Quando, em 1989, Terry Gilliam leu “Don Quixote”, de Cervantes, e decidiu fazer um filme com base no livro, não fazia ideia que a produção ia ser sucessivamente adiada ao longo dos anos por vicissitudes várias (uma inundação no “set” em Espanha, a morte de dois dos atores que iam interpretar Don Quixote, Jean Rochefort, a escolha original de Gilliam, e John Hurt, falta de dinheiro, problemas legais vários — até há pouco tempo, Gilliam ainda estava em contencioso com o produtor Paulo Branco, que esteve ligado à fita, em parte rodada em Portugal, em 2016), que ele se tornaria sinónimo de projeto catastrófico no meio cinematográfico e que só o iria conseguir terminar na segunda década do nosso século . Interpretado por Jonathan Pryce no papel de Javier, um sapateiro espanhol que julga ser Don Quixote, e Adam Driver como um realizador de anúncios chamado Toby que é arrastado pela loucura deste e se torna no seu relutante Sancho, “O Homem que Matou Don Quixote” estreia-se esta quinta-feira, 17 de fevereiro, e o Observador falou com Terry Gilliam, que veio a Lisboa promovê-lo.
[Veja o “trailer” de “O Homem que Matou Don Quixote”:]
Vários filmes seus tiveram problemas de produção, mas este bateu todos os recordes: começou a trabalhar nele em finais da década de 80 e passaram 20 anos desde que entrou em pré-produção, em 1998, até ser concluído. Numa entrevista que deu nos EUA, diz que estava “possuído” pelo filme. Era fundamental que o terminasse?
Bem, não foi o filme que me possuiu, foi Don Quixote que me possuiu. O espírito de Don Quixote. Cada vez que o Don Quixote tenta fazer alguma coisa difícil, falha. Mas levanta-se sempre. E o problema era esse. Quando eu não conseguia retomar o filme, ia fazer outra coisa, voltava, e lá estava o Quixote a dizer-me: “Olá! Então, como é?”.
E enquanto não conseguia acabar este filme, rodou três…
Pois foi. Mas a personagem estava metida na minha cabeça. Estava a tentar fazer aquilo que o Orson Welles não conseguiu, acabar o “Quixote” dele. E acabei o meu. Ao menos consegui fazer algo em que ele falhou. [risos]
Este filme foi um verdadeiro empreendimento quixotesco. Por vezes, deve ter-se sentido como Don Quixote, a sonhar e a falhar sucessivamente, e outras vezes, como Sancho Pança, a ter que ser realista e paciente.
Foi, e é por isso que eu adoro o Quixote e o Sancho, eles representam os dois lados do ser humano. Precisamos de ser imaginativos mas também práticos. E eu sou ambas as coisas porque faço filmes, e os filmes são coisas complicadas e caras de fazer. Tenho um lado prático e um lado artesanal. E depois tenho o lado maluco e estes sonhos que quero concretizar.
As suas personagens são sempre pessoas que não conhecem os limites da realidade, ou que querem fugir a ela, seja por que razão for?
Nos meus filmes, as personagens tentam escapar à realidade mas não conseguem. O que me intriga, no fundo, é a batalha entre a imaginação e a realidade. Talvez no “Brasil: O Outro Lado do Sonho” o herói tenha conseguido fugir graças à imaginação, mas na realidade ele está é sentado na cadeira, louco. É esse tensão entre ambas que me interessa. E o Quixote e o Sancho são as versões perfeitas, icónicas, deste conceito.
O filme não é mais sobre a personagem de Toby/Sancho do que sobre Javier/Don Quixote?
É, e em parte eu estou a castigar um tipo que fez um filme pequeno e bom quando era estudante de cinema, mas que depois vendeu a alma para ir fazer anúncios e ganhar dinheiro. É a punição de Toby por trair o seu talento.
