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Hélder Santos/Aspress

Hélder Santos/Aspress

“Tenho medo de estar aqui, estou sempre a olhar para cima”

No Largo da Fonte juntam-se todos os sentimentos. O alívio de quem escapou, a tristeza de quem perdeu a fé e a revolta de quem há anos avisa para uma desgraça. Aqui, está-se sempre a olhar para cima.

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Desde os 17 anos que José Serafim Gomes vende velas no Largo da Fonte por altura das festas de Nossa Senhora do Monte. Tem 47, ninguém lhos dá. Com a barba por fazer que traz hoje, o olhar meio perdido enquanto fala do que lhe aconteceu na terça-feira 15 de agosto, o cabelo branco e ralo, parece ter pelo menos mais dez.

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“Estava no meu negócio de velas e lembranças, tinha acabado de colocar uma vela no suporte quando senti um estalo. Gritei para o meu filho, para o meu irmão e para a minha nora ‘fujam!’ e encostei-me ao muro. A árvore caiu à minha frente. Vi uma mulher ficar por debaixo dela.” José das Velas, é assim que é conhecido, só teve tempo de procurar pelas t-shirts pretas que os seus familiares tinham vestidas: “Olhei e procurei pelas t-shirts. Olhei para um lado e para o outro e não os vi. Tinham conseguido fugir”.

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Junto do fontanário de onde José saiu ileso — nem um arranhão — ainda estão as velas, algumas ardidas outras por arder. Se procurar bem, Ana de Jesus ainda poderá ver as três que lá deixou dez minutos antes de o carvalho cair matando 13 pessoas e ferindo 49. Ana é rececionista no Centro de Saúde do Monte, para onde estão a ser encaminhadas as pessoas que estão a precisar de apoio psicológico. Aquele que Ana também já teve, embora, sentada atrás da secretária, mantenha um lenço à mão para ir limpando as lágrimas que teimam em saltar de cada vez que se lembra de como saiu ilesa daquele sítio, com o marido e o filho de 13 anos. “Faltavam dez minutos para o meio dia. Comprei três velas e saí de lá. De repente começou a ouvir-se algo a estalar e a árvore caiu. O meu filho, que é tão devoto de Nossa Senhora, não queria ir à procissão. Não sabe explicar porquê, mas ontem ele não queria ir. E eu obriguei-o, obriguei-o! Quando chegámos a casa virou-se para mim e disse: ‘Mamã, esta não era a nossa hora’.”

“Faltavam dez minutos para o meio dia. Comprei três velas e saí de lá. De repente começou a ouvir-se algo a estalar e a árvore caiu. O meu filho, que é tão devoto de Nossa Senhora, não queria ir à procissão. Não sabe explicar porquê, mas ontem ele não queria ir. E eu obriguei-o, obriguei-o! Quando chegámos a casa virou-se para mim e disse: ‘Mamã, esta não era a nossa hora’.”
Ana de Jesus, rececionista no Centro de Saúde do Monte

O Largo da Fonte está vedado desde a manhã de quarta-feira. Só entram as autoridades e os jornalistas que estão autorizados a ficar junto do coreto. Mas na terça-feira à noite ainda se circulava livremente pelo recinto, a única zona interdita era aquela junto ao fontanário, onde continuam caídos muitos ramos da árvore que deslizou encosta abaixo. O “teto” de flores de papel foi derrubado de um lado, há um cachecol da seleção de Portugal pousado num banco. Não se sabe a quem pertence.

De noite, ainda cheirava a febras assadas e os fogareiros do arraial estavam quentes das brasas que por ali ficaram quando a festa foi interrompida. António Mendonça está junto ao coreto, mas já não diz nada. Vive numa das casas que dão para o largo e foi ele que há 14 anos avisou pela primeira vez do perigo dos plátanos que circundam toda a zona. Desde essa altura que assiste a quedas de galhos, ao envelhecimento das árvores, aos trabalhos que volta e meia se realizam em frente das suas janelas. Mas é o filho, com o mesmo nome, que agora decide falar por ele.

“Os plátanos estão todos doentes.” António Mendonça filho começa a circundar cada uma das árvores. “Esta está rachada até lá acima, esta tem um buraco enorme aqui junto à raíz, aquela está presa por cabos de aço” — um deles partiu depois de ter sido atingido pelo carvalho que caiu. Não pára quieto enquanto vai explicando, revoltado, que os avisos foram mais que muitos e que quem aqui vive sabe bem dos perigos que o Largo encerra.

O pai continua calado, enquanto a mãe recolhe a casa, talvez alertada pelo ladrar insistente do cão que assoma ao portão. É tarde, o vento ainda sopra na copa das árvores, as roulottes estão fechadas, lá em baixo a cidade é feita de mil luzes que em breve também se apagarão. António Mendonça Filho continua zangado. Vai ficar esta noite com os pais. Abre o portão e leva com ele a placa que anunciava a venda de poncha, sangria, vinho, shots e sandes de carne assada em vinha d’alhos.

