O relato que vai ler a seguir narra acontecimentos que terão tido lugar numa praia da zona oeste do país, no final da década de 1970. O autor do testemunho é C., um homem hoje com 50 anos, professor universitário, que diz ter sofrido abusos às mãos de um padre na sua infância. O texto foi enviado ao Observador com o pedido para que seja publicado mantendo o anonimato do autor.
O Observador sabe que esta história também já foi contada à Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica. O organismo liderado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que desde o início deste ano está a investigar os abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal, não quis comentar a denúncia, uma vez que não se pronuncia sobre casos concretos nem sobre a identidade dos denunciantes.
A uma distância de mais de quatro décadas, este professor universitário conta que sofreu os abusos quando tinha 5 ou 6 anos e se encontrava com a família num retiro. Os efeitos dos abusos perduraram toda uma vida, marcada pela depressão, pelos comportamentos aditivos e por pensamentos suicidas.
Este é um dos 362 testemunhos que já foram recebidos e contabilizados pela comissão, mas não integra o grupo dos 17 casos que foram remetidos ao Ministério Público nem os sete entregues à Polícia Judiciária, uma vez que o caso não só está prescrito como também não foi possível chegar à identidade do sacerdote em questão.
“Tinha 5 ou 6 anos pelas minhas contas. Abusado por um padre, num retiro de casais. A violência foi tal que a memória concreta ficou escondida durante quatro décadas.
As consequências estiveram todas comigo. Insónias desde os 6 anos até hoje. Depressão constante. Comportamentos aditivos. Ideação suicida durante praticamente toda a vida.
Medo, muito medo. Medo de expressar emoções, medo da sexualidade, medo de amar, medo de mostrar fraqueza, medo de que os pais me censurassem se eu contasse.
Vergonha e culpa. Em cada passo da infância e da adolescência, a vergonha do que não sabia que me tinham feito. A culpa constante.
Depois de me violar, censurou-me pelo que eu tinha feito, ameaçou que ia contar à minha mãe. A culpa era minha. A culpa foi sempre minha. Aos 50 anos, por muito que eu racionalize, a culpa ainda é percebida como minha.
Anos no confessionário, anos a ouvir falar de culpa e de como me devia arrepender. Anos a bater no peito como pecador. A culpa é sempre nossa.
As memórias recuperadas trazem-me cada momento do que aconteceu, a carta que me escreveu para mostrar como era meu amigo.
Não foram asneiras ou puritanismos, como ouço o bispo do Porto a caracterizar, fazendo-nos mergulhar em mais culpa e vergonha.
Foi sexo oral, foi sexo anal. De um homem praticado numa criança, que era eu. Foi uma vida destruída até hoje e que não se recuperará nunca, por muito que todas as minhas máscaras o escondam todos os dias.
Não vale a pena dizer que não há um problema na Igreja Católica, porque há pedofilia noutros contextos. Há um problema, um problema com cinco faces.
A face da responsabilidade. O padre que me violou era o mesmo que pregava um Cristo de amor e que deixa vir a si as crianças. Se Cristo é bom, o padre era bom. O mal, afinal, era eu.
A face da mentira. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, lembram eles. Quando falei, desconfiaram e fui sujeito a um interrogatório vil. O caminho da desconfiança. Pediram-me que não testemunhasse. A verdade do silêncio. A vida que segue como se nada fosse verdadeiro em cada um dos nossos relatos.
A face da hipocrisia. Uma moral sexual repressiva para os outros, permissiva para os próprios. Um trauma que se planta, rejeitando os frutos desse trauma. Erros que não se corrigem por conta das aparências.
A face da cumplicidade. Abafar e negar o problema foi a prática e é a prática.
A face da violência. Ouvi a responsável pelas comissões diocesanas na televisão a terminar a sua intervenção, apregoando a misericórdia para com os abusadores. Ouço os bispos que não assumem. Ouço o silêncio dos párocos que se recusam a convidar as vítimas a uma partilha reparadora. Cada um destes comportamentos é um ato de violência. Ponham-se, por um momento, no nosso lugar. Não desprezem o trauma. Não sejam cúmplices do abuso pelo vosso silêncio.
Não podia acontecer na Igreja. Não pode acontecer.
As reações e os silêncios associados ao trabalho que tem vindo a ser feito pela comissão independente fazem-me acreditar que tudo ficará como sempre esteve.
Uns pedidos de perdão, mais ou menos sentidos, mais ou menos verdadeiros, e tudo ficará como antes.
Nós, as vítimas, não encontraremos reparação, porque, ao falarmos, nos tornamos visíveis e a nossa visibilidade é um incómodo.
Fomos brinquedo, agora somos incómodo.”