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Tentou fugir e não conseguiu. Cat Power, gata em disco de indie folk quente

Cat Power está de volta seis anos depois do último disco e 20 anos depois de “Moon Pix”. Teve um filho e mudou de editora. Nunca se desviou tão bem das balas dos velhos demónios.

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Ela chegou a conseguir um emprego num bar de whisky na Austrália. Talvez o patrão ainda lá ande a perguntar-se o que terá acontecido à nova bartender que, afinal, nunca apareceu. Mas é que esse tinha sido o plano quando pensou em finalmente ter uma vida normal e criar o filho a mais de 15 mil quilómetros de casa, onde ninguém a conhecesse – “Quem é que não quer uma vida simples?”, lançava retoricamente, há dias, em entrevista ao New York Times. Só que depois outra coisa qualquer a puxou de novo para a guitarra e para o piano, para as canções, para as coisas novas que tinha a dizer. Talvez ninguém consiga fugir à natureza que tem – muito menos quando essa natureza é como a de um felino.

Cat Power, ou, como se lerá na conta da luz que lá vai ter a casa, a senhora Charlyn Marie Marshall – Chan, para os amigos –, já aqui anda há muito tempo. Já lá vão 23 anos depois do primeiro álbum – Dear Sir – e 20 do primeiro em que, provavelmente, ouvimos falar dela – Moon Pix. Não é a única nem foi sequer a primeira grande voz feminina do indie rock – é pensar em Feist, Fiona Apple, Tori Amos, PJ Harvey ou, claro, em Patti Smith – mas é, certamente, uma das mais emblemáticas. E talvez a maior inspiração para as miúdas cheias de talento e pêlo na venta que vieram depois, de Sharon Van Etten a Angel Olsen. Já abandonou concertos a meio, cancelou tours inteiras à última da hora, entrou e saiu de reabilitações de álcool e drogas, afundou-se na depressão e descobriu uma doença autoimune rara que lhe faz inchar articulações, rosto e garganta. Agora, teve um filho, mudou de editora e lançou o décimo álbum de estúdio, o primeiro desde 2012.

Wanderer é a prova de que, aos 46 anos, Cat Power continua uma gata – alguns dirão, em mais do que um sentido – com muitas vidas para gastar.

Andarilho

É a tradução mais directa de Wanderer e, dum só golpe, tira-lhe toda dignidade, toda a pinta indie, e manda-nos direitinhos para a casa de repouso, sem passar pela de partida. Para já não dizer que aniquila qualquer hipótese de romântica ilusão polissémica (no último verso do tema-título, Chan canta “I’ll be wondering” – assim mesmo, com “o” em vez de “a” – como quem diz: “vou andar por aí a perguntar”, a questionar, a procurar). Fiquemos, portanto, por “Viajante”. Ou “Vagabundo”.

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A capa de “Wanderer”, de Cat Power (Domino; Popstock)

Chan nasceu e cresceu no sudeste americano, em Atlanta, estado da Geórgia. Era filha dum modestíssimo pianista blues e de uma mãe tão distante quanto ele. A tal ponto que, quando aprendeu a tocar piano, foi por ela mesmo e escolhendo usar apenas as teclas pretas – os sustenidos –; as outras ensinou-lhe um namorado que era músico jazz, anos mais tarde, na África do Sul. Na guitarra, também foi essencialmente uma autodidacta, salvo uma pequena lição de um amigo que, porém, lhe marcaria toda a composição posterior: os acordes menores. Ali pelo fim dos anos 80, início dos 90, migrou para Nova Iorque e, em 92, dava os primeiros concertos num pub de Brooklyn.

Os dois primeiros álbuns, Dear Sir e Myra Lee, foram gravados no mesmo dia de Dezembro de 94. Em 96, já com a Matador e tendo chamado pela primeira vez à atenção da crítica com “What Would the Community Think?”, ainda tinha de equilibrar as contas a fazer baby-sitting em Portland. Até que, em 98, vivia já ela numa fazenda na Carolina do Sul com o namorado Bill Callahan (outro herói destas andanças do alt-rock) e fazia planos de deixar a música, quando se deu a noite em que sonhou os pesadelos que inspirariam os temas de Moon Pix e a projectariam como musa do indie à escala global.

