As obras para a construção da rede de comboio de alta velocidade Madrid-Levante seguiam a bom ritmo quando, em 2007, tiveram de ser inesperadamente interrompidas. Durante os trabalhos na região espanhola de Cuenca, sem que nada o fizesse prever, era descoberta uma jazida rara repleta de milhares de fósseis. Entre esqueletos de crocodilos, tartarugas e de muitos dinossauros que têm vindo a ser estudados desde então, foi agora identificado um exemplar que pertence a uma nova espécie de dinossauros que habitaram a Península Ibérica há 73 milhões de anos.
A nova espécie pertence ao grupo dos saurópodes — dinossauros herbívoros de grande porte, pescoço longo e cauda comprida — e foi batizada como Qunkasaura pintiquiniestra. “Esta jazida tem vários esqueletos de saurópodes parcialmente completos. Este é um dos mais completos“, diz ao Observador o paleontólogo Pedro Mocho, que pertence à equipa que fez a descoberta, publicada esta quarta-feira na revista Communications Biology.
O investigador do Instituto Dom Luiz da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa explica que foi recuperado 50% do esqueleto de um único indivíduo desta nova espécie, apesar de a equipa considerar que poderá haver mais entre os fósseis encontrados em Cuenca. A descoberta é ainda mais extraordinária pelo facto de ser muito raro para os paleontólogos encontrarem mais de 10% a 20% do esqueleto seja de que espécie for, acrescenta ao Observador Francisco Ortega, que liderou as escavações.
Do exemplar do Qunkasaura pintiquiniestra, o único que até agora foi encontrado no mundo, foi possível recuperar toda a parte do dorso, o início do pescoço e da cauda, com cerca de dez vértebras. Também foi encontrada a cintura pélvica, bem como várias costelas, o fémur e fíbula. Todos estes ossos são peças fundamentais que agora estão a permitir aos cientistas criar um modelo em 3D do Qunkasaura, um dos últimos gigantes a habitar a Europa antes da extinção dos dinossauros.
Uma escavação “imensa” em tempo recorde
Encontrar a jazida de Lo Hueco, em Cuenca, foi um “acaso feliz”, nas palavras de Francisco Ortega, professor da Universidad Nacional de Educación a Distancia. A mega-operação que se seguiu para retirar em segurança os milhares de fósseis revelou-se um verdadeiro desafio. Foi preciso removê-los em tempo recorde para se dar seguimento às obras da linha de comboio de alta velocidade. “Retirámos blocos com fósseis de uma área de 200 por 80 metros e com cinco metros de profundidade. Participaram 60 paleontólogos e cerca de 30 operários”, recorda ao Observador.
Pelas contas dos investigadores, fez-se em seis meses um trabalho que, em circunstâncias normais, levaria cerca de 100 a 120 escavações sistemáticas e que se poderia prolongar ao longo de 50 anos. Se a rapidez, diz Francisco Ortega, não prejudicou a preservação dos fósseis, atrasou em parte o processamento de todo o material, já que foram retirados blocos de maiores dimensões que foram trabalhados já fora da escavação. “Não é a forma habitual de trabalhar. Já se passaram 17 anos e ainda não conseguimos processar todo o material”, refere.
Na escavação foram recolhidos cerca de 12 mil fósseis, número que foi aumentando à medida que os investigadores foram trabalhando os vários blocos e descobrindo mais exemplares. Acreditam que no total podem chegar aos 15 mil fósseis.
O material foi transferido para um armazém industrial em Cuenca e desde então uma equipa tem dedicado anualmente parte do seu tempo a preparar os fósseis e a estabelecer projetos de investigação. O que levou à descoberta da espécie Qunkasaura pintiquiniestra é apenas o mais recente projeto a estar concluído e partiu da intenção de estudar o esqueleto de um dinossauro que os paleontólogos viram como “exótico”/”estranho”.
Foi nesta fase que Pedro Mocho, que na altura das escavações ainda era um estudante, entrou em ação. Como especialista em saurópodes, o português foi convidado a colaborar na investigação para estudar o exemplar, que possuía características morfológicas únicas e que nunca tinham sido identificadas no território europeu.
