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[Este é o sétimo de oito artigos sobre a história e nomenclatura do calçado e suas marcas mais conhecidas. Os anteriores podem ser lidos aqui:]

Sapatos que fazem a cabeça andar à roda

Hoje, para uma proporção considerável da população dos países desenvolvidos – sobretudo nos escalões de rendimentos superiores – os sapatos têm uma importância que transcende largamente a sua função. Eles fazem parte do mundo da moda e, como tal, o critério que pesa mais no momento de os comprar não são as suas qualidades objectivas – conforto, ergonomia, funcionalidade, durabilidade – mas o estilo de vida e a aura associados à marca e a certos modelos em particular. Este equívoco tem sido activamente fomentado pelas marcas “de prestígio”, pois sabem que quanto maior for o hype em torno dos seus produtos, maior será o preço que poderão cobrar por eles.

Se, seja qual for o ramo, os segmentos de luxo têm quase sempre uma componente de ludíbrio, no caso dos sapatos a situação é ainda mais perversa. Faça-se uma comparação com o que se passa no mundo dos automóveis: um Bentley Mulsanne custa, em Portugal, para cima de 403.000 euros, quantia suficiente para comprar 35 Dacia Sandero, o automóvel mais barato no mercado português, com custo a partir de 11.300 euros. Poderá discutir-se se o conforto, segurança, desempenho e fiabilidade oferecidos pelo Bentley justificam o seu preço; poderá apontar-se que a margem de lucro da Bentley é desproporcionadamente alta; poderá perguntar-se se não haverá um modelo de outra marca de luxo que ofereça níveis de conforto, segurança, desempenho e fiabilidade equivalentes aos do Bentley Mulsanne por menos de 403.000 euros; poderá questionar-se se o Bentley Mulsanne é o automóvel certo para as necessidades de um dado condutor; poderá argumentar-se que os níveis de conforto, segurança, desempenho e fiabilidade proporcionados pelo Dacia Sandero são suficientes para satisfazer as necessidades objectivas da esmagadora maioria dos condutores. O que é inquestionável é que os níveis de conforto, segurança, desempenho e fiabilidade do Bentley Mulsanne são superiores aos do Dacia Sandero.

Porém, quem paga 3 milhões de dólares por uns Stuart Weitzman Rita Hayworth Heels obtém um sapato que, embora empregue materiais nobres e preciosos e tenha consumido muitas horas de trabalho de artesãos especializados, é mais desconfortável, anti-anatómico e disfuncional do que uns anódinos ténis de “marca branca” de 20 euros.

Quem calça uns Stuart Weitzman Rita Hayworth Heels pode, lá no seu íntimo, admitir que o sapato não proporciona conforto, estabilidade ou desenvoltura de movimentos, mas o que lhe importa não são as suas sensações físicas e a sua saúde, é o deslumbramento e inveja que suscita nas pessoas que a rodeiam – o que requer, claro, que essas pessoas estejam a par da hierarquia do mundo dos sapatos de luxo e do lugar que os Stuart Weitzman Rita Hayworth Heels nela ocupam.

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Stuart Weitzman Rita Hayworth Heels: Esmagamos os seus dedos por três milhões de euros

Marcas de luxo clássicas

Se as marcas de sapatos de luxo têm o poder de transtornar muitas pessoas e ocupar um lugar proeminente nos seus sonhos, em contraste, os seus nomes são destituídos de imaginação, pois limitam-se a reproduzir o nome dos seus fundadores/criadores e a vida da maioria destes raramente oferece motivos de interesse.