“O Homem que Matou Don Quixote” é um dos seus filmes mais “realistas”, menos fantasiosos e mais contidos em termos de estilo visual. Não tem muitos efeitos especiais e está ancorado na realidade. Porquê?
Sim, e não o rodei em estúdio e sim em exteriores. Se vamos falar de um homem que tem uma ideia exagerada daquilo que a vida deve ser, como é o caso do Quixote, tinha que ser realista. Além disso, estou cansado do mundo da Marvel. Que é fantástico, mas está a dar cabo do cinema. Porque é que toda a gente tem que ser um super-herói? Porque é que não podemos ser seres humanos? E para mim, o livro, e o filme, são sobre um velho que, quando cai no chão, fica cheio de dores e mal se consegue levantar. E este vai ser o “último hurra” dele, a última oportunidade de conseguir realizar algo antes de morrer. Isto é verdade quer para a história do Don Quixote de Cervantes, quer para a história do meu filme. Eu queria-a instalada de forma bem firme no mundo real, que pudéssemos ouvir, saborear e sentir.
[Veja uma cena do filme:]
O filme não é pessimista e anti-Quixote, é optimista e pró-Quixote.
O Quixote é um espírito, uma ideia, que continua sempre, que é sempre renovada. Vai sempre haver um novo Quixote por aí, algures. Gosto deste filme porque o Toby se tornou no Quixote e isso é bonito. O estranho é que a rapariga se transformou no novo Sancho Pança. A personagem que a Joana Ribeiro interpreta, a Angelica, é uma mulher muito pragmática, tem o espírito do Sancho Pança. Acho que o filme, no fim, se transformou na história de mim e da minha mulher. Sem ela, eu não poderia fazer o que faço, ela é o Sancho Pança da minha vida. [risos]
O que é que sentiu quando filmou o último plano de “O Homem que Matou Don Quixote”? Alívio? Felicidade?
Foi bom, mas também triste, porque tivemos todos que nos despedir uns dos outros. Fomos uma família durante muitos meses. Nem sequer pensei no filme ou no Quixote. Foi triste ter que dizer adeus a toda a gente. Gostava que tivesse sido dramático, mas não foi!
O filme é dedicado a Jean Rochefort e a John Hurt, que já morreram. Sendo que o Jean foi a sua primeira escolha para fazer de Don Quixote.
Sim, logo no início, ainda com o Johnny Depp como Sancho. Passámos muito tempo nessa altura a trabalhar com o Jean, e depois ele apareceu-lhe um cancro e eu recusei liminarmente procurar outro actor, porque não queria tirar-lhe a capacidade de lutar contra a doença. Mesmo até ao fim, ele dizia que estava a ficar melhor e que íamos fazer o filme. E depois, morreu. E a rodagem foi adiada durante uns nove meses, porque eu não conseguia encarar ter que escolher outro ator para o papel de Don Quixote.
[Veja uma cena do filme:]
Este filme deve ser o único sobre cujas dificuldades de produção foram feitos dois documentários, um no início, “Lost in La Mancha”, e outro no final, “He Dreams of Giants”, e pelos mesmos realizadores, Keith Fulton e Louis Pepe. O que acha deles?
E o segundo devia ter-se chamado “He Dreams of Giants but Works with Dwarves”. [risos]. O primeiro é um bom documentário, mas não gosto do segundo. Eles tentaram dramatizar tudo: “Será que o Gilliam vai sobreviver a este filme?” Mas a história não é essa. Eu tive problemas físicos durante a rodagem, mas não foi nada do que eles dizem. Por isso, a minha mulher e os meus filhos odiaram este segundo documentário. Disse ao Keith Fulton que o filme era a autobiografia deles, não era sobre mim: “É sobre vocês e como vocês se sentem quando estão a tentar fazer um filme: sofrimento, dor”. Sou mostrado como se estivesse a lutar com o medo de não conseguir concretizar a minha ideia. Mas não é nada disso. Estava era muito cansado, muitas vezes quase a adormecer durante a rodagem. Este documentário é um falso drama. Mas teve boas críticas porque as pessoas gostam de ver o artista a sofrer! [risos]
[Veja o “trailer” de “Lost in La Mancha”:]
“O Homem que Matou Don Quixote” vai ser o seu último filme? Tendo em conta todo o trabalho e todos os problemas que deu.
