemanha. Terá sido um exagero? Sim e não.

É habitual associarem-se à música os poderes de desafiar limites, de ser porta-voz de inquietudes geracionais, de inspirar transformações sociais e políticas. Só que há casos em que a música é muito mais do que mero factor de motivação ou inspiração, tornando-se, ela própria, arma política. Na Guerra Fria, assim aconteceu com Bowie, Springsteen e os Pink Floyd. É, claro, discutível o seu papel no derrubar do Muro de Berlim. Mas é inquestionável como as suas canções e concertos abalaram as fundações do comunismo na República Democrática Alemã (RDA). Esta é a história de como a cultura musical americana e anglo-saxónica tomou a primeira fila do combate contra o Bloco de Leste.

Já em 1961, aquando da construção do Muro de Berlim, a cultura popular ocidental havia sido considerada, pelos líderes comunistas da RDA, uma ameaça para o socialismo.

A afirmação de movimentos culturais, nomeadamente de subculturas inspiradas pelo rock’n’roll, pelo cinema norte-americano e pela moda, marcou as décadas de 60 e 70 nos países ocidentais, em particular no Reino Unido. Aos primeiros sinais de contágio à juventude da RDA, as autoridades soviéticas perceberam que tinham um problema político entre mãos: a promessa de um modo de vida superior àquele do capitalismo não era compatível com a adesão em massa aos produtos culturais do Ocidente. O problema, em si, não era novo – já em 1961, aquando da construção do Muro de Berlim, a cultura popular ocidental havia sido considerada, pelos líderes comunistas da RDA, inerentemente política e, como tal, uma ameaça para o socialismo. A novidade era a escala: o rock’n’roll estava por todo o lado.

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O Estado dava-lhes Lenine, eles queriam John Lennon

Como conter a sua influência na juventude? A pergunta ocupou os líderes comunistas da RDA, que optaram por apoiar bandas “oficiais” do regime e por tolerar pequenas doses de música ocidental – isto perante a evidência de que era impossível erradicá-la, como explica o historiador William Jay Risch, em Youth and Rock in the Soviet Bloc (2015, pp. 7-8). Foi, aliás, essa a opção das lideranças em toda a União Soviética, cabendo-lhes fixar o grau de tolerância à cultura ocidental – o que nem sempre faziam com coerência. Por exemplo, na Polónia, a perseguição ao rock’n’roll não impediu que os The Rolling Stones fossem contratados em 1967 para tocar duas vezes no mesmo dia, no Palácio da Cultura em Varsóvia, para entretenimento dos membros do Partido Comunista.

Na RDA, tudo dependia da filtragem a cargo da VEB Deutsche Schallplatten, a editora do Estado e a única licenciada para editar discos no país, cumprindo regras apertadas. Legalmente, só a música editada no país podia ser difundida nas rádios e nas discotecas, desde que obedecendo a quotas de, pelo menos, 60% de música de artistas socialistas e, no máximo, 40% de música ocidental. Ou seja, a VEB editava e distribuía tudo. Por um lado, os trabalhos de artistas nacionais e de outros blocos socialistas. Por outro, pequenas (e caras) edições de artistas ocidentais – the Eagles, ABBA, Santana, Dire Straits, The Rolling Stones, entre outros.

Os jovens da RDA aspiravam a ter o que existia do outro lado da Cortina de Ferro

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No papel, a solução tinha tudo para funcionar. Mas, na prática, havia um obstáculo que se revelou inultrapassável: a música “oficial” do regime era demasiado má, uma cópia martelada do pop/rock ocidental. E, nos dias de lançamento dos discos estrangeiros, as filas junto às lojas diziam tudo – as pessoas queriam a música que vinha do outro lado do muro. Por isso, nas discotecas, a “quota socialista” era ignorada; em casa, as antenas captavam as rádios que emitiam do Ocidente; e, nas ruas, os discos de rock invadiam o mercado negro. Em plena década de 80, a juventude da RDA estava viciada em rock’n’roll inglês e americano. Para o historiador Timothy Ryback (em Rock Around the Bloc, 1990) e para a politóloga Sabrina Ramet (em Rocking the State, 1992), que estudaram o impacto da música na transformação social que levou à queda do Muro de Berlim e da URSS, foi o princípio do fim: os jovens estavam a afastar-se definitivamente dos ideais marxistas, entusiasmados com a irreverência do rock e desiludidos com as grilhetas da sociedade soviética. Eles queriam o que existia do outro lado da Cortina de Ferro – liberdade e John Lennon. O Estado só lhes impunha restrições e Vladimir Lenine.

1987: quando Bowie chamou pelos heróis – e eles ouviram

“Enviamos as nossas felicidades a todos os amigos que estão do outro lado do muro”. Foi assim que, em alemão, David Bowie introduziu a canção “Heroes”, no seu concerto em Berlim ocidental, na praça junto ao Reichstag e a escassos metros do Muro de Berlim. Bowie, que viveu em Berlim nos anos 70, conhecia o sentimento de amputação que o muro impôs sobre a cidade. E “Heroes” era o seu manifesto – uma história de amor que resistia ao medo, à violência, à ausência de futuro, a tudo o que o muro simbolizava.