A Ferragamo é uma excepção, já que o seu fundador, Salvatore Ferragamo (1898-1960), proveio de um meio que não podia estar mais distante das passerelles de Paris e das lojas de luxo da Quinta Avenida: foi o 11.º de 14 filhos de uma família pobre de Bonito, uma vilazita num recanto rural da província de Avellino, na Campania. Reza a lenda que, aos nove anos, mal começara a trabalhar como aprendiz de sapateiro, criou o seu primeiro sapato, destinado a uma das irmãs. Em 1915 seguiu o caminho de muitos jovens italianos e, em particular, de muito dos seus conterrâneos de Avellino: emigrou para os EUA, onde já estavam alguns dos seus irmãos, e foi trabalhar numa fábrica de botas de cowboy em Boston. Os irmãos Ferragamo mudaram-se depois para a Califórnia, onde abriram, em Santa Barbara, uma modesta oficina de reparação e fabrico de calçado, cuja fama de competência e qualidade foi passando de boca em boca e que levou a que um aderecista encomendasse aos irmãos alguns pares de botas de cowboy para um western. Aberta esta fresta para o mundo de Hollywood, não tardou que Ferragamo estivesse atarefadíssimo a fornecer sapatos para super-produções históricas (como Os dez mandamentos, de Cecil B. De Mille) e fazer sapatos por medida para as estrelas de cinema.

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Salvatore Ferragamo, fundador de uma das mais prestigiadas marcas de sapatos de luxo, em 1956, com os moldes dos sapatos de algumas das estrelas de cinema e aristocratas para quem fabricou sapatos por medida

Face à torrente de solicitações e à falta de artesãos especializados nos EUA, em 1927, Salvatore regressou a Itália, para fundar em Florença uma fábrica, Salvatore Ferragamo S.p.A. A ascensão da Ferragamo sofreu um rude golpe com o advento da Grande Depressão, mas, após ter declarado insolvência, a empresa conseguiu regressar ao seu antigo esplendor em 1938 e em 1948 abriu a sua primeira loja nos EUA.

A Ferragamo (o nome foi encurtado no final de 2022) está cotada em bolsa mas a família Ferragamo continua a deter o seu controlo. A excepcionalidade do percurso de Salvatore Ferragamo e a sua obsessão perfeccionista motivaram o realizador Luca Guadagnino (Eu sou o amor, Chama-me pelo teu nome) a fazer um documentário sobre ele, intitulado Salvatore: Shoemaker of dreams e estreado no Festival de Veneza de 2020.

[trailer do documentário Salvatore: Shoemaker of dreams:]

A Berluti foi fundada em Paris em 1895 pelo italiano Alessandro Berluti, com o declarado propósito de calçar a elite. E, com efeito, os seus sapatos foram vistos nos pés de Isadora Duncan, Helena Rubinstein e Elizabeth Arden, e quando se especializou no sapato para homem teve como clientes Jean Cocteau, Andy Warhol, François Truffaut e Yves Saint-Laurent. Em 2012 a Berluti foi adquirida pelo grupo de luxo LVMH (que inclui a Louis Vuitton, a Möet et Chandon e a Hennessy).

O modelo Alessandro Gallet Scritto Leather Oxford, da Berlutti, tem preço proporcional ao comprimento da sua designação: 1960 euros

A Testoni foi fundada em 1929 em Bologna – um dos polos da indústria de calçado italiano – por Amedeo Testoni e fez sapatos por medida para celebridades tão contrastantes quanto Sophia Loren (tamanho 38) e o Gigante Baba (Shohei Baba), o campeão japonês de wrestling (tamanho 51). Em 2018 – ano em que o seu volume de negócios foi de 30 milhões de euros – a Testoni foi adquirida na íntegra pelo Sitoy Group, de Hong Kong.

Sant’Eulalia Fibbia in Pellle da Amedeo Testoni (preço de retalho: 1250 euros

Sergio Rossi – mais um italiano – fundou a marca que leva o seu nome em 1951, em San Mauro Pascoli, a sua terra natal. Tal como a Ferragamo e a Testoni, a Sergio Rossi tem vínculos com o mundo do cinema, tendo os seus sapatos surgido nos pés de Anita Ekberg, em La dolce vita (1959), de Federico Fellini, e de Silvana Magano, em Violência e paixão (1974, Gruppo di famiglia in un interno), de Lucchino Visconti, e no cartaz de Saltos altos (1991, Tacones lejanos), de Pedro Almodovar. Também estrelas pop como Madonna, Beyoncé, ou Lady Gaga têm usado sapatos Sergio Rossi.

