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Texto publicado inicialmente a 12 de novembro do ano passado e actualizado após ser conhecida a condenação de El Chapo, considerado culpado dos 10 crimes de que estava acusado
Ficava no número 2.633 da Rua Parsioneros, em Ciudad Juárez, no México. A forrar as paredes, folhas de plástico, para estancar o sangue. No chão, um ralo para o escoar, depois da matança. Havia também um póster com a imagem de uma mulher, cabelos negros revoltos, volumosos, um rasgão a atravessar-lhe as duas bochechas e o nariz. Os lábios entreabertos — e entre eles o buraco de uma bala. A imagem era usada para a prática de tiro pelos assassinos que frequentavam a casa.
Cada vez que chegava alguém para matar, havia um código: “carne assada”. Era dito ao segurança que abrisse a casa “para a carne assada”. No final, depois das torturas, depois dos interrogatórios, depois de consumada a morte, o corpo era enterrado no pátio, numa vala aberta no chão. Foi ali que, em janeiro de 2004, foram desenterrados, pelas autoridades mexicanas, 12 corpos. E assim foi descoberta a “Casa da Morte”, utilizada pelo cartel de Juárez para os seus homicídios.
Não era o cartel de Joaquin Archivaldo Guzmán Loera — “El Chapo” para o mundo. Mas tinha ligações ao cartel Sinaloa, liderado entre 1989 e 2014 pelo barão da droga que, a partir desta terça-feira, vai ser julgado no Tribunal Federal de Brooklyn, em Nova Iorque. De acordo com um documento da acusação, publicado quando “El Chapo” foi extraditado para os Estados Unidos, em janeiro de 2017, o traficante, assim como os seus assassinos, usavam aquela Casa da Morte para as suas execuções.
No mesmo documento, é dito que “El Chapo” andava sempre com uma arma AK-47 banhada a ouro e com outra, de calibre .45, feita de ouro e com diamantes incrustados. Os investigadores norte-americanos descrevem-no como um homem agressivo e impiedoso, que “exercia a violência para punir a deslealdade e reforçar a disciplina entre os membros do cartel”. “Guzmán e o cartel Sinaloa tinham um verdadeiro exército, pronto para a guerra com os rivais e com quem Guzmán considerasse traidor (…). Guzmán empregava sicários, ou assassinos, que levaram a cabo milhares de atos de violência, incluindo mortes, assaltos, raptos, tortura e assassínios para promover e reforçar o seu prestígio, reputação e posição”, lê-se ainda.
Nesse caminho, será responsável por várias mortes — de membros de cartéis rivais, a membros do seu próprio cartel, passando pela de agentes da autoridade. A acusação dá um exemplo: o assassínio de Julio Beltrán, um traficante de drogas que era acusado de realizar negócios de cocaína contrários aos interesses de “El Chapo”. Resultado? Foi capturado na Avenida Álvaro Obregón, a 13 de julho de 2005, quando se fazia acompanhar de quatro guarda-costas, e morto a tiro. “Os assassinos atingiram Beltrán nas ruas de Culiacán usando tantas munições que a cabeça de Beltrán estava quase completamente separada do seu corpo”.
O sobrinho assassinado sem contemplações
Descrito pelos procuradores que o conseguiram condenar no Tribunal Federal de Brooklyn como “maior criminoso do século XXI”, “El Chapo” era suspeito de ter matado (ou mandado matar) mais de 100 mil pessoas. Mas foi julgado por “apenas” 33 homicídios — aqueles a respeito dos quais os procuradores conseguiram reunir provas, mas que não permitem ter a perceção total do rasto de sangue que o barão da droga deixou.
Num memorando do governo norte-americano, datado deste ano, são descritas várias mortes com o selo de “El Chapo”. Uma delas é de Juan Guzmán Rocha, conhecido na gíria do tráfico de droga por “Juancho”. Era, nada mais nada menos do que sobrinho do barão da droga — e membro do cartel que liderava. “El Chapo” suspeitava da colaboração do parente com a polícia e não teve meias medidas: mandou matá-lo. Sem contemplações.
O corpo foi encontrado a 16 de dezembro de 2011, no quilómetro 13,5 da estrada que liga Culiacán a Navolato, perto de uma empresa de aço. “Juancho” estava amordaçado, com os olhos tapados e os braços estendidos em forma de cruz. Apresentava buracos de bala — mas não havia sinal dos projéteis, o que levou as autoridades a acreditarem que o homicídio tinha acontecido noutro lugar. Na altura, duvidou-se de quem teria sido o autor do crime. Hoje, a acusação tem provas de que terá sido “El Chapo” a mandar matar o próprio sobrinho.