[Veja David Bowie a cantar “Heroes” em Berlim, em 1987]

https://www.youtube.com/watch?v=0C7FlnBt1q4

A localização fora escolhida propositadamente, com o objectivo de que o som chegasse a Berlim Leste, gerando curiosidade à volta do evento desse lado do muro – não era, obviamente, apenas um concerto, mas também um acto político. Vivia-se o dia 6 de Junho de 1987, o primeiro de três dias consecutivos de música no mesmo local (com Eurythmics, de Annie Lennox, e Genesis, de Phil Collins). E Bowie agarrou a oportunidade de tocar para todos os berlinenses. Do lado ocidental, levou cerca de 70 mil pessoas ao êxtase. Do lado oriental, conseguiu que os milhares que se concentraram para o ouvir à distância recebessem a sua mensagem emocionada e lhe respondessem à letra. As palavras de ordem soaram (“o muro tem de cair!”) enquanto centenas marchavam contra os militares que guardavam as portas de Brandenburgo. O confronto durou três noites. Até que, ao som de Genesis, a tensão acumulada ao longo dos três dias explodiu numa violenta carga policial, com mais de 150 pessoas detidas, quase todas com menos de 30 anos. A polícia estancou o protesto mas deixou marcas: dali para a frente, o regime perdera o apoio dos jovens.

O assunto fez manchete em todos os jornais. E, uma semana depois, Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, aterrou em Berlim. Discursando junto às portas de Brandenburgo, foi a vez de também ele insistir no apelo e dirigi-lo ao então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev: “Tear down this wall”. Nada voltou a ser igual na Berlim comunista.

[Veja o noticiário de um canal francês sobre tumultos em Berlim leste, junto ao muro, no terceiro dia do festival, em 1987]

1988: o rock no coração da Guerra Fria

Os distúrbios junto ao muro convenceram as autoridades da RDA da necessidade de concorrer com Berlim Ocidental em termos de oferta cultural. Se havia concertos rock de um lado, teria também de haver do outro. A missão foi entregue à juventude do regime (FDJ – Freie Deutsche Jugend, um dos braços do partido comunista), que ficou responsável pela organização de concertos que saciassem a população mais jovem. A FDJ ensaia, então, a promoção de pequenos concertos de artistas nacionais e, posteriormente, o de Bob Dylan (17 de Setembro de 1987), com evidente sucesso. Agora era oficial: o rock entrava no palco da Guerra Fria.

Em Março de 1988, a pretexto do 42.º aniversário da FDJ, esta organiza um concerto sem bilhetes postos à venda – foram distribuídos pelas entidades do regime, sem referência à banda principal que viria tocar, para prevenir excessos na divulgação. Mas, no passa-palavra, a informação chegou a todo o lado: os Depeche Mode, banda britânica particularmente apreciada pela juventude da RDA, tocaria em Berlim Oriental a 7 de Março de 1988. Alguns nem acreditaram que fosse possível. Outros acharam que era o momento das suas vidas. A histeria foi tal que, no mercado negro, trocavam-se os bilhetes por automóveis.

A FDJ acreditou que o caminho era esse e reservou, para Junho, um festival em Berlim com vários artistas nacionais e internacionais. O evento tinha objectivos políticos, pretendendo atrair mais jovens à militância na juventude comunista, que sofrera uma sangria – afinal, os tempos eram outros e nenhum adolescente queria andar fardado em desfiles. Em termos de bilheteira, o festival foi um sucesso; em termos de adesão política, foi um fracasso – ao subirem ao palco, os representantes do regime foram vaiados. Os jovens queriam música, em vez de ideologia.

Quando Bowie morreu, o Estado alemão agradeceu o seu contributo para a queda do Muro de Berlim

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A música veio, só que surgiu sob a forma de competição política, o que tornou a agenda de concertos do Verão de 1988 particularmente intensa. No dia 1 de Junho, Joe Cocker iniciou a época de concertos para os jovens da Berlim comunista. A 19 de Junho, enquanto o festival da FDJ decorria na Berlim Oriental, Michael Jackson cantava junto ao Reichstag, para grande ansiedade da Stasi (que programara obsessivamente um plano de contingência). Dias antes, a 10 de Junho, a RDA agitava-se com James Brown, ao mesmo tempo que os Pink Floyd ocupavam a praça do Reichstag.

Era a Guerra Fria através do rock, sendo que muitos artistas sentiam a necessidade de fazer os seus disparos. Do lado ocidental, era fácil. Michael Jackson não se coibiu de deixar mensagens políticas contra o muro e os Pink Floyd exigiram como condição que as colunas estivessem direccionadas e o volume suficientemente alto para que toda a Berlim Oriental vibrasse (isto quando havia ordem para baixar os decibéis) – o promotor respeitou a exigência e foi multado. Do lado da RDA, nenhum artista se atrevia a introduzir mensagens políticas no seu espectáculo – nem Joe Cocker nem James Brown.

Os líderes da RDA não resistiram a fazer do concerto de Springsteen um acto de propaganda. O músico explodiu e recusou-se a tocar. Após negociações turbulentas, “The Boss” reconsiderou.