Se nos sapatos de senhora as marcas clássicas apresentam grande diversidade, nos sapatos para homem tendem a focar-se em modelos de recorte tradicional, quase sempre feitos de couro. A aura de “classe” que o mundo da “alta sapataria” associa ao couro (por contraposição aos desprezíveis materiais sintéticos) leva a que muitos modelos possuam solas em couro, apesar se estas terem um desempenho lamentável no que respeita a durabilidade, aderência e impermeabilidade (três parâmetros fundamentais que definem a qualidade de uma sola). Mas é indubitável que tem outra “classe” escorregar e partir uma perna envergando sapatos de sola de couro.

“Arquivo” da fábrica-sede da Sergio Rossi em San Mauro Pascoli

Christian Louboutin: O símbolo da conquista

As histórias das marcas de sapatos de luxo mais recentes – Stuart Weitzman, Christian Louboutin, Kathryn Wilson, Brian Atwood, Walter Steiger, Manolo Blahnik ou Jimmy Choo – são, em geral, ainda mais insípidas do que as das marcas “históricas”. Neste baço panorama, destaca-se a Christian Louboutin, cujo fundador teve um início de vida que não fazia prenunciar que se tornaria num dos mais venerados designers de sapatos e que estes se converteriam em símbolos máximos de estatuto social.

Christian Louboutin nasceu em Paris, em 1964, numa família modesta – o pai era marceneiro, a mãe dona de casa – e desde cedo se sentiu como um “corpo estranho”, quer na família, uma vez que as suas irmãs eram muito mais velhas do que ele e tinham cabelo louro e olhos azuis, enquanto ele era muito moreno (muitos anos mais tarde, uma irmã revelar-lhe-ia que era filho de um amante egípcio da mãe), quer na escola, em que não via interesse algum e de onde foi expulso três vezes, antes de fugir de casa, aos 12 anos, e abandonar de vez os estudos. Cedo despontou nele um fascínio por sapatos e, ainda adolescente, já desenhava e construía sapatos para as bailarinas das Folies Bergères, em Paris, onde arranjou trabalho nos bastidores, fazendo um pouco de tudo. Concebeu sapatos, em regime de freelance, para marcas como Chanel e Yves Saint Laurent. A sua reputação foi crescendo e em 1991 fundou a marca que leva o seu nome e que se distingue por possuir solas vermelhas – um elemento que Louboutin reclamou, numa acção judicial, como sendo atributo exclusivo da sua marca (ver capítulo “Luís XIV, o Rei dos Influencers” em Dos pés descalços aos reis de todos os passos).

A emblemática sola vermelha de um sapato Christian Louboutin

Embora Portugal esteja longe de ser um mercado relevante na facturação da Christian Louboutin, a marca tem sido falada nos media nacionais por o seu fundador possuir três casas no país (uma em Alfama, outra em Melides e outra na Comporta) e declarar estar “apaixonado” pelo nosso país, cujo charme, afirma, reside em “os portugueses não saberem vender-se”.

Em 2017, uma reportagem de uma estação de televisão mexicana revelou que a Christian Louboutin vendia por 1250 dólares malas feitas à mão adquiridas por 14 dólares a artesãos tradicionais mexicanos – gente que, obviamente, também não tem jeito para vender-se. Já Louboutin é exímio nessa arte, como comprova o facto de o valor de mercado da sua marca estar presentemente avaliado em 2700 milhões de dólares e de a sua fortuna pessoal (“net value”) estar avaliada em 1600 milhões de dólares.

