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Tintim só teve revista quando deixou de ser repórter. As suas primeiras peças não são publicadas na revista homónima, mas sim no “Petit-Vingtième”, suplemento do jornal “XXème Siècle”, que deu o primeiro emprego, não só ao jovem repórter, como ao seu criador Hergé.
A história de Tintim, no entanto, começa bem antes das suas histórias. Georges Rémi – verdadeiro nome de Hergé – hidratou o seu aventureiro em várias fontes antes de lhe levantar a poupa no suplemento que dirigia. Uns dizem que Tintim emula Paul, o irmão mais novo de Georges, herói da Primeira Guerra Mundial; outros atribuem a inspiração a Palle Huld, um caturra que protagonizou uma badalada viagem à volta do mundo; outros invocam, embora Hergé garantisse não a conhecer, Tintin-Lutin, uma história de Rabier sobre um rapazito de cara arredondada.
Todos podem, de uma maneira ou de outra, cobrar a sua migalha no êxito de Tintim, como também a poderiam cobrar o cinema Americano, ou aquela mundividência meio intrépida meio cristã, nobre e masculina dos sequazes de Baden-Powell. É, aliás, a estes Boy-Scouts que devemos as primeiras histórias conhecidas de Hergé. O escutismo, primeira paixão de Rémi, inspirou a concepção do irmão mais velho de Tintim, Totor, um escuteiro que vivia as suas aventuras no “Le Boy-Scout Belge”, pasquim sem pretensões mas com um director artístico oficioso de alto quilate (Hergé, claro), capaz de vir a chefia a mais importante revista de BD da Bélgica.
Ora, quem conhece a pujança e a diáspora dos escuteiros no princípio do século, quem percebe a forma como se tornaram, mais do que uma face rejuvenescida, a autêntica face juvenil da Igreja nos países católicos; quem sabe quamanha era a correspondência entre o ideal escuteiro e as ânsias aventurosas dos rapazes, quão atractiva a ascese para-militar com que moldava as almas butas dos pequenos à fé católica, não estranhará que uma simples colaboração num jornal de miúdos para miúdos, caso desse mostras de talento, pudesse catapultar um desenhador para outros palcos. Embora as histórias (que se podem ler numa edição alargada dos arquivos Hergé) não tivessem ainda especial encanto, e ao desenho só com boa-vontade se pudesse chamar mais do que razoável, um e outro renderam a Hergé um contrato no “XXème Siècle”, jornal chefiado pelo Abade Wallez, como publicitário.
As primeiras aventuras
De publicitário (numa época em que a publicidade funcionava de maneira diferente, em que os desenhadores dos jornais é que tinham de debuxar a campanha do publicitado), Hergé passou – não sem que as boas relações com o Abade tenham contribuído para isso – a primeiro editor de um suplemento infantil, o tal “Petit Vingtième”, que incubou os primeiros tempos de Tintim.
Tintim viajou para o País dos Sovietes a 10 de Janeiro de 1929 e só voltou vários meses depois, já calejado das manigâncias comunistas, estoirado de um tropel constante que lhe valeu a reportagem que os leitores foram acompanhando, leitores esses que, se não constituíam ainda uma legião Alexandrina, pelo menos encorajavam novas partidas. Tintim adequava-se aos leitores: infantes do público católico que comprava o XXème, de monárquicos convictos, daqueles que viriam (como Hergé, aliás) a formar o grupo de Léon Degrelle, felizes por verem os filhos aprenderem as atrocidades do mundo comunista. Do lado das crianças, mais do que o traço infantil e a aventura, atrairia também a estrutura, montada para que cada página semanal tivesse interesse por si, pudesse ser lida separada, sem precisar mas também sem obstipar a história geral. À URSS seguiram-se o Congo Belga e a América (com umas aventuras de Quim e Filipe pelo meio), e à conquista dos dois continentes a conquista de magotes de admiradores.
