A administração da TAP está a estudar a possibilidade de recorrer a um decreto-lei de 1977 para conseguir suspender os acordos de empresa que regulam remunerações, mas também tempos de trabalho, compensação e outras regalias que têm impacto nos custos com o pessoal. Esta legislação permitiria fundamentar, do ponto de vista legal, uma suspensão unilateral dos acordos de empresa, sem o acordo dos sindicatos que os subscreveram, ao abrigo da declaração da TAP como empresa em situação económica difícil. Esta declaração teria de ser feita pelos ministros das Infraestruturas e do Trabalho, nos termos do mesmo decreto-lei.
Este é um dos cenários que estão a ser ponderados no caso de não ser possível obter o acordo dos sindicatos, mas é considerado o fim da linha. A negociação será sempre a via privilegiada, mas na verdade há pouco tempo para conseguir resultados, e a multiplicação de estruturas sindicais que representam os trabalhadores da TAP — mais de dez — não tem facilitado o processo negocial, já que existem vários acordos de empresa por classe profissional.
Há sindicatos que estão mais resistentes a negociar os termos propostos e as notícias recentes sobre os avanços da vacinação contra a Covid-19, que permitem antever um horizonte temporal para uma retoma ainda em 2021, não têm facilitado.
A adoção deste regime teria sempre de ser aprovada pelo Governo, no quadro da preparação do plano de reestruturação, que terá de ser entregue à Comissão Europeia até quinta-feira da próxima semana. Mas não só levanta dúvidas do ponto de vista da sua constitucionalidade, como, caso a aceitasse, o Governo estaria a dar um sinal contrário ao que deu, nomeadamente aos privados, quando aprovou a suspensão por dois anos da caducidade da contratação coletiva.
A administração da TAP pediu ao Governo para usar todos os instrumentos jurídicos na área laboral. Outras medidas que terão de ser aceites pelo Executivo são a introdução de um regime de pré-reformas ou o reconhecimento da TAP como empresa em reestruturação, que permite que trabalhadores que rescindiram com acordo tenham acesso ao subsídio de desemprego.
O recurso ao regime legal de 1977, que sai fora do do Código do Trabalho, só deverá ser possível porque a TAP passou a ser uma empresa pública, pelo menos controlada por capitais públicos. Esta legislação já foi usada em 1980 para a TAP, quando esta era uma empresa pública e foi declarada em situação económica difícil.
A necessidade de suspender o acordo de empresa terá sido comunicada pelo ministro das Infraestruturas ao Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), na reunião realizada esta semana, não tendo ficado claro se seria feito de forma unilateral. Pela informação recolhida pelo Observador, e confirmada junto de mais de uma fonte, só a legislação de 1977 permitirá essa janela, já que o Código do Trabalho só admitiria à TAP suspender “a convenção coletiva ou parte dela” — e, assim, mexer nos salários e outras regalias negociadas na contratação coletiva — com um “acordo escrito entre as associações de empregadores e as associações sindicais“.
A empresa já comunicou o objetivo de reduzir em 25% a massa salarial, mas isso não passa apenas pela remuneração. Há todo um conjunto de regalias, a nível de compensação por horas de trabalho, tempos de descanso e pernoitas em caso de voos de longo curso ou o número de tripulantes por avião que têm impacto nessa fatura. Um dos exemplos apontados é a imposição, por acordo de empresa, do número de cinco tripulantes em aviões Airbus que façam viagens de médio curso, quando o próprio fabricante recomenda quatro tripulantes.
Em agosto, já com a operação afetada pela pandemia e o recurso ao lay-off simplificado, o sindicato dos pilotos denunciava incumprimentos do acordo de empresa. Segundo o SPAC, a TAP teria convidado pilotos a realizarem voos em dias de folga, sem o pagamento de horas extra previsto no acordo de empresa.
A suspensão parcial do acordo de empresa pode reduzir de forma significativa esses custos? O Observador sabe que, em alguns casos, suspender as condições acordadas, de forma negociada ou não, durante alguns meses, ou mesmo um ano (para reduzir os custos com pessoal nos piores momentos da crise da aviação e enquanto houver incerteza sobre a retoma), não será suficiente para cumprir as metas do plano de reestruturação.
Terá de haver um alinhamento com as condições laborais praticadas com as companhias concorrentes da TAP, pelo menos as de bandeira, o que em alguns casos implica reduzir de forma estrutural algumas regalias negociadas, ou seja, exige a alteração dos acordos de empresa e não apenas a interromper a sua aplicação por alguns meses. Ou seja, teria de ser objeto de negociação com os sindicatos.
