A Dinamarca vai ser evacuada. Esta é a premissa de Families Like Ours, a primeira série escrita e realizada por Thomas Vinterberg, o projeto que surge após Mais Uma Rodada, longa-metragem que venceu o Óscar de Melhor Filme Internacional. Como nos explica em entrevista, o projeto já estava decidido antes do início da rodagem do filme protagonizado por Mads Mikkelsen. Por razões pessoais, Vinterberg queria ficar e filmar na Dinamarca, evitando a (para muitos) natural carreira em Hollywood que se segue a um Óscar. A série de sete episódios estreia-se dia 19 de novembro no TVCine Edition às 22h10. Ficará depois disponível no TVCine+. O realizador este em Lisboa para a ante-estreia da série, no LEFFEST.
Thomas Vinterberg tornou-se popular no final dos anos 1990 com A Festa, filme que apresentava o movimento Dogme 95 ao mundo, que fundou com Lars Von Trier e que depressa ganhou realizadores-admiradores (e subscritores do manifesto) por todo o mundo. A Festa era um filme libertador (em torno de um aniversário de um pai, a reunião dos respetivos filhos e a revelação de segredos dramáticos) e deixou marcas: o dinamarquês deu alguns passos em falso na década seguinte, consequências do sucesso e da própria catarse da obra. A última década e meia foi diferente, aconteceu o Óscar, sim, mas Vinterberg também tem sido um realizador à procura de algo diferente de filme para filme. Ou de filme para série, como acontece aqui.
[o trailer de “Families Like Ours”:]
Regressemos ao início. A Dinamarca vai ser evacuada por causa da subida do nível do mar. Sabe-se que os Países Baixos já passaram pelo mesmo problema e as soluções de que se lembraram não correram como desejado. O governo dinamarquês quer estar um passo em frente e evacuar a população para outros locais na Europa. O mal, esse, não poderá ser evitado. Sabe-se disto logo numa das primeiras cenas, muita informação é jorrada nos primeiros minutos, mas é informação confidencial. Só nós, espectadores, e uns sortudos da trama sabem do plano do governo. O anúncio oficial só será feito dentro de dias.
O que se vê num dos primeiros diálogos é uma personagem, com acesso privilegiado à informação, a tentar tirar proveito disso enquanto pode: vender as propriedades que tem, antes delas perderem todo o valor. A informação também é transmitida a alguns familiares e é um desses grupos que seguimos com mais atenção ao longo dos episódios. Families Like Ours informa-nos do plano do governo, do pânico que se segue, da evacuação e do que acontece depois.
Há algo de alarmante. Mas também há uma consciência plena do privilégio: a evacuação da Dinamarca é feita em grandes cruzeiros, de forma mais ou menos organizada. Contraste-se isso com o que acontece com os refugiados que viajam do Norte de África para o Sul europeu: a viagem da Europa do Norte para outras áreas do continente é bem mais confortável. Mas o que Thomas Vinterberg nos quer dizer com essas imagens é algo bem diferente, mas deixemos isso para a entrevista.
Esta série tem um lado de vida em comunidade, de um ponto de vista particular. Ia começar por perguntar-lhe, a propósito, como foi viver numa comuna [o filme de Vinterberg A Comuna, de 2016, inspira-se nisso]?
Bom, viver numa comuna foi muito libertador. Como criança, era livre. Era uma declaração de amor e respeito dos nossos pais, pelo menos para alguns; outros não queriam simplesmente cuidar das crianças. Mas os meus pais que foram sempre muito carinhosos e cuidadosos e apenas nos queriam libertar, porque quando foram crianças sentiram-se aprisionados na educação que tiveram. Isto significa que me deixavam viajar pela Europa quando tinha quinze anos. Isto numa altura sem telemóveis, em que viajava só com o dinheiro que tinhas no bolso: ou seja, estive em situações que nunca colocarei os meus filhos. Uma delas foi em Portugal, por causa de um avião. Na altura comprámos um bilhete de avião muito barato e não percebemos bem, mas o preço traduzia-se no seguinte: se houvesse lugar no voo, entrávamos; se não houvesse, não entrávamos. Voltámos de Sagres para Lisboa e quando íamos a entrar no avião disseram “vão-se embora, não há lugar para vocês”. Como era fim-de-semana, a embaixada estava fechada e, naquela altura, era impossível transferir dinheiro rapidamente. Ficámos a viver na rua durante dois dias, apenas com um par de charros. Lembro-me bem da amabilidade dos lisboetas, dois árabes forneceram-nos guarida, sem pedirem nada em troca. Foi uma experiência de doidos, dois dias nas ruas… quando estava há pouco a descer a Avenida [da Liberdade], lembrei-me de tudo isto.
