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Tânia Carvalho: “Nunca quis ser bailarina, muito menos de dança clássica. Gosto mesmo é de criar”

É descrita como uma das mais originais coreógrafas portuguesas e neste fim-de-semana apresenta um solo no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa. Como nasce um espetáculo de Tânia Carvalho?

Não tem respostas na ponta da língua e não repete o que já disse noutras entrevistas. O diálogo com Tânia Carvalho é sempre uma primeira vez. Pensa muito sobre o que vai dizer, pesa bem cada palavra e no emaranhado das ideias há um fio lógico que surge camada a camada — porque ela fala como quem dança.

Coreógrafa, bailarina, compositora, artista visual. Em 2018 assinalou duas décadas de criação com uma retrospetiva que passou por três salas principais de Lisboa: Maria Matos, São Luiz e Camões. Agora, numa das raras ocasiões para a ver dançar — porque com os anos se foi afastando das peças de grupo e está menos presente em cena —, Tânia Carvalho leva este fim de semana no Teatro do Bairro Alto (TBA), em Lisboa, o solo “Captado Pela Intuição”. Sexta e sábado às 19h30 e domingo às 17h00. Uma proposta “entre o abstracionismo lírico e o figurativismo”, lia-se na folha de sala quando em 2017 a peça teve estreia absoluta no festival internacional GUIdance, em Guimarães.

Tânia Carvalho nasceu a 27 de julho de 1976 em Viana do Castelo. Em criança e adolescente estudou dança clássica e contemporânea, depois passou pela Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha e pela Escola Superior de Dança de Lisboa. Estreou-se no fim da década de 90 com os espetáculos “A Corte” e “Inicialmente Previsto”, e tornou-se uma das criadoras mais sólidas da sua geração, a quem apontam um discurso artístico original — como escreveu a crítica Paula Varanda no jornal Público, a propósito da peça “Icosahedron”, há uma década.

A artista deveria ter também apresentado a 2 de fevereiro no TBA o concerto “MadMud”, cancelado devido a isolamento por suspeitas de infeção por coronavírus. Mesmo a apresentação do solo esteve em dúvida até à última hora. Daí que a entrevista ao Observador tenha acontecido por videochamada, com Tânia Carvalho num estúdio de música situado na casa onde vive, na zona da Graça, em Lisboa. O caminho para chegar a um espetáculo foi tema principal da conversa.

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"Captado pela Intuição" é um solo de 2017 que resume o processo criativo de Tânia Carvalho (foto: Rui Palma)

RUI PALMA

É tímida nas entrevistas?
Não sei se sou, acho que não. Talvez não pense muito à volta das minhas peças, não aplico um pensamento muito intelectualizado e isso pode passar por timidez.

Gosta mais de criar do que de falar sobre as criações?
São coisas completamente diferentes. A criação, faço-a como que por necessidade, naturalmente. Nestes dias de isolamento aqui em casa, o que é que faço? Ponho-me a tocar, a cantar, a fazer vídeos. Não vou telefonar a alguém e falar sobre o trabalho. Não faço isso, só quando alguém me questiona.

A parte de comunicar…
Gosto de comunicar, mas não me sai naturalmente falar sobre o meu trabalho. Muitas vezes, quando me perguntam como estão a correr os ensaios, posso responder que estão a correr bem. Não dou muita conversa. Mas não é de propósito, sai-me assim. Se me fizerem perguntas numa entrevista, tenho todo o gosto em responder.

Quando está a criar vive num mundo mental à parte?
Nem é um mundo mental sequer, é o mundo do ser. Quando não estamos focados na cabeça, na racionalidade, quando procuramos o silêncio e o espaço vazio, as coisas começam a aparecer. Isto tem alguma relação com filosofias orientais. Quem as conhece, entenderá melhor o que digo. Estou a falar da nossa essência, do nosso ser, não do pensamento. O pensamento é uma ferramenta que temos, não é a única. O problema é que todos apelamos muito ao pensamento.