Antes de estalar a guerra e de com isso ser interrompido o jornal, já o “Petit-Vingtième” tem um clube, os “Petit-Vingtièmistes” que organiza festas concorridas, organiza acções publicitárias e que chegou a encher a estação de comboios de Bruxelas para acolher um Tintim acabado de chegar do Congo (o jovem actor contratado para o efeito trazia atrelados dois pigmeus que davam a autenticidade africana à viagem) após o fim da aventura nas páginas do jornal.
O “XXème” fechou em 1940 com a ocupação, já Tintim era um herói bastante popular. Essa popularidade, no entanto, viria a causar-lhe alguns problemas. É que, com a chegada dos Alemães, o tão viajado Tintim decidiu ficar. Hergé tinha encontrado a sua galinha de ovos de ouro, pelo que não convinha desperdiçá-la durante os anos férteis; Tintim crescia em reconhecimento, Hergé em mestria e entusiasmo, pelo que suspender a publicação – além de lhe sonegar o sustento, numa actividade que nem era política – podia matar precocemente o seu jovem herói.
Às questões práticas, juntava-se uma posição ideológica que não impedia liminarmente a sua permanência na Bélgica ocupada. Como “royaliste” convicto, Hergé defendia que o lugar do Rei, mesmo que deposto ou impotente, era junto do seu povo e não no exílio; ora, aquilo que defendia para Leopoldo, também podia defender para ele. Por outro lado, aconteceu a Hergé o mesmo que a Degrelle e restantes Rexistes, ou, em França, que a tantos da Action Française: o facto de não terem interesse em lutar pela democracia foi tomado como interesse em lutar ou colaborar com a Alemanha. Finda a guerra, a caça às bruxas do colaboracionismo apanhou não só os germanófilos, como a maior parte dos anti-democratas. A nova ordem – que desde logo entendia por colaboracionista qualquer um que continuasse a publicar durante a ocupação, fazendo de Tintim um perigoso jovem Hitleriano e de Milu um feroz pastor alemão – impediu Hergé de publicar por uns tempos. Pior: como durante a guerra foi publicando as aventuras do seu herói no “Le Soir”, que continuara a publicação contra a vontade dos donos, Hergé viu-se, feita a paz, com problemas que nem o seu herói seria capaz de resolver.
Uma revista para os jovens
Ora, foi este impedimento que, em parte, deu origem à célebre revista “Tintin”. Antes da guerra, havia duas grandes revistas de BD. De um lado a revista “Spirou” (na altura jornal), já existente desde 1938, de outro o jornal do Mickey. Mickey, vindo da América, seria um caso à parte; já a revista “Spirou”, tinha uma história parecida com a de Tintim: Dupuis, um editor católico insatisfeito com a qualidade moral das histórias para miúdos, encarrega os seus filhos Charles e Paul de criarem uma revista para os jovens de espírito Cristão. Rob-Vel cria o estranho paquete, os editores juntam-lhe algumas histórias americanas e criam a revista.
Também esta – tal como o jornal do Mickey – continuou a ser publicada durante a guerra (com as melhorias que a entrada de Jijé proporcionou), coisa que também lhe valeu uma suspensão. Acontece, então, que num momento único a Bélgica tem, por um lado, experiência nas revistas de Banda Desenhada e provas da sua viabilidade; as principais revistas suspensas, algumas sem saberem se teriam autorização para publicar, ou mesmo papel para o conseguirem; e, embora muitos deles suspensos, alguns dos melhores desenhadores livres dos seus contratos com os patrões anteriores (muitos deles falidos).
É neste panorama que Hergé fala com André Sinave para tentar arranjar uma solução para o seu caso. Sinave, um sonhador que será depois excluído da gestão pelo investidor da revista “Tintin”, por ser “trop artiste”, começa logo a projectar uma revista. Chamar-se-ia “Tintin”, teria o criador da personagem como director artístico e Raymond Leblanc como editor. Leblanc tinha na altura as edições Yes – que, com a ruptura, ficariam para Sinave como compensação por não fazer parte do projecto que ajudara a criar –, o que o validava para a posição de editor, e tinha também boa relação com William Ugeux, um homem que passara do trabalho com Hergé no “XXème” para o secretariado de informação. Foi deste Homem que Leblanc conseguiu a autorização para Hergé voltar a publicar e cumprir o sonho da tal revista.