“Desde muito cedo tínhamos identificado neste exemplar o potencial de que correspondesse a uma nova espécie, em particular devido à morfologia da cauda”, explica. Nesse aspeto, o exemplar tinha algumas semelhanças com um grupo muito específico de saurópodes que se encontra na América do Sul, mas rapidamente se percebeu que não havia qualquer relação de parentesco entre eles.
Até 20 metros de altura, com dez toneladas e com mais de 40 anos de vida: o retrato do Qunkasaura
O Qunkasaura pertence ao grupo dos chamados dinossauros saurópodes. Ao contrário da linhagem irmã, que resultou nos carnívoros terópodes, de dentes afiados, os saurópodes são uma família de herbívoros de grande porte. “Muitos deles passam por fenómenos de gigantismo, portanto há linhagens com indivíduos que podem atingir mais de 25 metros de comprimento e que se caracterizam por ter causas muito compridas, pescoços muito compridos e cabeças relativamente pequenas quando comparado com a sua massa corporal”, diz Pedro Mocho.
O especialista em saurópodes diz que são conhecidas mais de 100 espécies deste grupo, acrescentando que por ano têm vindo a ser estabelecidas cerca de cinco a seis espécies novas. O Qunkasaura, que já está parcialmente exposto no Museo Paleontológico de Castilla-La Mancha de Cuenca, é um exemplar único em toda a Península Ibérica. O género do animal não é conhecido, o que não é raro já que na maior parte dos casos não é possível identificar, diz Francisco Ortega.
O espécime, que durante o período das escavações ficou conhecido entre os investigadores como “Epílogo”, por ser o mais afastado do centro da jazida, tinha cerca de 15 a 20 metros de comprimento e um peso de cerca de 10 toneladas. Desde a sua mão ao dorso seriam cerca de 3 metros e a sua cabeça podia alcançar os 4 metros, já o tempo médio de vida seria para lá dos 40 anos. “Eles crescem muito rápido e a partir de um determinado momento já quase não têm predadores naturais”, nota o investigador Pedro Mocho.
O Qunkasaura habitou o nosso planeta durante o período Cretácico, quando a Península Ibérica formava uma ilha com a região do sul de França. É neste território que os investigadores têm esperança de encontrar mais esqueletos desta espécie, que viveu durante cerca de 33 milhões de anos na região. “É expectável que tivesse uma distribuição geográfica maior, mas com um individuo só é especulativo falar da distribuição geográfica e no tempo”, refere.
A equipa de investigadores ainda não têm respostas claras sobre como o Qunkasaura terá morrido ou o porquê de em Lo Hueco terem sido encontrados tantos fósseis. Francisco Ortega aponta para uma catástrofe natural, algo como uma tempestade ou uma inundação, que tenha arrastado os animais para o local. Muitos deles ficaram provavelmente expostos durante muito tempo, sendo visíveis marcas de predação.
Lo Hueco: uma arca de tesouros ainda por desvendar
Os cientistas ainda esperam muitas surpresas da coleção de fósseis recuperada em Lo Hueco. O investigador do Instituto Dom Luiz sublinha que os esqueletos lá recolhidos estão a ajudar a compreender uma arca evolutiva da qual pouco se sabe. “Os fósseis de outras jazidas da península ibérica e no sul de França são bastante fragmentários. Lo Hueco é uma das jazidas mais relevantes a nível europeu para estudar este grupo [dos saurópodes]”, aponta.
Há muito que o investigador ainda pretende descobrir sobre o próprio Qunkasaura, como cresceu e se movimentava, como viveu. Por esta altura, estão a criar um modelo do dinossauro em 3D e planeiam cortar parte de um dos ossos do animal para tentar perceber a sua idade com maior precisão.
Francisco Ortega admite que entre todos os fósseis recuperados de El Hueco ainda têm trabalho para mais uma década. “Estar diante de uma quantidade tão importante de informação e que se sabe que poderá demorar anos a extrair dá uma sensação de vertigem”, reconhece, mas ressalva que a equipa não tem pressa. “Tenho a sorte de poder aceder a toda esta informação e dar continuidade a este trabalho. Além disso, os fósseis de Lo Hueco, são muito bonitos”, acrescenta.