Já conhecia essas filosofias orientais quando começou a ser coreógrafa?
Descobri depois, mas já sentia isto de que estou a falar. Acho que todas as pessoas, sejam ou não artistas, sentem isto. Uma coisa é o que estamos a pensar, outra coisa é a existência do nosso ser, que recebe. O pensamento racional é uma componente do corpo, igual ao ver, ao ouvir, ao ter sabor, etc. Mas o nosso ser não é o nosso corpo, é a energia. Quando começo uma criação, não digo para mim “vou-me concentrar no ser”. Não. As coisas aparecem por si, por isso é que digo que não vêm da racionalidade, vêm daquele sítio que é o ser. Cheguei de viagem há dias, estava cansada e sentei-me ao piano. Saiu-me uma música, fiz uma música nova. Não estava a pensar nas notas, num tema, na finalidade, nada disso.  Saiu-me, apareceu-me. Não gosto de falar muito sobre estas filosofias porque não as conheço em pormenor e posso dizer coisas erradas. Posso dizer que a arte sai desse sítio, do ser, ainda que tenha todo um exercício racional, que também é válido e que também faço. Mas tenho quase a certeza de que o início das criações não é racional. Estou à escuta. Não sou eu que faço os trabalhos, são os trabalhos que me dizem por onde precisam de ir. As peças falam connosco, entre aspas.

Daí um título como “Captado pela Intuição”?
Para fazer esse solo, estive sozinha em estúdio e durante grande parte do tempo não fazia nada, entre aspas. Passei um mês no Espaço do Tempo [residência artística criada por Rui Horta em Montemor-o-Novo] e acordava super-cedo, às seis da manhã. Ficava pelo menos três horas sentada, a olhar, parada. Tive tempo para o vazio, para o silêncio. Preciso disso e gosto. Não estava preocupada em pensar no resultado, porque quando faço isso começo a bloquear. Só quando o movimento já me surgiu é que trabalho os tempos, as formas. Mesmo assim, a intuição e a observação enquanto ser, não enquanto pessoa mental, está sempre lá.

"As coisas aparecem por si, por isso é que digo que não vêm da racionalidade, vêm daquele sítio que é o ser. Estou à escuta. Não sou eu que faço os trabalhos, são os trabalhos que me dizem por onde precisam de ir. As peças falam connosco."

Quando é que fez essa residência artística?
Se não me engano, no fim de 2016, inícios de 2017, pouco antes de estrear. Digo que sou uma criadora compulsiva e acho mesmo que sou. Não consigo estar muito tempo sem criar uma coisa nova, nem que seja um vídeo curto, que ninguém vai ver, ou uma canção ou um desenho. Estou constantemente a criar, porque as coisas me saem sem eu estar a pensar nelas. Por isso é que falo em intuição. Não sei de onde vêm as coisas, saem-me, surgem de uma consciência coletiva.

Receia um dia deixar de estar ligada a essa fonte de criação?
Não, não, não deixo. Todos temos isto, faz parte da vida. A vida, em si, é criativa. Se olharmos a natureza e virmos como se formam as coisas… Não há uma folha igual à outra. A natureza é criativa, nós somos criativos, só precisamos de estar relaxados e conectados, e as coisas acontecem. Sem criatividade, morremos. Se as coisas pararem e não houver novidade, não há vida. As coisas estão a evoluir constantemente e nós somos isso.  Na verdade, os artistas copiam o que é a energia da vida.

Concorda com quem diz que a hiperconetividade da internet e dos telemóveis está a destruir a criatividade?
Não pensei muito sobre isso. No meu caso, sinto que não. Claro que quando estou numa fase de criação, tento estar desligada, não só do telemóvel mas até das pessoas. Curiosamente, na fase dos confinamentos até estive mais perto do telemóvel do que antes, para comunicar com as pessoas à minha volta. Na verdade, não sou tímida, tenho é alguma dificuldade em falar destes processos todos, que são simples mas muito complexos de explicar.

Como é que concilia o seu processo criativo com a ideia de mercado? Os criadores têm compromissos, encomendas, datas.
Entendo que possa ser difícil, mas não no meu caso estou constantemente a criar e até apresento menos do que poderia, o que me falta é orçamento para fazer todas as criações.

Começou no fim dos anos 90?
Ser criativo não começa numa data, é algo que se vai desenvolvendo. Não sei se isto começa a contar a partir do momento em que recebe dinheiro pelo trabalho. Se for assim, comecei em 1997, 98, quando fundámos a Bomba Suicida.