Por falar em altos e baixos, a sua carreira também tem sido feita assim. Prémios importantes, mas também períodos em que nem se dá por si. Onde está neste momento?
Tento não pensar muito nisso. O melhor conselho que tenho para dar é: quer estejas a vencer ou a perder, não penses muito nisso. O meu professor e amigo, que escreveu comigo A Festa, Mogens Rukov, dizia sempre: “os pósteres dos filmes e os prémios têm de ser arrumados passado um ano, só assim consegues avançar”. Neste momento, estou num lugar bom. As pessoas andam a ver esta série, tem tido uma ótima receção. Por isso, sim, acho que estou num lugar bom. Contudo, isso não torna mais fácil a criação do meu próximo trabalho.
Ganhou um Óscar [Melhor Filme Internacional, por Mais Uma Rodada, em 2021] e o seu passo seguinte é não fazer um filme, mas uma série de televisão. Já tinha isso planeado?
Sim. O [Ingmar] Bergman um dia deu-me um conselho: “decide sempre o teu próximo projeto antes da noite de estreia do anterior, porque duas coisas podem acontecer, podes falhar e ficas consciente disso e estratégico ou, pior, pode ser um tremendo sucesso e isso paralisar-te”. Pensei nesta série há sete anos, muito antes de Mais Uma Rodada estar sequer filmado. E decidi manter o plano, porque naquela altura já estava muito ocupado com ele. Sinto-me bem com essa decisão. Além disso, é muito diferente de Mais Uma Rodada, gosto de evitar competição com o meu próprio trabalho. Já tive disso o suficiente.
Esse sentumento de auto-competição é real?
Tento evitar que assim seja, mas as pessoas continuam a fazer essas comparações. Estou muito feliz por ter feito isto, foi um esforço consciente de ficar em casa, a minha família estava magoada por causa do que aconteceu na minha vida [a filha do realizador morreu num acidente de viação]. Queria ficar na Dinamarca, fazer algo dinamarquês.
Por falar em algo dinamarquês, esta série arranca com algumas personagens em pânico a criar estratégias de venda de património. Que peso tem a propriedade para os dinamarqueses?
A série arranca assim porque é sempre um choque, para qualquer dinamarquês, quando sentem a sua propriedade ameaçada. É a fundação do nosso privilégio. Achei interessante colocar a questão: o que acontece à solidariedade, à ética, numa situação de crise, quando tudo está ameaçado? De acordo com um professor de psicologia, desaparece logo no primeiro minuto. O que acontece ao protagonista? Ele quer vender a casa a alguém que vai perder todo o investimento logo a seguir. Farias o mesmo? Eu faria o mesmo? Provavelmente. Fazemos tudo para proteger os nossos filhos. É o que descobrimos, eu provavelmente tentaria descobrir histórias do comprador, coisas que justificassem as minhas ações. Mas… não é uma grande estratégia, não é aquilo que espero de mim mesmo [enganar alguém]. O que faço ali é questionar para onde vai a nossa ética num momento de crise.
Por outro lado, há algo de muito irracional nesse comportamento. Porque não se vê para lá do pânico, é muito provável que o dinheiro passe a valer nada.
Sabemos isso?
Boa questão.
Não tenho a certeza que saibamos isso. O dinheiro vivo tem um grande valor, nem que seja pela segurança que representa. Propriedade, dinheiro… O que faço nesta série é tentar perceber o que acontece quando tiro isso às pessoas, ver o que acontece aos dinamarqueses superprivilegiados, o que lhes acontece quando isso lhes é retirado.
Como é que o público dinamarquês reagiu a esta ideia de migração em massa que leva para a série?