A redução do número de colaboradores – os números anunciados aos sindicatos rondam entre os 2.000 e os 3.000 – é outro elemento na complicada equação do plano de reestruturação, que também deve incluir a diminuição da frota dos atuais mais de 100 aviões para entre os 85 e os 90, o patamar mínimo considerado para manter o hub operacional no aeroporto Humberto Delgado. Ainda que se possa equacionar um cenário de recontratação dos profissionais num quadro de retoma consistente da operação, ninguém arrisca avançar com um horizonte temporal para essa realidade.
Decreto-lei de 77 levanta dúvidas do ponto de vista constitucional
O diploma de 1977 foi aprovado no rescaldo do PREC (Programa Revolucionário em Curso), numa altura em que uma parte importante das grandes empresas tinha sido nacionalizada e estava sob controlo estatal. E nunca terá sido revogado, ainda que algumas disposições possam ser questionáveis face à evolução legislativa. Aliás, já foi evocado pelo Governo quando, em 1980, declarou a TAP como empresa em situação económica difícil e a autorizou a suspender os acordos de empresa.
Por outro lado, o decreto-lei foi aprovado em conselho de ministros, no primeiro governo constitucional, liderado por Mário Soares, sem ter passado pela Assembleia da República. É aqui que está uma das objeções apontadas pelos especialistas em direito laboral ouvidos pelo Observador: a “inconstitucionalidade orgânica”.
A Constituição define que, em matéria de direitos fundamentais (onde se inclui o da contratação coletiva), é a Assembleia da República quem tem competência para legislar, mas pode delegar essa responsabilidade ao Governo através de uma autorização legislativa. E isso não aconteceu em 1977.
“O Governo só podia intervir se houvesse um decreto de autorização legislativa“, explica ao Observador o advogado Luís Gonçalves da Silva. Daí que uma “intervenção por resolução do conselho de ministros” pareça ao advogado “uma inversão da hierarquia dos atos normativos“. Para desatar este nó, ou a Assembleia da República legislava a suspensão unilateral dos acordos, o que seria um processo moroso, ou autorizava o Governo a legislar.
A advogada Rita Garcia Pereira, que já representou o SNPVAC, acrescenta outra objeção possível: a de “conflito de interesses” do próprio Ministério do Trabalho, que deveria agir como um “árbitro” em matéria de suspensão dos instrumentos de regulamentação coletiva. Só que o decreto de 77 dá-lhe a competência não só de declarar a situação económica difícil, como também de declarar a suspensão dos acordos de empresa.
Além disso, a especialista em direito laboral refere que há uma “interpretação doutrinária” segundo a qual uma intervenção como a do decreto-lei de 77 apenas se justificaria quando não há hipótese de negociação, seja porque na empresa em causa não existem sindicatos a representar os trabalhadores, seja porque o sindicato se recusa a negociar — e embora os sindicatos tenham mostrado oposição aos planos da TAP e do Governo, não têm fechado a porta às negociações.
Nesse sentido, Rita Garcia Pereira cita os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, que, no livro “A Constituição da República Portuguesa Anotada”, escrevem que o direito à contratação coletiva inclui o “direito à autonomia contratual coletiva”, segundo o qual tem de “haver um espaço abrangente de regulação das relações de trabalho“, que “não pode ser aniquilado por via normativo-estadual”.
Luís Gonçalves da Silva aponta ainda o “problema” do próprio conteúdo da lei, que prevê uma “afetação de um direito fundamental“.
Governo tinha aprovado lei para proibir que patrões rasgassem contratos durante a crise
Mesmo se as questões constitucionais não se colocassem, ao autorizar uma suspensão de um acordo de empresa negociado no âmbito da contratação coletiva, o Governo estaria a dar um sinal contrário ao que deu quando aprovou em Conselho de Ministros uma medida negociada à esquerda: a suspensão por dois anos da caducidade das convenções coletivas (como os acordos de empresa). Esta medida impede os empregadores de denunciarem contratos unilateralmente, ou seja, pôr-lhes termo, bloqueando a sua renovação.
Aliás, um dos argumentos apresentados pelo Governo quando enviou a proposta para a Assembleia da República (que a aprovou na sexta-feira) era precisamente, que “em períodos de crise” há uma “menor propensão para a negociação e para a sua renovação”, o que pode levar “a um aumento das situações de denúncia unilateral das convenções coletivas e, consequentemente, à verificação de lacunas decorrentes da caducidade destes instrumentos”.
Uma outra opção, também ela de fim de linha, implicaria usar o estado de emergência como pretexto para suspender o direito (fundamental) da contratação coletiva. Só que isso implicaria que, findo o estado de emergência, essa suspensão fosse levantada, pelo que não deverá ser a via escolhida pela TAP e pelo Governo.
Certo é que a opção deverá ser clarificada esta semana, já que até ao dia 10, quinta-feira, o Governo terá de enviar à Comissão Europeia o plano de reestruturação da companhia aérea nacional, com metas de redução de custos e soluções para as alcançar.