Sentia que, às vezes, as pessoas ficavam desapontadas porque iam à espera da Ilsa de “Casablanca” e levavam com a Ingrid de Estocolmo. O que é curioso, porque, se teria certamente sobre Ilsa Lund a vantagem da realidade, a Ingrid de Estocolmo não lhe deveria ficar atrás em fascínio. É o sortilégio do cinema: apaga o que existiu, eterniza o que foi – e essa é a memória que fica quando parte um ator. Mas Ingrid Bergman, que morreu há 40 anos no dia do seu 67º aniversário, depois de oito anos de vida em comum com um cancro, tem de ser lembrada enquanto personagem total, mesmo a que esteve sempre para lá do ecrã, tal como Paris ficava fora de campo em “Casablanca” e, por isso mesmo, podia ser imortal.
Órfã desde os 12 anos, foi criada por um tio mais velho que não teve como não lhe fazer as vontades e deixá-la estudar representação. Quis sempre ser atriz e, rapidamente, percebeu que era no cinema especificamente que deveria sê-lo, deixando o teatro e a televisão para segundos planos. Na vida real, sentia-se desproporcionalmente grande e desajeitada; no set, era perfeita e natural. Com a vantagem de ser talvez o único trabalho do mundo que lhe permitia não pensar nos seus problemas, uma vez que a tarefa que lhe competia consistia, precisamente, em preocupar-se com os problemas de outra pessoa.
Estreou-se no cinema sueco aos 17 anos e, aos 23, já o histórico David O Selznick a tinha descoberto e levado para Hollywood, para um remake americano de “Intermezzo” (diz-se que graças à dica de um moço de elevador, filho de imigrantes suecos). Depois, a memória, que é uma coisa realmente estranha, dirá que teve em “Casablanca” o ápice da sua carreira e no casamento com Roberto Rosselini o da vida pessoal. O que é curioso, porque, na realidade, fez “Casablanca” aos 27 anos e, depois, é que fez os filmes que lhe valeram os prémios todos. Quanto a Rosselini, foi apenas o segundo e o mais breve dos seus três casamentos. Mas já lá vamos.
Ingrid Bergman, de quem se diz, além do mais, ter sido uma personalidade dominadora e uma negociadora temível, teve precisamente 50 anos de carreira, fazendo em média um filme, criteriosamente escolhido, por ano. Ganhou três Óscares, no que seria muito mais tarde igualada por Meryl Streep e Frances McDormand e só batida pelas quatro impressionantes indicações de Katharine Hepburn. Trabalhou com alguns dos maiores cineastas da História – Renoir, Hitchcock, Rosselini, Sidney Lumet, George Cukor, Victor Fleming, obviamente Michael Curtiz e, quase no fim da vida, com o tantas vezes tomado erradamente por seu marido e com o qual, na verdade, não teve nunca qualquer espécie de parentesco, Ingmar Bergman. E, se não trabalhou com pelo menos tantos outros, foi porque o ciumento Rosselini o proibiu enquanto pôde. Avulta em qualquer lista que se preze das maiores estrelas de sempre do cinema e foi, talvez, (discutivelmente, como tudo) a mais bela melhor actriz de todos os tempos.
Se a guerra foi o demónio dos anos 40, Ingrid Bergman foi o anjo-da-guarda. Em 41, faz “Dr. Jekyll & Mr. Hyde”, ao lado de Lana Turner e Spencer Tracy; em 42, “Casablanca”, Óscares de Melhor filme, Melhor realização e Melhor argumento; em 43, “Por Quem os Sinos Dobram”, que lhe vale a primeira nomeação para Melhor Atriz; em 44, “Meia Luz”, que lhe dá o primeiro Óscar; em 45, “Os Sinos de Santa Maria” e a terceira nomeação; em 48, a quarta pela sua “Joana d’Arc”, na versão de Fleming.
