É a segunda vez que Ekapol Chanthawong vê o espírito de sobrevivência ser desafiado no espaço de quinze anos. A primeira foi quando tinha dez anos e a aldeia onde morava no norte da Tailândia foi assolada por uma epidemia que condenou a vida da mãe, do pai e do irmão. Ekapol, mais conhecido por Aek entre os amigos, sobreviveu e morou com os tios até ter entrado num templo budista para se tornar monge, há três anos. No entanto, o percurso dele mudou: a avó ficou subitamente doente e Ekapol deixou o regime de internato no templo para cuidar dela. Desde 2015 que divide o tempo por três tarefas: cuidar da avó, ser ajudante dos monges budistas na província de Chiang Rai e treinar a recém-constituída equipa de juniores do clube Moo Pa, um nome que significa “Javali Selvagem”.
Há dezasseis dias, voltou a enfrentar a morte, agora já com 25 anos, quando aceitou aventurar-se com 13 crianças dentro de um dos sistemas de cavernas mais difíceis de explorar da Tailândia. Ao treinador principal, que não podia acompanhar os jovens na visita de estudo porque tinha uma reunião nesse sábado de manhã, Ekapol Chanthawong prometeu que ia tudo correr bem. Mas não correu tudo bem: o grupo foi surpreendido por uma tempestade não prevista pelos meteorologistas e ficou preso numa caverna semi-submersa entregue às rochas, à água da chuva e à sorte. Ao longo de duas semanas, Ekapol Chanthawong teve de pôr em prática o que aprendeu com os monges budistas: a meditação. Era das poucas ferramentas que tinha à mão para se manter vivo e para salvar as crianças.
“Eles não têm uma consciência completa do que estão a viver”
Segundo Carlos Céu e Silva, psicólogo especialista em situações de luto e de depressão, “se a pessoa tem uma crença enraizada tende a adquirir uma noção de força que a leva a ultrapassar as contrariedades e as adversidades da vida”: “É como se essa crença funcionasse como uma capa invisível e protetora. A pessoa com fé acaba por criar uma ilusão alternativa que a faz ter a convicção de que poderá estar protegida de certas adversidades, sejam elas naturais ou outras”, explica o psicólogo ao Observador. Em situações de vida ou de morte, como a do grupo de rapazes no interior da gruta, isso traz duas vantagens em termos psicológicos: por um lado, ajuda a acreditar que se vai sobreviver, porque se tem uma proteção suplementar em relação às adversidades; por outro lado, se o destino for fatal, remete esse desfecho para a aceitação de um “apelo divino”. Mas também simboliza outra coisa: “Por aceitarem que parte do seu caminho está nas mãos de uma entidade que não dominam, as pessoas com fé acabam por nunca assumir um papel completamente autónomo da sua realidade“, explica o psicólogo ao Observador.
Isso vai ao encontro das conclusões tiradas por investigadores da Case Western Reserve University nos Estados Unidos, num estudo publicado em março de 2016. “Para acreditarem num deus sobrenatural ou espírito universal, as pessoas parecem suprimir a rede cerebral usada para o pensamento analítico e ativar a rede empática. Quando pensamos analiticamente sobre o mundo físico, as pessoas parecem fazer o oposto”, esclarece Tony Jack, o cientista que liderou o estudo. “Quando há uma questão de fé, ela pode parecer absurda do ponto de vista analítico. Mas, pelo que entendemos sobre o cérebro, o salto de fé para a crença no sobrenatural equivale a deixar de lado o pensamento crítico e analítico para nos ajudar a alcançar uma maior perceção social e emocional”, conclui.
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Parte desse comportamento reside num aspeto que acompanha a humanidade desde o início dos tempos: a vontade de querer respostas para todas as coisas e para compreender a nossa própria existência. “Todos os humanos acabam por ser seres religiosos, seja por acreditarem numa religião ou por não acreditarem nela. As pessoas têm consciência de que nascem e morrem num corpo que tem um prazo de validade e é efémero. Algumas delas precisam de encontrar respostas para suportarem essa existência, por isso necessitam de recorrer à religião para se sentirem de alguma forma forma protegidas, observadas e guiadas. E para não se sentirem órfãs e abandonadas, para não caírem na loucura existencial, colocam essas respostas numa força superior”, explica Carlos Céu e Silva.
Nem todas as pessoas são assim: “A pessoa que se ausenta da fé descobre o caminho por ela própria e vai desbravando esse percurso com recurso às próprias experiências e às próprias angústias. A pessoa não religiosa de certa forma sofre mais porque tem toda a responsabilidade nas suas próprias mãos e coloca-se a si mesmo nos próprios. Por outro lado, torna-se autor da própria vida e fica liberto para construir o próprio caminho“, explica o psicólogo. Isso não é o que acontece na mente de uma pessoa regida pela fé, conta: “As pessoas religiosas acreditam que parte do seu caminho está de alguma forma programado. A fé dá a estas pessoas uma robustez que ultrapassa os próprios limites e que as leva até às soluções“. No caso dos rapazes presos na gruta, que aprenderam a meditar com o treinador que os acompanha, essa fé “empurra-as para a manutenção orgânica” mas tem um problema. “Eles não têm uma consciência completa do que estão a viver“, acredita Carlos Céu e Silva.
Como o budismo pode ter ajudado à sobrevivência dos rapazes
Mas há um aspeto que separa o budismo dessa crença numa entidade sobrenatural: é que o budismo “não é uma religião“, esclarece Manuela de Almeida, professora certificada de meditação e yoga e gerente do restaurante “Os Tibetanos”. “No ocidente diz-se que é uma religião porque é mais fácil para as pessoas aceitarem e compreenderem, mas o budismo é uma filosofia de vida“. A diferença é que o “budismo não tem deuses a seguir”. “Todo o poder que existe está dentro do ser humano, por isso não há castigos divinos porque nós somos responsáveis pelas próprias ações. O potencial que cada pessoa tem está dentro dela própria”, elabora a professora. Quem pratica o budismo vive o momento presente e exercita a “capacidade de ver a situação com mais clareza e ter presença de espírito para encontrar a resposta mais adequada, sem estar dependente de medos.