Em Dezembro de 2022, a Christian Louboutin (a marca, não o criador) voltou a ser notícia em Portugal, quando olhos atentos e familiarizados com a alta sapataria repararam que, por ocasião da sua tomada de posse como Secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis calçava uns Christian Louboutin Miss Sab, que custam 645 euros, quantia que não terá feito rombo nas finanças da governante/gestora, já que a sua carreira sugere que não fará parte dos portugueses que não sabem vender-se. Os Miss Sab da (efémera) Secretária de Estado foram objecto de comentários mesquinhos, vindos de quem é incapaz de compreender que, no nosso tempo, como no de Luís XIV, as soturnas cerimónias de Estado precisam de ser animadas por umas solas vermelhas-vivas.

Os Christian Louboutin parecem ter lugar cativo nos pés e na cabeça das portuguesas de sucesso, pois, passadas poucas semanas sobre a tomada de posse de Alexandra Reis, foi a vez de a apresentadora televisiva, empresária e life coach Cristina Ferreira colocar sob os holofotes o primeiro par destes sapatos que comprou, perante os 10.000 espectadores que tinham acorrido à na Altice Arena para as Cristina Talks, uma série de palestras motivacionais que promete “momentos de reflexão, partilha e emoção”. Enquanto mostrava os sapatos, Cristina Ferreira contou, com a voz embargada pela comoção, a sua edificante história: “Custaram-me uma fortuna. Para muitos de vocês é o que vocês ganham num mês. Custaram-me 490 euros. É muito dinheiro. Mas este sapatos são… o símbolo da conquista. A bancada onde eu os fui buscar era a bancada do trabalho e do coração”. Se este episódio chegar aos ouvidos do Sr. Louboutin – também ele um agilíssimo “trepador social” – certamente ficará feliz por saber que tem em Portugal uma embaixadora tão devotada e popular; se o acréscimo de vendas dos sapatos de sola vermelha lhe permitir comprar uma quarta casa no país (um palacete na Lapa? uma mansão na Foz do Douro?), ficar-lhe-ia bem exprimir gratidão convidando Cristina Ferreira para a festa de inauguração.

Também esta exibição pública de uns Louboutin desencadeou uma onda de comentários invejosos e tacanhos pela parte de quem foi incapaz de compreender que o episódio narrado pela apresentadora fora, para lá da conquista material, uma prova de superação espiritual e uma demonstração prática de um dos propósitos declarados das Cristina Talks: “inspirar e motivar cada um a assumir o controlo da sua própria vida e alcançar o que mais deseja”. Mas Cristina Ferreira foi ainda mais longe, ao revelar que, nesse dia, quando fora buscar os sapatos à arrecadação, descobrira no seu interior uma imagem de Nossa Senhora de Fátima (que interpretou como “um sinal”). À luz deste prodígio, os saltos-agulha dos Christian Louboutin somam à sua capacidade para fazerem as gestoras de topo pairarem uns centímetros acima dos seus subordinados, conferirem “empoderamento” às mulheres-empresárias e elevarem o corpo feminino para um patamar superior de sensualidade, o milagre de encurtar a distância entre o mundo terreno e as bem-aventuranças celestes. Através desta sublime história, Cristina Ferreira transcendeu a sua condição de apresentadora televisiva para se assumir como guia espiritual das massas e os sapatos Louboutin convertem-se no Santo Graal do Evangelho da Prosperidade e no símbolo da conquista de um lugar no Céu. Quem sabe se não se torna moda fazer a peregrinação a pé a Fátima calçando uns Louboutin?

Outras marcas de luxo

Ao pé da movimentada vida de Louboutin, não há muito a dizer dos seus rivais: o espanhol Manolo Blahnik (n. 1942, Santa Cruz de la Palma) tem um apelido que não soa nada espanhol e que resulta de o pai ser um checo que fugiu de Praga quando a Alemanha ocupou a Checoslováquia, em 1938 e foi parar às Ilhas Canárias, onde Manolo nasceu. Jimmy Choo nasceu em 1948 em Penang, na Malásia, de pais chineses, e o único sobressalto na sua vida ocorreu logo na conservatória, quando o apelido de família, Chow, foi acidentalmente convertido em Choo.