Com as demoras do processo, complicado pelo conteúdo político do “Le Soir”, já a “Spirou” e o Mickey tinham voltado a publicar; ainda assim, Hergé conseguiu juntar uma equipa de luxo para as doze páginas semanais da revista. O director artístico sugere imediatamente o seu colaborador E. P. Jacobs, o seu amigo Van Melkebeke para redactor principal, Jacques Laudy e o jovem Paul Cuvelier. Van Melkebeke durou pouco: as relações com Leblanc não eram as melhores, Leblanc queria, como Hergé, uma revista de espírito cristão que não correspondia aos propósitos de Van Melkebeke pelo que, quando o editor descobriu que este ainda tinha um processo pendente por colaboracionismo, acabou por substituí-lo. Ainda assim, Melkebeke foi involuntariamente responsável pelo nascimento de uma das principais séries da revista “Tintin”.
Jacobs, o antigo cantor de ópera ajudante de Hergé nos cenários de Tintim, descoberto por este quando viu os cenários de um espectáculo pintados por Jacobs, já se tinha estreado como desenhador independente na revista “Bravo!”. Jacobs, porém, não tinha interesse em ficar colado ao rótulo de ficção-científica que o êxito do Raio-U lhe impunha. Quis, por isso, para a estreia da revista, fazer uma banda-desenhada de fundo histórico. Ora, como Cuvelier tinha sido contratado de propósito para fazer Corentin, e Melkebeke já tinha pedido a Laudy a Lenda dos quatro filhos Aymond, já eram muitas as BDs históricas e Hergé votou a Jacobs a ideia de Roland, le Hardi, o tal projecto histórico. Na decisão de mudar a ideia de Jacobs e não a de Laudy terá pesado o facto de já ter sido recusada a Melkebeke a adaptação de Zadig, pouco adequada a uma revista de valores cristãos.
Mais heróis
Jacobs foi, então, obrigado a pensar numa nova aventura, a que chamou O segredo do espadão, desvendado por um tal capitão Blake e pelo professor Mortimer do MIT, exemplos máximos da elegância britânica, que deliciaram os leitores de “Tintin”. O êxito foi tal que, durante muito tempo, Blake e Mortimer foram os únicos capazes de tirar a ilustração da capa ao próprio Tintim!
A revista saiu, então, com quatro BDs entre as tais doze páginas, feita já a prospecção de mercado por Raymond Leblanc, atestada a veneração das escolas católicas pelos valores de Tintim (um importante mercado, que assegurava uma boa fatia da tiragem), e a receptividade da juventude. A tiragem do primeiro número foi de 60 000 exemplares; dois anos depois, tiravam-se mais 70 000 em França, mas não era só a impressão que aumentava.
A publicação da revista em França não era fácil, porque as aventuras do herói e do seu cãos já saíam lá noutra revista, “Coeurs Vaillants”. Hergé não tinha nenhum contrato de exclusividade nem nenhuma obrigação legal, mas ainda assim a revista, na posse de algumas pranchas, continuou a publicá-las contra a vontade de Hergé. Em 1949, a revista ainda publica o “Templo do Sol”, apesar de a revista “Tintin” já existir há mais de um ano. Para subsistir, a revista não tem, então, apenas a concorrência de outras bandas-desenhadas; tem a concorrência do próprio Tintim! É nessa altura que os outros colaboradores têm de mostrar o que valem.