19 Julho 1988: “Born in the USA” ou a celebração da liberdade

As autoridades comunistas ansiavam por uma vitória – um artista cujo nome fosse tão grande que abafasse a concorrência de Berlim Ocidental. A oportunidade surgiu quase por acaso, com Bruce Springsteen (“The Boss”), quando a superestrela americana em tour nas estradas europeias se apercebe da ausência de agendamentos na capital alemã. Bastou um telefonema para apalavrar o evento – a RDA estava muito interessada e, com meras três semanas de antecedência, a data foi anunciada (19 de Julho). O concerto seria mais marcante do que todos imaginavam.

A história do concerto é contada por Erik Kirschbaum, jornalista americano correspondente da agência Reuters na Alemanha, no livro Rocking the Wall (2013). A comitiva de Springsteen sabia ao que ia e a última coisa que pretendia era sarilhos. O plano era chegar, manter a discrição, tocar, partir e não provocar nenhum incidente político ou ser preso nos entretantos. Tudo corria bem. Só que, após o primeiro contacto com os promotores no hotel, o manager de Springsteen reparou na inscrição nos bilhetes: “Concerto pela Nicarágua”. O evento destinava-se a apoiar a Nicarágua contra a administração americana, precisamente no dia de aniversário da revolução sandinista. Ou seja, os líderes comunistas da RDA não resistiram a fazer da sua vinda um acto de propaganda. Springsteen explodiu e recusou-se a tocar. Após negociações turbulentas, “The Boss” reconsiderou sob uma condição: quando a banda chegasse ao local, todos os posters referentes à Nicarágua e todas as exteriorizações de ordem política teriam de ter desaparecido do recinto. Assim foi.

Springsteen e Bowie mostraram que os heróis se forjam nos pequenos actos de resistência à opressão

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O mal-estar estava instalado e Springsteen sentia-se traído e desconfiado. Decidiu, então, vingar-se: chamou o motorista e pediu-lhe que traduzisse uma frase de inglês para alemão, de modo a que ele a apontasse foneticamente e a treinasse para, mais tarde, a pronunciar em palco. “Eu não sou a favor ou contra qualquer governo; apenas vim para tocar rock’n’roll para vocês, na esperança de que, um dia, todos os muros estejam derrubados”. A pedido do manager, que entrou em pânico com a ideia, Springsteen substituiu “muros” por “barreiras”, atenuando o impacto nas sensibilidades comunistas. E disse-o. Para a plateia de cerca de 200 mil pessoas, não fez diferença – toda a gente percebeu. A explosão foi geral.

Ao longo de mais de três horas, Springsteen cantou, gritou, saltou, tocou. O público, sedento, foi pedindo mais. Até que, ao som do single “Dancing in the Dark”, o tempo parou. Cumprindo a tradição de ir resgatar uma fã à plateia para dançar com ele em palco, “searching for my baby”, Springsteen puxou para si uma jovem da primeira fila. A simplicidade mais sincera, a felicidade no seu estado mais puro, a incredulidade, a libertação e a esperança de alma cheia de quem percebe que, afinal, os milagres acontecem. Tudo isto invadiu o rosto da rapariga que dançou e se agarrou ao pescoço de Springsteen, comovendo a banda e os milhares que assistiam. Um momento perfeito. Por fim, soaram os acordes de “Born in the USA”. Springsteen cantou a plenos pulmões, mas a multidão abafou-o. Sim, aquele era o hit single de Springsteen. Mas, ali, não foi recebido apenas como uma canção. Era um hino à liberdade e uma tomada de posição. As bandeiras americanas em riste espalhadas na multidão não deixavam dúvidas.

[Veja o momento em que Bruce Springsteen canta “Dancing in the Dark” e dança com uma rapariga da plateia]

O concerto de Bruce Springsteen foi, de longe, o maior da história da RDA. Mas o que o tornou memorável não foi a dimensão da plateia. Foi que, durante aquela noite de 19 de Julho de 1988, deixou de haver RDA ou muro. Ali, naquelas três horas, todos foram livres. Naqueles corações, já não havia como voltar atrás.

O Muro de Berlim começou a ser derrubado no dia 9 de Novembro de 1989, 16 meses após o concerto de Springsteen. Dois anos mais tarde, acabou a URSS. Seria uma ingenuidade acreditar que tudo isso sucedeu graças aos acordes de Bowie, Springsteen ou Pink Floyd, como algumas interpretações românticas sugerem. Não há, no entanto, como duvidar do papel que a música desempenhou nos últimos anos da Guerra Fria, sobretudo numa Berlim dividida. Foi, de ambos os lados do muro, uma continuação da política por outros meios. Um palco de conflito. Mas, também, um palco de sonhos para os alemães da RDA, cujo regime lhes suprimiu as liberdades. Foi isso que o Ocidente explorou. Foi isso que o bloco soviético não conseguiu conter. E foi aí que Bowie e Springsteen fizeram a diferença: mostraram que os heróis se forjam nos pequenos actos de resistência à opressão.

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