Blake Knee Boot 110, da Jimmy Choo: preço 8000 euros

O já mencionado modelo Rita Hayworth Heels, da marca Stuart Weitzman, é considerado por algumas fontes o sapato mais caro do mundo, embora o preço de 3 milhões de dólares que lhe é atribuído seja algo arbitrário, já que foi fabricado um único exemplar e este não se encontra à venda. O sapato foi usado pela actriz e cantora Kathleen York na cerimónia dos Oscars de 2006 e depois passou, definitivamente, para os pés da princesa Yasmin Aga Khan, filha do príncipe Aly Khan e de Rita Hayworth, a actriz americana que os sapatos homenageiam. Weitzman tem produzido vários sapatos destinados a serem calçados por actrizes nomeadas para os Oscars nas cerimónias de entrega de prémios, alguns deles fazendo referência ao mundo do cinema – como os Marilyn Monroe e os Wizard of Oz. Estes modelos têm em comum teram “tiragem” limitada a um par e “preços” exorbitantes.

Se num top de sapatos mais caros se admitirem exemplares únicos, feitos por encomenda, os Rita Hayworth Heels de Stuart Weitzman são superados pelos Passion Diamond Shoes, uma criação conjunto da Jada Dubai e da Passion Jewelers, que foram avaliados em 17 milhões de dólares, e pelos High Heels concebidos pela designer de moda Debbie Wingham, avaliados em 15 milhões de dólares, e são igualados pelos Ruby Slippers concebidos pela firma de joalharia Harry Winston, e que são uma revisitação dos sapatos de Dorothy (Judy Garland) em O feiticeiro de Oz e são ornados com diamantes e rubis.

Vendo bem, todos estes modelos, profusamente ornamentados com pedras preciosas, são menos sapatos do que peças (únicas) de joalharia para usar nos pés.

Os Ruby Slippers da Harry Winston

Além das marcas acima referidas, cuja actividade está centrada nos sapatos, há numerosas marcas de moda de luxo em que os sapatos são uma componente secundária da sua actividade, que está centrada no vestuário, nos acessórios, nos perfumes e, nalguns casos, na joalharia. É o caso de Alexander McQueen, Balenciaga, Celine, Chanel, Fendi, Givenchy, Gucci, Lacoste, Lanvin, Louis Vuitton, Maison Margiela, Miu Miu, Prada, Tom Ford, Valentino e Yves Saint Laurent, etc., mas estas serão tratadas numa série dedicada a marcas de vestuário.

Questões terminológicas

Para rematar o tema dos sapatos de luxo, há que esclarecer a origem dos termos “stiletto” e “mule”, que são recorrentes neste segmento. Stiletto vem da palavra italiana para uma adaga muito longa e fina, por analogia com o salto do dito sapato. “Stiletto” é um diminutivo de “stilo” = “adaga” e provém do latim “stilus”, que designava o instrumento pontiagudo com que os romanos escreviam nas tabuinhas de cera. Em bom rigor, o plural de “stiletto” é “stiletti”, mas, fora de Itália, usa-se “stilettos”.

Mule designa hoje um sapato fechado à frente e aberto atrás e o seu nome tem uma longa e tortuosa história: embora os romanos tenham ficado associados a sapatos abertos, mais concretamente às célebres caligae, também usavam sapatos fechados, denominados calcei (ver capítulo “Uma era de pés arejados” em Dos pés descalços aos reis de todos os passos). O uso de calcei era transversal aos vários estratos sociais, mas apresentavam cores e ornamentações diferentes consoante o lugar ocupado na hierarquia – só os senadores e alguns sacerdotes podiam usar os mulleus calcei, de cor vermelha, combinando com a orla vermelha da toga. Não há explicação consensual para a designação “mulleus”, mas é possível que resulte da associação da cor vermelha dos sapatos à cor do peixe que os romanos conheciam como “mullus” = “salmonete” e que era, então, dos mais apreciados, sendo os melhores exemplares, por vezes, transaccionados pelo seu peso em prata (a designação dada pelos romanos ao salmonete perdura no seu nome científico – Mullus barbatus e Mullus surmuletus – e na designação da família a que pertence, os Mullidae).