As reações têm sido muito poderosas, sentidas. Algumas até amedrontadas. Muita gente tem visto a série, estou impressionado. As críticas iniciais foram ótimas, depois houve umas menos boas. Mas também gerou uma série de teorias da conspiração, algumas pessoas acham que fui contratado pelo governo para contar esta história. E há muita gente que está zangada por causa do medo que a série instaura. E percebo essas pessoas zangadas, para dizer a verdade. Mas a minha intenção não era espalhar o medo. Criei a série há sete anos, e há sete anos isto era um pensamento experimental sobre o futuro. Mas agora que existe, as pessoas pensam que é sobre o presente, que é sobre o agora. E essa noção temporal choca com as minhas intenções. Algumas reações não têm sido muito simpáticas…
Estamos em negação face ao que nos pode acontecer num curto prazo de tempo?
Se ignorarmos as coisas, elas não existem. Essa parece ser a receita. É muito difícil mudar as coisas durante uma vida, as pessoas mudam muito pouco. As populações ainda menos, mesmo sabendo que têm de o fazer. Os jovens do meu país, e aposto que os portugueses também, querem mudar a pegada que deixam no planeta. Mas não o fazem, não conseguem. Viajam mais e mais, compram mais roupas, há este sentimento permanente de insuficiência nas nossas vidas: não fazemos o suficiente. Um exemoplo: viajei para Toronto para promover a minha série sobre o ambiente e regressei ao fim de vinte horas. Existe esta falha entre o que queremos fazer e o que podemos fazer. E isso é alarmante. Já disse isto uma série de vezes, é como quem estava a viajar na primeira classe do Titanic, a água estava a entrar noutras zonas do barco, mas as pessoas continuaram a comer; no planeta, há muitos países já a sofrer as consequências, mas continuamos como se nada fosse. Não conseguimos lidar com isso. Contudo, sou otimista, acredito na Humanidade. Conseguimos mudar pouco, mas somos incríveis a inventar coisas. Creio que é aí que está a nossa porta de saída disto tudo.
É o que digo a mim mesmo quando me sinto pessimista.
É onde está a nossa esperança.
Acha que vamos sair dos nossos países em luxuosos cruzeiros?
Os primeiros refugiados sírios chegaram a Itália e apanharam um táxi para o hotel mais próximo. Foram os mais ricos que chegaram primeiro. A diferença entre classes também acontece na tragédia, há classes de refugiados. Se as populações da Europa do Norte tivessem de viajar para o resto da continente, de certeza que viajariam numa embarcação mais confortável do que aquelas em que muitos refugiados usam para tentar chegar ao sul da Europa.
Numa perspetiva relativa, em comparação, não é assim tão mau…
Talvez não, mas eu penso que é péssimo, perder a nossa cultura.
Claro. Referia-me apenas à ideia, na série, das pessoas saírem do país de uma forma tão organizada.
Tento ir além daquilo que se vê. A minha intenção é que as pessoas amem e se preocupem com aquilo que têm e que se sintam sortudas por isso. A série é uma declaração de amor ao meu país. Faço-o tirando esse país dos dinamarqueses. É assim que fazemos o drama. Lutamos para que as pessoas se amem, mas não nos preocupamos até não ser possível que elas se amem, como acontece com o Romeu & Julieta. Olhem para o que temos, vamos mantê-lo. Tentemos ser cuidados.
Com o filme A Festa, era óbvio o sentimento de libertação. Voltou a sentir isso? Com esta série, por exemplo?
A Festa foi uma explosão de luz, tudo se alinhou para acontecer… foi uma espécie da tentativa de fazer arte da forma mais pura. Foi uma satisfação enorme. Sempre me sentir muito orgulhoso disso. Os sete, oito anos seguintes foram muito difíceis para mim, porque não conseguia continuar nesse caminho. Estava a tentar coisas de forma livre, perceber quem eu era como realizador. Foi muito difícil e doloroso. Estou muito orgulhoso desse filme, escrevi-o muito rapidamente… foi um milagre fazê-lo.
A fotografia, por exemplo, transformou-se numa espécie de legado.
Quase que se tornou moda, de certa forma. Mas não a conseguiria replicar e isso assombrou-me durante anos. Agora estou bem, mas nos anos seguintes ao filme foi problemático. Mas as pessoas dizem o mesmo de outros filmes meus, dizem isso de A Caça, de Mais Uma Rodada…
A fotografia faz parte da narrativa, complementa o facto de toda a gente ser…
Louca? Ontem um fotógrafo estava a olhar para mim de uma forma muito cética e, a certa altura, diz-me que estava a tentar perceber se eu era louco ou não, porque fiz aquele filme. Afinal, eu parecia apenas uma pessoa normal.