Amanhecer com uma resma de queixas não atendidas

Tiago Ramalho está na varanda de vassoura na mão a limpar as letras brancas que identificam o Café do Parque, um edifício azul claro e cinza, muito bonito e cuidado, que fica do lado direito do fontanário onde a tragédia aconteceu. No dia da procissão o café fecha e por isso Tiago não estava ontem no Largo da Fonte. Hoje também não vai abrir, mas tem de se entreter com alguma coisa. Sobre as árvores do Largo e os perigos que elas encerram, não tem qualquer dúvida. “Podemos não ser especialistas, mas estamos aqui todos os dias e até em dias sem vento caem galhos. Aquele ali, atravessado, é um susto quando o vento sopra mais forte”, diz apontando para um dos plátanos da praça. Está sempre atento ao estado das árvores. “Até marquei com um marcador uma das árvores que agora está amarrada com um cabo. Fui apontando com um marcador a altura da fenda que ela tinha”, explica.

Tiago já viu um cliente ficar petrificado com o susto depois de um galho cair mesmo junto à mesa que ocupava na esplanada do Café do Parque. Há um ano, foi ele mesmo que teve de se encostar a uma árvore quando, ao limpar a esplanada, ouviu um ramo a estalar. “Ficou preso lá em cima, mas balançava com o vento.”

Quando se fala de responsabilidades, Tiago Ramalho tem poucas dúvidas: “Quem faz a manutenção dos jardins é a Câmara Municipal”.

Hélder Santos/Aspress

E estão por aqui praticamente todos os dias, assegura Carla Mendonça, advogada, e filha de António Mendonça, o homem que vive na casa do Largo. Carla Mendonça tem 38 anos e uma vontade grande de ver apuradas responsabilidades. É natural, desde os 20 anos que sabe que há avisos e queixas feitas pelo pai à Câmara Municipal, alertando para o estado das árvores do Largo. E sendo esta uma luta familiar antiga, Carla guarda consigo toda a documentação que foi sendo entregue e recebida durante todos estes anos e que se prepara para entregar ao Ministério Público.

“Seguramente há catorze anos que nos queixamos da saúde destas árvores. E entretanto já caíram galhos de grandes dimensões. Há queixas escritas na Câmara do Funchal, fizemos uma notificação judicial avulsa em 2013, e nesta vereação também já fizemos reclamações, com um apanhado de tudo o que estava para trás”, explica. Uma das últimas queixas levou a que aparecesse no largo um funcionário da Câmara que cortou alguns galhos, mas ainda assim deixou intacto um deles, que foi alvo de aviso. “Algum tempo depois de esse funcionário ter andado aqui com uma grua, o galho caiu em cima da casa dos meus pais e causou danos. Houve nova queixa, enviámos um orçamento, a Câmara iniciou o processo de recuperação da casa mas não o terminou.”

"Algum tempo depois de esse funcionário ter andado aqui com uma grua, o galho caiu em cima da casa dos meus pais e causou danos. Houve nova queixa, enviámos um orçamento, a Câmara iniciou o processo de recuperação da casa mas não o terminou."
Carla Mendonça, advogada, e filha de António Mendonça, o homem que vive na casa do Largo

Para Carla Mendonça, é a autarquia funchalense que tem a responsabilidade de cuidar das árvores de todo o terreno que circunda o Largo da Fonte. “Tenho 38 anos e desde que me lembro nunca vi aqui outra gente que não a da Câmara do Funchal a cuidar destes jardins. Estão aqui todos os dias e só ontem é que vêm dizer que isto não é da Câmara?” E acrescenta: “A Junta quando se queixou à Câmara falou do jardim e não de uma árvore e a Câmara não respondeu que o jardim não era da sua responsabilidade”.

“O carvalho estava doente”

Subindo a ladeira e ficando por detrás do fontanário onde caiu a árvore, é fácil identificar o carvalho. As raízes estão levantadas, e o tronco, que escorregou terreno abaixo e foi cair em cima das pessoas que compravam velas e lembranças enquanto aguardavam a saída da procissão, tombado e partido. Há um cabo de aço que sustenta um plátano e que se desprendeu de uma árvore que permanece intacta, apenas marcada pela força do cabo a partir. No chão, dois pedaços de pneu que serviam para escorar o cabo que abraçava a árvore. Lá em baixo, ramos do carvalho amontoados e um grande bocado do tronco partido.