Mules em couro e seda, c.1750

Não se conhecem as razões que levaram a que na França do século XVI, o termo “mule” começasse a ser aplicado a sapatos e chinelos sem calcanhar, já que os mulleus calcei que estão na raiz da palavra eram sapatos fechados. As características, os usos e a popularidade das mules sofreram muitas modificações com o correr do tempo e consoante os países e as línguas – por exemplo, no início do século XVIII eram usadas apenas em casa, tanto por homens como mulheres. Em certo ponto desta ziguezagueante linha evolutiva, ganharam um tacão e não mais o perderam.

Na língua francesa, mule designa ainda os sapatos tradicionalmente usados pelos papas (quando fora de portas), embora estes costumem ter calcanhar – pode dizer-se que a única característica comum com os mulleus calcei dos altos magistrados romanos foi a cor vermelha.

Mules da Gucci, 640 euros o par

Os ténis das estrelas

Enquanto as marcas mais sonantes de sapatos não-desportivos correspondem a produtos de luxo nos quais o comum dos mortais nunca terá oportunidade de enfiar os seus desairosos pés e vendem anualmente um número relativamente pequeno de exemplares, as marcas de calçado desportivo de maior renome são as que mais pessoas calçam – Nike, Adidas, Puma, ASICS, Converse, Under Armour foram as campeãs mundiais de 2021, em volume de negócios – e boa parte das suas vendas concentram-se em modelos com preços que são acessíveis à classe média do mundo ocidental. Por exemplo, o preço médio dos sapatos desportivos vendidos em 2021 nos EUA foi de 110 dólares, correspondentes à remuneração de nove horas de trabalho do assalariado médio americano. O modelo mais barato disponível no mercado teve um preço de 15 dólares, mas quem fizesse questão de calçar uma marca de prestígio como a Nike podia encontrar modelos com preço de retalho recomendado inferior a 70 dólares (dados de 2021, relativos aos EUA).

Em contraste com as marcas exclusivistas, a estratégia das grandes marcas de calçado desportivo tem sido cobrir diferentes segmentos de mercado, desde os modelos mais “básicos”, que hoje calçam a esmagadora maioria das crianças, adolescentes e jovens adultos no mundo desenvolvido, até modelos hi-tech para atletas de alta competição e edições especiais.

As marcas de calçado desportivo estão bem conscientes de que, em todos os segmentos de mercado, a aura emanada pela marca é de superlativa importância, pelo que, embora sendo de extrema avareza no que toca às remunerações, regalias e condições de trabalho de quem fabrica os seus sapatos (razão pela qual a sua produção há muito foi deslocada para as sweatshops da China e Sudeste Asiático), não hesitam em pagar fortunas a super-estrelas do mundo do desporto, do entretenimento e do jetset para que estas promovam os seus produtos. O recorde actual em contratos de patrocínio entre marcas de sapatos e desportistas cabe à Under Armour e ao jogador de basquetebol americano Stephen Curry, que, em 2013, pôs termo a um (já de si generoso) contrato com a Nike para auferir anualmente 42 milhões de dólares só por este acordo (a que se somam patrocínios de marcas de outros ramos). Estes valores podem tornar-se ainda mais astronómicos no caso dos contratos de patrocínio vitalícios – estima-se que os que Cristiano Ronaldo e o jogador de basquetebol LeBron James firmaram com a Nike atinjam, cada um, um valor acumulado de 1000 milhões de dólares.

Nalguns casos, a super-estrela não se limita a dar a cara pela marca ou por um modelo específico da marca: a colaboração pode assumir a forma de uma “signature line”, ou seja, uma linha de produtos vinculada exclusivamente a uma determinada super-estrela, ou de “edições especiais”, de tiragem limitada, visando o mercado do coleccionismo.