Para melhor explicar essa capacidade, Manuela de Almeida compara o interior de um ser humano a um sol que habita dentro de nós: “Normalmente regemo-nos pelas emoções que temos à superfície. Estamos demasiado dependentes delas. É como se o nosso sol estivesse encoberto por tempestades, por nuvens que não nos permitem ter acesso direto a ele. O que a meditação ajuda a fazer é acalmar essa camada exterior para perfurar a nossa camada interior e termos conhecimento pleno do que somos, do universo em si, da natureza humana no contexto do universo e do reconhecimento do que somos”, explica.
Manuela de Almeida não é perentória ao dizer que os ensinamentos budistas adquiridos pelo treinador foram preponderantes para a sobrevivência do grupo: “Ele é tailandês e na cultura dos tailandeses a meditação é uma prática muito enraizada. São todos muito calmos normalmente”. Ainda assim, não exclui a possibilidade de que a passagem por um templo budista tenha dado um grande auxílio:”É possível que esse reforço educacional o tenha ajudado a manter mais controlo e a lidar melhor com a situação. Só que isso seria ainda mais visível se ele fosse do Ocidente, onde o estilo de vida é de mais ansiedade, cheia de medos e de agitação”, descreve.
O que pode ter sido útil a Ekapol Chanthawong nas últimas duas semanas é a filosofia de que tudo o que lhe acontece é fruto daquilo que se fez: “Está tudo ancorado na razão. O meu futuro é o meu presente porque aquilo que me acontece só depende das atitudes que tenho. Quem segue o budismo acredita que a responsabilidade das circunstâncias são exclusivamente dela e daquilo que já criou. A escolha é sempre nossa”, explica a professora. O que a meditação, um exercício que os rapazes e o treinador estavam a praticar quando os mergulhadores os encontraram, faz é sossegar quem a pratica e levá-la a olhar com mais clareza para a situação: ao acreditar que o mundo funciona numa perspetiva de ação e reação, os budistas aceitam que, se tiverem uma atitude positiva, vão atrair situações mais positivas.
Tudo isso está explicado no livro Conselhos do Coração, onde o Dalai Lama — líder religioso do budismo — reúne vários ensinamentos dirigidos a diversas pessoas. Nas páginas dedicadas “aos angustiados”, o Dalai Lama fala sobre a importância da meditação para os budistas: “Quando [os angustiados] conseguem exprimir aquilo que viveram, caso encontrem alguém que as ajude a compreender que isso já acabou, faz parte do passado, têm uma hipótese de pôr ponto final a esse capítulo da sua vida. No Tibete diz-se que a única maneira de desentupir um búzio é soprar nele. Se se sentirem angustiados por não terem a mínima autoconfiança devem fazer uma pausa para refletir. Tentem compreender por que razão se dão por vencidos logo à partida. Vão ver que não conseguem encontrar uma única razão válida. O problema vem da vossa maneira de pensar e não de uma verdadeira incapacidade“.
Num outro capítulo, dedicado “aos traumatizados”, o Dalai Lama diz que “a religião pode desempenhar um papel importante”: “Penso nomeadamente nos tibetanos que, graças à prática do budismo, são menos vulneráveis às experiências trágicas. Tal como resistimos melhor às doenças e curamo-nos mais depressa se tivermos um corpo robusto, se tivermos um espírito são suportamos mais facilmente os acidentes trágicos ou as más notícias. Se o nosso espírito for fraco, esses acontecimentos perturbam-nos mais e de uma maneira mais duradoura“, explica o líder budista. Os conselhos do Dalai Lama coincidem com a estratégia usada por Ekapol Chanthawong no interior da gruta: “Caso tenham vivido uma tragédia, compreendam que a vossa inquietude e os vossos tormentos só servem para aumentar desnecessariamente o sofrimento. Conversem sobre o vosso problema, façam-no sair, não guardem segredo dele por pudor ou por vergonha. Chegou o momento de dizer que esse problema pertence ao passado e que não vale a pena arrastá-lo para o futuro. Tentem dirigir o espírito para os aspetos mais positivos da vossa existência”.
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Michael Poulin, professor de psicologia na Universidade de Nova Iorque, disse ao The Washington Post que o budismo foi importante para a sobrevivência do grupo: “Acredito que pode ter sido útil, mesmo que tenha funcionado exclusivamente para que as crianças tenham sentido que o treinador estava a fazer alguma coisa para as ajudar. A meditação pode ter ajudado a gerir o estado mental deles, permitindo que os medos deles e os pensamentos negativos passassem por eles como se fosse uma tempestade a passar em vez de os obrigar a lutar contra ele”.
Mas isso não basta para manter a sanidade mental, alerta Carlos Céu e Silva. Questionado sobre se a fé podia, ainda assim, ser usada como uma terapia para ajudar os jovens a ultrapassar o trauma por que estão a passar, o psicólogo responde que não: “Isso não resolve o real problema, apenas o adia ou abafa“. Para suportar a sua resposta, o psicólogo dá como exemplo as peregrinações: “As pessoas que pedem milagres vivem na fantasia de que mais cedo ou mais tarde a força divina vai interceder por elas. Quando aquilo que querem se realiza passam o resto da vida a agradecer por esse benefício, mas quando não se realiza continuam a sacrificar-se na esperança de que um dia isso venha a acontecer. E passam a viver presas pela cura ou pela sua falta“.