Sete norte-americanos torturados e mortos — seis por engano
O canal norte-americano WFAA deu conta, em abril, de outro caso. Aconteceu há 33 anos, mas só foi revelado agora, quando três antigos polícias mexicanos (em regime de proteção de testemunhas) decidiram romper o silêncio e associar “El Chapo” à morte e tortura de sete norte-americanos — dois casais Testemunhas de Jeová que estavam em Guadalajara numa viagem missionária, os amigos John Walker e Albert Radelat, e ainda “Kiki” Camarena, agente da DEA (orgão da polícia norte-americana encarregue do combate aos narcóticos). Os crimes aconteceram entre finais de 1984 e inícios de 1985.
Comecemos pelo princípio, ou seja, pelo dia 2 de dezembro de 1984, quando dois casais — Benjamin e Pat Mascarenas, Dennis e Rose Carlson — bateram à porta errada. Era a casa de Ernesto Fonseca, então barão da droga para o qual “El Chapo” trabalhou nos primeiros anos da sua ascensão nos filões da droga. Os traficantes confundiram os quatro norte-americanos com informantes ou agentes da DEA — e nem lhes deram hipóteses de desfazer o engano.
Hector Berrellez, ele sim antigo agente da DEA, que esteve envolvido na investigação do caso, revela que “El Chapo” matou e torturou os dois casais. “Ele interrogou-os, torturou-os. Deu-lhes chapadas, pontapés e foi ele que disparou sobre eles. Foi ele que puxou o gatilho”, assegura. O polícia mexicano Jorge Godoy — que, na altura, era guarda-costas de Ernesto Fonseca — confirma a versão. Diz que viu as duas mulheres serem violadas em frente aos maridos e os quatro, um a um, a serem alvejados por “El Chapo” com uma metralhadora Uzi de 9 milímetros. O traficante ficou, depois, a ver os corpos caírem para um túmulo aberto no chão. “Ele gosta de cortar pessoas”, disse ainda Godoy ao canal norte-americano. “Estamos a falar de um animal”, acrescentou Berrellez. Os corpos dos quatro norte-americanos nunca foram encontrados.
Os assassinatos, porém, não terminaram aí. Quase dois meses depois, a 30 de janeiro de 1985, John Walker e Albert Radelat tencionavam jantar no restaurante La Langosta. Walker era um antigo militar do exército norte-americano que tinha combatido no Vietname e tinha duas condecorações Coração Púrpura — entregues em nome do Presidente do país aos militares mortos ou feridos em missão. Estava em Guadalajara acompanhado do amigo Albert Radelat para escrever um romance policial.
Os dois chegaram à porta do restaurante, desconhecendo que, no seu interior, estavam três barões da droga — e os seus sicários. Godoy estava à porta a fazer a segurança de Ernesto Fonseca. “Disse-lhes de imediato: ‘Está fechado, têm de ir embora, vão embora, por favor’“, conta na mesma reportagem. Tarde demais. Os dois norte-americanos foram confundidos com agentes da DEA pelo barão da droga Rafael Caro Quintero — e foi-lhes exigido que entrassem.
“Eles passaram por mim e eu disse: ‘Oh meu Deus'”, conta Godoy. O agente diz ter visto o próprio “El Chapo” matar os dois homens. “Sim, vi o ‘El Chapo’ matá-los. Ele pôs a cara deles no chão, depois levantou-os”, descreve, enquanto encosta a mão ao pescoço, fazendo o gesto de alguém a ser degolado. “Matou-os. E livrou-se dos corpos”, diz. John e Albert morreram decapitados e foram enterrados num parque próximo.
Pouco depois, a 7 de fevereiro, outra morte — também às mãos de “El Chapo”. “Kiki” Camarena, assim era conhecido o agente da DEA que queimou 10 mil toneladas de marijuana do cartel, no valor de mais de cinco mil milhões de dólares (perto de 4,5 mil milhões de euros). A vingança dos traficantes não tardou. A 7 de fevereiro, ele e o piloto que o conduziu aos terrenos de cannabis, Alfredo Zavala, foram raptados em plena rua quando “Kiki” se preparava para almoçar com a mulher.
Os dois foram arrastados para a Rua Lope de Vega, onde ficava a casa de Rubén Zuno Arce, um dos membros do cartel. Camarena tinha um casaco a tapar-lhe os olhos. Não ofereceu resistência. Ali, foi torturado até à morte — inclusive por “El Chapo”. Hector Berrellez, que esteve destacado também na investigação destas mortes, garante que Guzmán saltou em cima de “Kiki” com os joelhos, partindo-lhe as costelas. “Ele foi visto por duas testemunhas a dar bofetadas, pontapés e a cuspir na cara de Camarena”, disse ainda à reportagem do WFAA. Os dois corpos foram encontrados na beira de uma estrada.