O primeiro sapato “signature” de Stephen Curry na Under Armour, surgido em 2015

A colaboração entre super-estrelas e marcas de calçado desportivo pode mesmo levar à criação de uma submarca, cujos produtos contam (supostamente) com o design e a “curadoria” da super-estrela. Um dos primeiros passos neste domínio foi dado em 1984, quando a Nike lançou um sapato concebido especificamente para o jogador de basquetebol Michael Jordan, que baptizou como Air Jordan (um nome que poderia ser confundido com o da companhia nacional de aviação da Jordânia, não fosse esta ter sido extinta em 1961). O sucesso deste modelo deu origem a uma linha própria com o mesmo nome, que, em 1988, foi autonomizada como submarca da Nike. Esta autonomização foi ao ponto de em 1992, a Nike ter prescindido do seu inconfundível “swoosh” nos sapatos da Air Jordan, passando esta a ser identificada com a silhueta de um basquetebolista (conhecido como “jumpman”). Apesar desta imagem distinta, a Air Jordan – cujos sapatos já vão na 37.ª geração e em 2021 teve um volume de vendas de 4700 milhões de dólares – continua a ser integralmente detida pela Nike.

Logótipo da Air Jordan

Nos sapatos de Jesus

Uma parceria que rivalizou em hype e vendas com a Air Jordan foi a Yeezy, que uniu a Adidas ao rapper Kanye West. West é uma criatura de múltiplas facetas, aquilo a que os media gostam de chamar “um homem da Renascença”: músico, designer de moda, empresário, actor, realizador, arquitecto, autor de quatro livros (embora tenha admitido que nunca leu um livro e que “ler, para mim, é como comer couves-de-bruxelas”), candidato às eleições presidenciais americanas de 2020 (onde, nos poucos estados em que concorreu, obteve votações entre 0.20 e 0.48%, apesar do apoio de Elon Musk e Kim Kardashian) e, aparentemente, também às de 2024 (propôs a Donald Trump ser o vice-presidente desta candidatura, obtendo, como seria de esperar, uma negativa furibunda).

Este desdobramento talvez explique a profusão de alcunhas e “nomes artísticos” que West tem adoptado, sendo a mais recorrente “Yeezy”, que, segundo o próprio, deriva de “Yeezus”, que por sua vez vem de “Jesus”. Esta associação está em sintonia com o facto de, nas letras das suas canções, West se identificar frequentemente com Deus ou o seu Filho. Em 2021, West adoptou formalmente o nome “Ye”, por, segundo ele, surgir frequentemente na Bíblia e significar “tu” (na lista de facetas de West acima faltou mencionar “exegeta bíblico”), mas neste texto continuará a ser designado pelo seu nome oficial.

West desde cedo aspirou a ser um designer de moda influente (em 2016 revelou que um dos seus sonhos – que nunca são tolhidos pela modéstia – era ser director criativo da Hermès), mas só conseguiu começar a afirmar-se neste domínio após ter ganho notoriedade e fortuna como artista de hip-hop. Ainda assim, as suas primeiras criações na área do vestuário, sob a marca Yeezy, fundada em 2006, não foram bem acolhidas e West perdeu muitos milhões de dólares. A recepção foi bem melhor quando, em 2007, começou a colaborar com a Nike, pois os ténis Air Yeezy 1 (2009), Air Yeezy 2 (2012) e Air Yeezy 2 Red October (2014), com preços de retalho à volta de 200 dólares, esgotaram instantaneamente e ressurgiram no mercado secundário a preços na ordem dos milhares de dólares e um protótipo da Air Yeezy 1 que foi brevemente agraciado pelo contacto íntimo com os pés de West, na cerimónia dos Grammys de 2008, foi vendido, em 2021, num leilão da Sotheby’s, por 1.8 milhões de dólares.