Paulo Rocha da Silva, engenheiro florestal, contactado pela diocese para acompanhar as peritagens, ex-diretor regional das florestas, é perentório a afirmar que se trata de uma árvore que estava doente. Mas ressalva que se agora, depois da árvore tombada, é fácil perceber o problema, não garante que tal doença fosse visível a olho nú. “Notoriamente o carvalho não estava saudável. Pela observação do lenho da árvore ela estava em fim de vida. O lenho está completamente desfeito, está completamente mineralizado pela ação de diversos fungos e a função de suporte da árvore estava seriamente comprometida. A parte branca que se vê no centro do tronco é o micélio dos fungos. A coloração é escura e, do ponto de vista físico, podermos com as nossas mãos ir lá e arrancar bocados, quando sabemos que o carvalho é uma madeira muito rija, é uma comprovação de que a árvore estava em fim de vida. A raiz está abaixo do solo, mas julgo que agora serão recolhidas amostras para identificar as patologias que ao longo dos anos afetaram esta árvore”, diz ao Observador.

Carvalho-alvarinho: afinal que árvore é esta que pode viver até aos mil anos e matou 13 pessoas?

Quanto a saber quem é o proprietário da árvore, Paulo Rocha da Silva não quer pronunciar-se, até porque está a trabalhar com a Igreja que, segundo a Câmara Municipal do Funchal e segundo o que parecem comprovar os documentos a que o Observador teve acesso é de facto a dona daquele terreno:

Planta de 1959 que atribui a Igreja a posse dos terrenos onde se encontrava o carvalho que caiu @D.R.

Em todo o caso, este é um caminho público, que dá acesso a um Largo público e daí várias pessoas atribuírem à autarquia a responsabilidade pela manutenção e fiscalização de toda esta área. Paulo da Rocha Silva defende isso mesmo: “Quem tem a responsabilidade de fazer a manutenção destes espaços é a Câmara Municipal. Não há aqui que fazer um drama sobre isto”.

Tentámos contactar o Padre Giselo Andrade, mas tal não se mostrou possível durante todo o dia. Houve apenas uma nota emitida pela diocese do Funchal manifestando pesar pelas vítimas do acidente.

“Há casos de pessoas com stresse cumulativo”

Um aluvião no dia 20 de fevereiro de 2010, que causou quase meia centena de mortos e centenas de desalojados chegou ao Monte. Os incêndios do verão passado que cancelaram as festas e deixaram toda a gente em sobressalto durante dias. O homicídio de um carreiro que abalou toda a comunidade no início do ano. E agora a queda de uma árvore em plena romaria que matou 13 pessoas, algumas delas da freguesia do Monte — esta é ainda uma informação não oficial.

Três tragédias em sete anos na freguesia do Monte

“Temos casos de pessoas que foram afetadas por estas tragédias e estão numa situação de stresse cumulativo”, explica ao Observador o psicólogo Carlos Mendonça, coordenador da equipa de saúde mental do Hospital do Funchal e que acompanha, juntamente com outros profissionais de saúde, todos aqueles que se dirigem ao Centro de Saúde do Monte em busca de ajuda.

“Hoje já começaram a chegar as pessoas e por isso mobilizámos mais recursos. É importante que todos saibam que devem dirigir-se aos cuidados de saúde primários e não às urgências. São as pessoas que devem vir ter connosco, porque apenas fizemos uma visita domiciliar ontem, num caso muito especial”, refere.

"Todos os casos com um nível de exposição ao que aconteceu devem ser acompanhados. Quem viu, quem tentou ajudar e quem perdeu pessoas."
Carlos Mendonça, psicólogo

E quem chega em busca de auxílio não são apenas as pessoas que perderam familiares ou ficaram feridas na tragédia desta terça-feira. “Todos os casos com um nível de exposição ao que aconteceu devem ser acompanhados. Quem viu, quem tentou ajudar e quem perdeu pessoas.” O que Carlos Mendonça ainda não viu, nem ouviu nas consultas de apoio foram casos “de revolta pela fé”, embora tenha já lido na comunicação social alguns testemunhos de pessoas que falam desse momento em que se juntaram para agradecer, para fazer votos a Nossa Senhora do Monte e algumas acabaram mortas.

Ainda antes de chegarem os peritos, ainda antes de se montarem os diretos das televisões, quando o dia ainda amanhecia e enchia de luz o mar que daqui se avista, o café começava a encher. Homens bebiam pela manhã, polícias montavam o perímetro em torno do largo. “Sabe, é nestes momentos que nós sentimos o quão isolados estamos; como as coisas no Continente são mais céleres, há mais apoios”, desabafa um homem que não quer ser identificado.

Há quem fale de maldições, há quem recorde que o fontanário que existe no Largo já foi construído depois de um outro ter sido destruído pela queda de uma árvore. Há quem fique a perguntar-se que fé pode, afinal, ser esta.

José ainda não pensou se irá voltar a vender velas e lembranças no ano que vem. Por agora, já só quer mesmo sair daqui. Olha mais uma vez em volta. “Isto abala muito a fé. Vi mortos, vi feridos… Estou aqui e tenho medo. Estou aqui, e estou sempre a olhar para cima.”

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