Whiskies & biberons

Foi já este ano, num concerto comemorativo dos 20 anos do disco na Ópera de Sydney, que a quantidade de fãs que lhe vinha dizer que talvez não fizesse ideia o quanto esta ou aquela canção de Moon Pix tinham significado para eles lhe renovou a confiança para continuar, apesar da ruptura com a Matador. “Não sei quantos de vocês estavam lá comigo quando eu era louca”, recorda ao The Guardian que lhes terá dito então. Mas algumas daquelas canções tinham ajudado a ultrapassar separações, mortes, perdas, lutos, dores por que todos passamos. Talvez ela não fosse assim tão louca, afinal. Nem estivesse assim tão sozinha.

Se já antes tinha abandonado concertos e digressões por causa das adições e dos impulsos depressivos, agora havia também os problemas de saúde que não podia controlar, a ameaça à integridade artística, o mundo a tentar mudar com os movimentos #occupy e depois Trump e o #metoo, tanta coisa, por fora e por dentro, a clamar atenção.

You Are Free, de 2003, com a participação de Eddie Vedder e Dave Grohl, é um sucesso; The Greatest, em 2006, desta feita com a colaboração de Al Green e Teenie Hodges, ainda mais. Jukebox segura a barra em 2008 e Sun, de 2012, é a resposta possível à exigência de uma editora que lhe pedia hits.

Se já antes tinha abandonado concertos e digressões por causa das adições e dos impulsos depressivos, agora havia também os problemas de saúde que não podia controlar, a ameaça à integridade artística, o mundo a tentar mudar com os movimentos #occupy e depois Trump e o #metoo, tanta coisa, por fora e por dentro, a clamar atenção. Em 2015, teve um filho de um pai que, até hoje, não quis identificar. E foi aqui que esteve mesmo para deixar a música e ir para a Austrália trabalhar no tal bar, ser mãe aos 43 anos e não pensar muito mais nisto tudo em que andou metida e no que o mundo se anda a meter. Servir whiskies e biberons – e depois logo se via.

Efeito-dominó

Mas, afinal, tinha tanta coisa a dizer como sempre. Ainda que mantenha em Manhattan até hoje o mesmo quarto arrendado de há 20 anos num apartamento térreo do Lower East Side, alugou uma casa em Miami Beach e foi para lá com o filho, Boaz, e a guitarra. Não era que uma coisa fosse mudar a outra – ser mãe e música –; eram simplesmente duas coisas que tinha de ser e fazer, em paralelo. Sentou-se, concentrada em ignorar tudo quanto se passava à volta e lhe pediam que fizesse, e fez apenas e só precisamente a música que queria fazer, da maneira como a cabeça dela lhe mandava fazer: simples, crua, directa, sem merdas. Essa música era “Wanderer”, o álbum que este 5 de Outubro chega às discotecas e melhores casas de streaming. Mas, ao contrário das canções, a viagem não seria simples nem directa.

Cat Power, ou Chan Marshall, 46 anos e um novo disco louco mas desassombrado

Quando o disco chega à editora, bate no poste. Dizem que é para fazer de novo, começar outra vez, que não tem hits, que oiça Adele, que assim é que um disco deve soar. E, de repente, depois de 20 anos de colaboração, a Matador soava a outra coisa, a matadouro. Chan põe o disco debaixo do braço e volta para Miami. E estava quase a desistir outra vez quando encontrou Lana del Rey e a Domino.

Mulher com gaiato e guitarra

É o que nos mostra a capa de Wanderer: uma fotografia tão invulgarmente enquadrada que permite pensar se não terá sido acidental (provavelmente não foi). O braço de uma mulher – a própria Chan –, o braço de uma guitarra e um vislumbre do rosto de um puto – o próprio Boaz. Atrás, o deserto. Liberdade e idade, tudo aqui. Cat Power a ser ela mesma, já sendo outra.