Após colaborar pontualmente com a Louis Vuitton e a M/M Paris  na área do calçado, no final de 2013 a Adidas e West anunciaram uma parceria, em que West teve participação activa como designer; foi um sucesso estrondoso, gerando em 2021 um volume de vendas de 1700 milhões de dólares, apesar de alguns modelos serem de uma fealdade rebuscada.

Os Adidas Yeezy Foam (ou uns Crocs após passarem algum tempo dentro de um forno de micro-ondas?)

Porém, o comportamento cada vez mais desequilibrado e intempestivo de West, em aparições em público, em entrevistas e nas redes (ditas) sociais, começou a tornar-se problemático. A Adidas aceitou, sem tugir nem mugir, a ideia desproporcionada que West tem de si mesmo (já se comparou com Walt Disney e Steve Jobs), a sua convicção de que é um messias, a sua crescente afinidade com teorias conspirativas da alt-right americana e as suas proclamações bombásticas e reveladoras de insensibilidade, ignorância, estultícia ou desvario (declarou, por exemplo, que a escravização dos africanos pelos europeus durou tanto tempo que só pode ser entendida como uma escolha dos africanos). Quando, em Setembro e Outubro de 2022, West enveredou por declarações anti-semitas e manifestações de apreço por Hitler e pelo nazismo e ainda se bazofiou de que “posso dizer merdas anti-semitas e a Adidas não pode despedir-me”, a marca alemã pôs, abruptamente, termo à colaboração.

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Eric Liedtke, director de marketing da Adidas, e Kanye West, em 2016, quando a parceria ia de vento em popa

No comunicado em que anunciou o fim da parceria, a Adidas estimou em 250 milhões de euros o prejuízo que esta tomada de posição iria trazer aos seus resultados de 2022, mas, conhecendo a história da Adidas, compreende-se que a marca tenha entendido que valia a pena perder esta soma para se demarcar de West. O website da Adidas faz remontar a origem da marca à Gebrüder Dassler Sportschuhfabrik, fundada pelos irmãos Adolf e Rudolf Dassler em 1924, mas a cronologia oficial tem o cuidado de saltar de 1928 para 1949, ano do registo da marca Adidas, omitindo os anos em que a Gebrüder Dassler foi fornecedora oficial dos clubes desportivos na órbita da Juventude Hitleriana e os irmãos Dassler foram membros do Partido Nacional-Socialista (ver capítulo “Adidas” em Como os ténis conquistaram o mundo: Breve história das marcas de calçado, pt. 6). A última coisa de que a Adidas precisa é de que o principal rosto da marca contribua para recordar estes anos rasurados.

Embora os modelos Yeezy tenham sido apresentados como criações de West, durante algum tempo, especulou-se sobre a possibilidade de a Adidas continuar a comercializá-los, uma vez que os direitos de autor dos modelos estão na posse da Adidas, pelo que bastaria a remoção de qualquer menção a West e substituir as palmilhas com os dizeres “Adidas Yeezy” por umas só com “Adidas” nos exemplares ainda em armazém. Porém, no início de 2023, a Adidas deu a entender que pretendia apagar toda e qualquer ligação a West e anunciou que cessara a produção dos modelos concebidos por West e que parte das receitas obtidas com a venda dos exemplares em armazém reverteriam a favor de associações de beneficência. Em Março de 2023 a Adidas anunciou que a ruptura da parceria lhe custara 400 milhões de euros só no primeiro trimestre de 2023, mas não é claro se este valor considera as avultadas poupanças para a Adidas em royalties não pagos a West e em marketing.

Quanto aos “sneakerheads”, parecem não ter ficado incomodados com as declarações de West e responderam ao anúncio do término da parceria Adidas Yeezy como seria previsível da parte de especuladores calejados: uma vez que a produção cessou, os Yeezy tornaram-se, automaticamente mais escassos, pelo que a procura pela marca na Internet aumentou e o mesmo aconteceu com os preços. Alguns veteranos do mercado de revenda de ténis estimam que o preço médio de revenda dos Yeezy suba 50%, atingindo um preço médio de 400 dólares.