A Bomba Suicida foi um coletivo de artistas, muito conhecido em Lisboa…
Teve várias fases, muitos artistas passaram por lá, até em que terminou em 2014. Fui uma das pessoas que estiveram do princípio ao fim. Aparecemos como associação que ajudava os artistas a fazer a produção dos seus espetáculos. Não era uma estrutura de criação, cada um criava as suas peças, mas quando um estava criar os outros ajudavam a produzir, nem que fosse nos figurinos ou a ir buscar alguns materiais. Havia uma troca. Com os anos, passou a ser só uma produtora e depois deixou de fazer sentido.

Com quem é que teve maiores afinidades nesses anos?
Quando penso na Bomba Suicida, penso sempre no Filipe Viegas. Ele foi a cabeça do projeto. Quando ele saiu, passámos a ser uma produtora normal, digamos assim.

A artista assume que tem alguma dificuldade em criações conjuntas (foto: Rui Palma)

RUI PALMA

Foi uma tentativa de afirmação de uma nova geração da dança em Portugal?
Não era para nos afirmarmos nem era só dança. Aos domingos até fazíamos o cabaret “Sunday Show”, que ficou muito conhecido. Queríamos fazer coisas e divertir-nos. Queríamos ter a possibilidade de criar e de nos ajudarmos uns aos outros. Foi assim no princípio.

Eram os herdeiros da Nova Dança Portuguesa do fim dos anos 80? Como é que classifica a sua geração em termos artísticos?
Nem sei bem qual é a minha geração. Comecei cedo, nunca quis ser intérprete, só fui porque queria experimentar e precisava de ganhar dinheiro. Sempre quis ser criadora e não intérprete de outros. Desde cedo. Pela cronologia linear que utilizamos, sou descendente da geração da Nova Dança Portuguesa, mas a verdade é que não vi essas peças, não vivia em Lisboa sequer. Sou descendente historicamente, não por influência artística. Não vivi a Nova Dança Portuguesa, não havia internet, morava em Viana do Castelo e depois fui fazer artes plásticas para as Caldas durante um ano. Só depois é que vim para Lisboa, para a Escola Superior de Dança. Confesso que na altura não sabia bem que coreógrafos existiam, estava desinformada.

Começou a dançar aos cinco?
Tive aulas de dança clássica desde os cinco anos e de dança contemporânea a partir dos 14. Quando era pequena já fazia peças com a minha irmã mais velha e peças na escola. Aos 18, nas Caldas, além do curso de artes plásticas, fui-me inscrever em aulas de dança contemporânea. Como era de uma terra distante de Lisboa, imaginava que aqui o ensino estava num nível muito difícil e que eu teria um nível baixo, mas quando cheguei à Escola Superior de Dança percebi que não estava mal preparada.

Nunca sonhou ser primeira bailarina de uma companhia de ballet?
Nunca, não tem nada a ver comigo. Nunca quis ser bailarina, muito menos de dança clássica. Gosto mesmo é de criar. Já fiz um filme [“A Bag and a Stone – Dance Piece for Screen”, 2018], já expus os meus desenhos, estudei piano e faço músicas, também canto. Dizem que sou multidisciplinar. Na verdade, acho que todos os artistas são multidisciplinares, depois dedicam-se mais a uma área e ficam conhecidos por isso. A dança foi a área a que mais me dediquei. Houve uma altura em que estava um pouco obcecada pela coreografia e pela dança e isso fez com que fosse mais longe.

Importa-se que a descrevam apenas como coreógrafa?
É na dança que sou mais conhecida, mas a música é muito importante na minha vida, tanto ou mais do que a dança. Só que não fiz tantos estudos de música, apenas aulas particulares. Durante esta fase da pandemia, se houve coisa de que senti falta foi de tocar e cantar

"Todos temos algumas emoções fechadas. Aquelas que achamos que são menos boas, ficam fechadas, porque temos vergonha ou achamos que são socialmente inaceitáveis. Nos momentos em que estamos a ser um veículo criativo, essas coisas têm tendência a saltar, precisam de saltar."