Wanderer são 11 faixas – ou melhor, 10. O tema-título abre e repete-se no final, noutra versão, como se o guardasse. Abre a porta e fecha-a no fim, com controlo, segurança, não há mais nada para ver, por agora. No meio, precisamente a meio, está uma canção inesperada: “Stay”, uma cover de um original de Rihanna, um dos últimos nomes que imaginaríamos como inspiração para uma porta-voz do indie-rock.

[“Woman”:]

Chan tem contado a história em várias entrevistas. Um dia, ia a entrar no carro do namorado de então e a música começou a rodar na rádio. O rapaz terá dito qualquer coisa como: “Aí está a minha miúda!”, mas só depois Chan percebeu que ele estava a falar de Rihanna e não dela. A irritação que a canção lhe passou a provocar só fermentaria e se transformaria anos depois noutra coisa quando, num táxi, a caminho de um copo com um amigo, um auto-rádio alheio a lha voltou a impor inadvertidamente. Chorou a viagem inteira e, quando encontrou o amigo, levou-o para um karaoke e cantou a canção. 16 vezes.

No disco, está registada numa versão muito doce e muito própria, mas quase parece negada mais à frente, num dos melhores temas de Wanderer, pelo emergir de um tom que reconhecemos melhor como a voz de Cat Power: “I wish you would stay”, canta de forma angelical e repetida, para depois declarar “me voy”, eloquentemente o nome da canção.

I’m a woman

Entre estes dois pares de pólos magnéticos – “Wanderer” e “Wanderer/Exit”, “Stay” e “Me Voy” – bate o centro nevrálgico do álbum: “Woman”, o dueto com Lana del Rey que é o single de avanço e leva já quase três milhões de visualizações em pouco mais de um mês de YouTube. O tema não estava lá quando Chan entregou o disco à Matador; ainda não estava segura dele então. Foi a amizade com Lana del Rey e a improvável joint venture com a diva de Born to Die que lhe deu sentido. A soma da máscara de perfeição de Lana à de imperfeição de Chan, a superfície estilizada de uma certa ideia de cinema somada à rugosa textura do real, universalizou a voz que canta:

“The doctor said I was better than ever
Man, you should have seen me
Doctor said I was not my past
He said I was finally free”

[“Stay”:]

A introdução de “Woman” é a única diferença entre o disco que Chan entregou à Matador e o que a Domino recebeu depois. A artista, porém, recusa comentar se algo naqueles versos é dedicado à antiga editora:

“If I had a dime for every time
You tell me I’m not what you need

(…)

Your money’s like a weapon, a tool to get me
You think I’m like the other ones”

De uma maneira ou de outra, se “Woman” é um ajuste de contas, não parece ser só com uma editora nem tem de ser de uma só pessoa. É com muita coisa. E pode ser de muita gente.

“I’m a woman of my word, now haven’t you heard
My word’s the only thing I’ve ever needed”

A felicidade num pequeno-almoço

Chan diz que sabe que uma canção está pronta como quem sabe que uma comida está pronta. Há muito pouco artifício em Wanderer. Há guitarra, piano, uma percussão suavíssima a querer ser esquecida. Somente a voz dela multiplicada em diferentes interpretações cria alguma névoa para tornar mais difusa a claridade das canções. Não é que as sombras já não estejam lá, mas têm agora contornos bem definidos. Não contaminam tudo; podem ser olhadas, enfrentadas, contornadas, cantadas com a segurança de quem domesticou os medos. “La grande facheuse”, “angel of death”, a morte de capuz negro e foice, que visita “Black”. “Horizon” soa à clareira encontrada, finalmente, a meio da floresta. E “In your Face”, como escreve o The Guardian, é bem capaz de ser a primeira canção simultaneamente bonita e simultaneamente sobre Donald Trump.

Hoje, Boaz acorda e diz o que quer para o pequeno-almoço. E Chan faz. E diz que há uma nisso uma felicidade enorme. Cat Power não trocou a música e a loucura por uma vida normal; acumulou-as. Já que tinha muitas vidas, decidiu vivê-las em paralelo. E nunca soou tão segura. Como se o fumo que tem na voz, agora, desassombrasse.

 
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