Mais de mil tiros em oito minutos para matar 6 rivais
O dia era o 8 de novembro, o ano 1992. Duas e meia da manhã. A discoteca Christine, em Puerto Vallarta, estava cheia. À porta, parou um camião branco de caixa aberta, marca Dina. Novinho em folha. De lá saíram umas cinco dezenas de homens com coletes anti-bala, cartuchos e armas automáticas AK-47 e AR-15. Alguns deles carregavam granadas. Atrás do camião, três camionetas: uma Suburban, uma Cheyene e uma Ram — que ficaram paradas a alguns metros, de motores ligados, guardadas por homens de metalhadora em punho.
Os homens estavam vestidos de negro e com as armas penduradas nos ombros. Organizaram-se em três filas que cercaram a discoteca: a primeira avançou pelo lado direito, a terceira pelo esquerdo e a do meio entrou estabelecimento adentro. Os alvos estavam perfeitamente identificados: os irmãos Ramón e Francisco Javier Arellano Felix, líderes do cartel de Tijuana, que estavam no interior do espaço noturno. Os agressores eram do cartel de Sinaloa e queriam vingar-se de uma bomba que explodiu na propriedade de um dos seus líderes. A comandar as operações? “El Chapo”, pois claro.
O assalto à discoteca durou oito exatos minutos — o tempo suficiente para se dispararem mais de mil tiros, dentro e fora do espaço. “Estão cercados, filhos da p***”, gritou um dos agressores, enquanto os outros se dirigiram para a mesa onde habitualmente se sentava o gerente — e onde era esperado que estivessem os alvos da operação.
Do ataque resultaram seis mortos — dois deles ficaram junto à sua mesa, outros dois estavam na casa de banho e os restantes dois lá fora, enquanto tentavam escapar pela saída de emergência, de arma em punho. Nenhum deles era Ramón ou Francisco Arellano Felix: os alvos escaparam para a casa de banho, conseguiram esconder-se num buraco no teto e fugiram pelas condutas de ar condicionado.
A fuga foi limpa. Os assaltantes escaparam para as camionetas — exceto dois, que ficaram para trás e obrigaram dois taxistas a conduzi-los. A polícia mexicana ainda esteve perto de alcançar o camião Dina, mas dois dos agressores, munidos com metralhadoras, atiraram mais de 40 tiros ào carro policial. O tiroteio, durante muito tempo associado a Luis Héctor “El Güero” Palma, um dos líderes do cartel Sinaloa, teve também o dedo de “El Chapo”: o crime surge no memorando do governo norte-americano com a autoria do traficante.
O “menino de ouro” que traiu El Chapo — e acabou morto
Rodolfo Carrillo Fuentes era um dos fundadores do cartel de Juárez, com o qual “El Chapo” colaborava para enviar droga para os Estados Unidos. A certa altura, diz o memorando, os funcionários dos dois cartéis começaram a desentender-se — e Rodolfo não foi de modas, ordenando a alguns dos seus empregados que matassem os de “El Chapo”. O caldo entornou. Apesar da longa relação de negócios, o traficante, que esta terça-feira volta a tribunal para ser julgado, mandou assassinar o antigo parceiro — também conhecido por “menino de ouro”, por ser o irmão mais novo da família.
Tudo aconteceu no dia 11 de setembro de 2004, três anos depois do ataque terrorista ao World Trade Center. Rodolfo e a sua mulher, Giovana Quevedo, acabavam de sair de uma sessão de cinema na Plaza Cinépolis, em Culiacán, acompanhados da filha pequena do casal. Eram 16h45. Já no parque de estacionamento, preparavam-se para entrar na sua carrinha Voyager branca quando foram atacados por atiradores do cartel Sinaloa, que dispararam em três frentes.
O tiroteio durou alguns instantes, os suficientes para Rodolfo e Giovana morrerem — com a filha do casal a ficar ali, junto à poça de sangue dos pais. Morreu ainda Juan Durán Mayorquín, que cuidava dos carros do cinema.
O crime fez com que os dois cartéis virassem costas — e iniciassem uma batalha sangrenta pelo domínio do tráfico na Ciudad Juárez. “[El Chapo] abasteceu os seus ‘pistoleros’ em Juárez com um esconderijo de armas e ordenou-lhes que matassem membros da organização Carrillo Fuentes”, refere o memorando do governo norte-americano. “O movimento agressivo do réu pelo controlo de Juárez conduziu a uma violência sem precedentes e a uma desconcertante contagem de corpos que fez de Juárez, naquele tempo, a capital mundial dos homicídios“.