Ser coreógrafa é para quem gosta mais de mandar do que ser mandada?
Não, até porque não sou muito mandona. Quem trabalha comigo, sabe isso. Peço as coisas, não mando. Estou a colaborar com os intérpretes, a dirigir, não sinto que esteja a mandar. Acho que a nível artístico, as minhas ideias, aquilo de que gostou ou não gosto, a estética, o que quero ou não fazer, vem do tal ser de que falava há pouco. O meu ser não me pede para responder às coisas dos outros, enquanto intérprete. Pede-me para fazer as coisas como as imagino, como elas saem. Se tiver a fazer para outros ou, no caso da coreografia, se estiver em colaboração, tenho de ceder ou passar para o lado mais racional. Tenho alguma dificuldade em colaborar, sempre tive. Só agora com o Matthieu Ehrlacher, que é meu namorado, é que estou a conseguir colaborar sem me sentir mal. Estamos a fazer um projeto musical, somos o duo Papillons d’Éternité [que se apresentou em setembro do ano passado no Museu do Chiado, durante a bienal BoCA]. Já tinha tentado colaborar com amigos e colegas mas depois desistia. Aliás, houve uma pessoa com quem colaborei uma vez e correu bem. Em 2009, com a Sílvia Pereira. Só fizemos uma apresentação, a peça não rodou, mas a colaboração correu bem.

E em relação à geração a que pertence?
Sempre me senti desligada de tendências. Há pessoas que investigam a área da dança, o João dos Santos Martins é um deles, e que têm ideias arrumadas. Não é da minha natureza pensar esses temas. Não me sinto parte de nada, não sei. A verdade é que quando comecei a coreografar, e mesmo hoje, sentia que estava fora dos métodos da moda, isso sim.

Quais são os métodos da moda?
Quando comecei, marcava muito os movimentos. Ainda hoje marco o movimento e depois passo-o ao intérprete. Na dança experimental era mais comum as pessoas trabalharem com improvisação e eu não fazia isso. Não tem nada mal, ninguém me dizia que não era assim, eu é que sentia naquela altura que não era o que estava na moda.

Porque é que até hoje nunca criou uma companhia de dança?
Já pensei, mas nunca cheguei a concretizar, talvez porque a vida não me empurrou para aí, não era natural. É preciso ter muito mais recursos e depois fico com um grupo fixo, quando eu gosto de ser volátil, de experimentar aqui e ali. Mas se não houvesse restrições orçamentais, provavelmente teria uma companhia. Na verdade, tenho um grupo de pessoas com as quais trabalho quase sempre.

O que é que procura num bailarino?
Se for uma peça que exige muita técnica, o intérprete tem de ter essa técnica. Mas normalmente vejo é uma energia de que gosto, uma empatia com a pessoa, que vai ao encontro da energia que a peça me está a pedir. Há bailarinos com quem trabalho regularmente porque conseguimos pôr-nos ambos no sítio certo que a peça pede.

É habitual na dança contemporânea a presença dos chamados não-bailarinos. Como é que lida com isso?
São não-bailarinos, mas gostam muito de dançar e sentem-se bem em palco. Não escolho uma pessoa qualquer, que não goste de dançar ou que nunca tenha pensado nisso. Escolho quem, à partida, já tem um corpo muito disponível, pessoas que têm uma qualidade de movimento diferente, até porque há uma contaminação entre bailarinos profissionais e não-profissionais, o que é bom.

"MadMud" é um dos espetáculos de música de Tânia Carvalho e esteve previsto para o Teatro do Bairro Alto

LAURENT PAILLIER

Fale-nos sobre o espetáculo “Captado pela Intuição”. É sobre quê?
É sobre nada… É sobre estas coisas de que estivemos a falar, o ser, o ouvir, o estar, as coisas que vivi durante a residência artística. Se for sobre alguma coisa é também sobre o que veio de outro sítio, coisas que através de mim quiseram sair. Tem que ver com a expressão do corpo, o estar lúcida ou não, o corpo que se ataca a ele próprio, o corpo controlado e descontrolado.

É também uma peça com elementos de grotesco, como já se disse sobre os seus desenhos? Há quem aponte o desespero, as emoções reprimidas. Isto aparece nas suas criações?
Nos desenhos vê-se bastante, sim. É o trazer as sombras à luz. Acho que a arte trabalha as sombras de quem cria e das outras pessoas. Faço isso, sim, este solo terá muito disso.

Há desespero no seu trabalho?
Nos momentos em que estamos a ser um veículo criativo, essas coisas têm tendência a saltar, precisam de saltar. O desespero ou a raiva podem estar lá mas não quer dizer que saiam sob essa forma, saem sob uma forma que é menos pesada. É como uma cena de infelicidade ou de tristeza num filme. Pode estar tão bem feita e aparecer envolvida numa estética que a torne bela. Todos temos algumas emoções fechadas. Aquelas que achamos que são menos boas, ficam fechadas, porque temos vergonha ou achamos que são socialmente inaceitáveis.

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