O metro e 78 de altura obrigou-a a representar, vezes conta, descalça e à sua contracena masculina a usar tacões altos ou mesmo a representar em cima de caixas ou tijolos – Humphrey Bogart, celebremente, é dos que não se livrou. Gostava de trabalhar com Gary Cooper e Cary Grant porque, respetivamente do alto dos seus metro e 91 e metro e 87, nada tinham a temer. Mas foi à sensibilidade de Yul Brynner que ficou a dever o fim do seu complexo, quando, em “Anastásia”, este aparentemente imenso russo que, na verdade, não ia além do mesmo metro e 73 de Bogart, se recusou a subir para cima de uma caixa e lhe disse: “Vou mostrar ao mundo a cavalona que tu és.”
Anthony Quinn dizia que qualquer homem que se aproximasse a menos de uma milha dela se apaixonava. Gary Cooper ficou destroçado quando, com o fim da rodagem de “Por Quem os Sinos Dobram”, chegou também o do namoro. Katharine Hepburn talvez trocasse o Óscar que tinha a mais por menos ciúmes do alegado caso que a sueca teria mantido com Spencer Tracy. Mas, quando, na mudança de década, foi a Itália fazer “Stromboli”, seria a sua reputação a entrar em erupção.
Enquanto forem públicas as virtudes e privados os vícios, Hollywood não tem qualquer problema; o drama começa com a inversão da ordem dos fatores. Sobre a beleza imaculada de Bergman no ecrã de prata caiu de repente a sombra do manto dos críticos de costumes, quando se envolveu com Roberto Rosselini e engravidou, sendo então ainda formalmente casada com o primeiro marido, Petter Lindström. Bergman enfrentou-os com a mesma destreza com que negociava um contrato ou mudava um pneu e seguiu em frente. Deixou Lindström, mudou-se para Itália e casou com Rosselini, numa tumultuosa união de que resultariam três filhos e seis filmes em sete anos. O cinema fica a dever-lhes “Viagem em Itália”, “Europa 51”, o acima citado “Stromboli” – e Isabella Rosselini.
O segundo Óscar de Melhor Atriz veio logo a seguir, em 1957, por “Anastásia”; o terceiro (este para Melhor Atriz Secundária) já em ’74, por “Um Crime no Expresso do Oriente”. A última nomeação da Academia de Artes e Ciências talvez não tenha chegado para distinguir, com justiça, aquele que é, para muitos, o seu melhor trabalho: a sua Charlotte, em “Sonata de Outono”, no regresso à Suécia.
Estava, então, já a lutar com o cancro, o mesmo pássaro que apavorava o amigo Hitchcock a quem ela tinha de acalmar: “Quem não aceita o seu destino, quem não aprende a viver com ele, apenas destrói o pouco tempo que lhes resta”.
Naquele mesmo ano de 1978, chegou ao fim o terceiro e mais longo dos seus casamentos: 20 anos partilhados com o produtor Lars Schmidt, cujos telefilmes “A Voz Humana”, “Hedda Gabler” e “24 Horas na Vida de uma Mulher” ela protagonizara. Depois, já só faria mais um trabalho: tornar-se Golda Meir na minissérie “A Woman Called Golda”. Três semanas depois de morrer, foi distinguida com o Emmy por esse papel, fazendo dela um dos muito poucos atores galardoados com os três maiores prémios da representação: Óscar (cinema), Tony (teatro) e Emmy (televisão).
Ingrid Bergman viveu para representar, apaixonar-se e apaixonar. Disse que, sem o cinema, não respiraria. Quando Hemingway lhe disse que teria de cortar o cabelo para ser a Maria de “Por Quem os Sinos Dobram”, respondeu-lhe que cortaria a cabeça se fosse preciso. Trata-se de um invulgar caso de empate entre talento e beleza. De beleza natural e, ao mesmo tempo, de outro mundo. De estrela dos anos de ouro de Hollywood e de algum do mais autoral cinema europeu. Foi amiga de Hemingway, namorou com Robert Capa, resistiu aos avanços megalómanos de Howard Hughes. Há uma subespécie de rosa baptizada em seu nome e foram feitos Ferraris inspirados nas curvas do seu corpo. À filha Isabella, deixou o curioso conselho: “Keep it simple. Faz uma expressão neutra e deixa a música e a história enchê-la”. E a todos nós, o seguinte: “Felicidade é ter boa saúde e má memória.”