Espero que não! Estou contente que o tenha conseguido acabar, e estou orgulhoso dele. E foi muito irónico, porque nos Óscares de 2020, lá estavam os meus dois atores principais, Jonathan Pryce e Adam Driver ambos nomeados, mas não por este filme [risos]! Já tenho um novo argumento quase acabado, em que estou a trabalhar com um jovem argumentista. Deus decidiu eliminar a humanidade porque estamos a dar cabo do jardim dele, este globo onde vivemos. E quem está a tentar salvá-lo é Satanás. É capaz de ser difícil arranjar o dinheiro para o fazer, tudo depende das estrelas que consigamos ter a bordo. O único grande poder que um realizador tem hoje é apenas este: ser capaz de atrair grandes nomes para os seus filmes.
São eles que trazem o dinheiro.
Exato. Os filmes são caros de fazer. Consegui rodar este porque tinha o Adam Driver. Não foi por causa do Jonathan Pryce ou de mim, foi porque o Adam era o ator na berra. Temos que ser muito pragmáticos. Os realizadores são tratados como se sabe e os meus últimos filmes não fizeram dinheiro, por isso, pelo meu lado, não ia pingar nada. Tinha o Jonathan, que foi nomeado para um Óscar, o que melhorava um bocadinho as hipóteses de arranjar financiamento. E depois, apareceu o Adam. E por isso é que o filme foi feito. E também porque houve uma senhora que herdou muito dinheiro no fim da sua vida, que tinha sido muito difícil, feita de muitas lutas, muitos esforços e muita determinação, tal como a história da produção desta fita. Ela deu-nos o dinheiro que faltava para conseguirmos acabar o filme, a soma que não tínhamos conseguido arranjar durante todos estes anos. Parece algo saído de um filme. De repente, aparece uma pessoa rica que cede esse dinheiro em falta porque partilha connosco uma mesma crença, uma mesma sensibilidade ou um mesmo interesse.
Olhando para a sua filmografia, tem um filme preferido, um “filho” favorito, ou gosta de todos por igual?
É perigoso dizer isso. É como se fosse com os meus filhos, não posso dizer de qual gosto mais. [risos] Acho que estou, por assim dizer, condenado a que seja o “Brazil: O Outro Lado do Sonho”. Mas o “Tideland — O Mundo ao Contrário” é um dos meus melhores filmes.
Também concordo, e foi completamente subvalorizado e muito mal compreendido.
Totalmente! Eu estava em Hollywood no ano passado e fui entrevistado por um jornalista da Variety, que me perguntou qual é que eu achava que era o meu filme mais incompreendido e mal-amado. Repondi logo: o “Tideland — O Mundo ao Contrário”. E ele concordou. Acho que é um filme notável, mas as pessoas não souberam lidar com ele. Tem que ser visto com um espírito, um ponto de vista de criança. Com inocência. E assim vão conseguir percebê-lo.
O “Tideland” é um conto de fadas lúgubre e as pessoas não perceberam isso.
Sim, é isso mesmo, mas as pessoas não entenderam. A Jodelle Ferland, que interpreta a miúda, a filha da personagem do Jeff Bridges, é espectacular. Durante a rodagem olhávamos todos para ela como como se fosse a mais velha de nós. E na altura, ela só tinha nove anos e meio. Que menina extraordinária! Ela é o filme. Mas há uma minoria de pessoas que gosta do “Tideland — O Mundo ao Contrário”. Obrigado por serem essa minoria! [risos]