Hergé – Pierre Assouline explica-o bem na sua biografia sobre o artista – sempre foi um perfeccionista. Gostava que todos os pormenores das suas histórias batessem certo (conta-se até que, nos tempos da sua colaboração com o igualmente perfeccionista Jacobs, suprimiram um autocarro de uma tira porque ele, a essa hora, não passava nesse sítio!) e que tudo fosse verosímil. No entanto, não era um desenhador veloz. O ritmo de Tintim não aguentava que o seu criador dispusesse de muito tempo para as suas aturadas pesquisas e de igual tempo para executar o desenho pensado. O rendimento da personagem, porém, permitia contratar desenhadores mais céleres para ajudarem nos cenários, na cor e em tudo o que, sem interferir na história, pudesse aliviar a carga de Hergé. É com isto que, depois da já referida colaboração com Jacobs, o criador de Tintim decide criar os estúdios Hergé.
Estes famosos estúdios serviam para executar os tais trabalhos de que Hergé não conseguia dar conta; no entanto, funcionavam também como uma verdadeira escola de Atenas da Banda Desenhada; basta ver que os seus primeiros trabalhadores foram Jacques Martin e Bob de Moor, aos quais se seguiu, por exemplo, Macherot. Todos estes lançaram as suas famosas séries de Banda Desenhada – Alix ou Clorofila, para citar as mais famosas de Martin e Macherot — apadrinhados pela revista “Tintin”, depois de experimentados sob o jugo do mestre Hergé.
Idade de ouro
Ora, foram estas bandas desenhadas de alta-qualidade, já bem maturadas na altura em que vieram a público, que explicam, em parte, o êxito da revista “Tintin” em França e a idade de ouro da BD Franco-belga.
Também a “Spirou” era um viveiro de qualidade, com Jijé a apadrinhar o famoso bando dos 4 de que saíram Morris e Franquin, criadores de Lucku Luke e Gaston, entre tantos outros. As revistas aliavam uma estratégia de promoção imaginativa, que levava as personagens a entrarem na realidade (respondendo ao correio dos leitores, ou desenvolvendo acções como a recepção ao Tintim dos Vingitièmistes) e as crianças a levarem as personagens para o seu quotidiano; por outro lado, os artistas tinham estilos definidos – a linha clara na revista “Tintin”, de contorno definido, quadrado mais vazio, corpo proporcional… contra os quadradinhos mais cheios, mais caricaturatos do grupo dos quatro; tinham estilos definidos, sim, mas ao mesmo tempo uma camaradagem e um espírito comum que permitiam que, a despeito da rivalidade, Franquin publicasse Modeste na “Tintin” e Spirou na “Spirou”, Goscinny escrevesse Humpa-Pá para a “Tintin” e Lucky Luke para a “Spirou”, antes de começar Astérix para a sua – mais vanguardista mas também mais tardia – revista “Pilote”…
As décadas de 50 e 60 aprimoraram os traços dos desenhadores, viram chegar ao estrelato o maior génio argumentista de que há memória, René Goscinny, que além de Astérix, Lucky Luke ou Iznogoud, se entreteve durante anos a tornar geniais as mais fracas personagens das revistas de BD; viram chegar a diversidade de desenhadores como Giroud e argumentistas como Charlier, já mais realistas, com Blueberry ou (só este último) Barba-Ruiva; mais importante para nós, portugueses, porém, é que também viram, já em 1968, chegar a revista “Tintin”.
Em Portugal
“Tintin” não foi, nem por sombras, a primeira revista de Banda Desenhada portuguesa, nem sequer a primeira a publicar o Tintim. Antes já tivéramos o “Mosquito”, o “Cavaleiro Andante”, o “Camarada”, o “Diabrete”, entre tantas outras; eram, aliás, uma forte aposta do regime, já que a Mocidade Portuguesa chegou mesmo a patrocinar uma revista, o “Camarada”. Uma particularidade engraçada de muitas destas primeiras revistas é que, além dos grandes desenhadores estrangeiros, pareciam também atrair os grandes escritores e artistas nacionais. Henrique Lopes de Mendonça intercalava a sua actividade literária com a direcção do “Gafanhoto”, Simões Muller, embora esse desde sempre mais dedicado ao público juvenil, dirigiu quase todas as revistas, do “Papagaio” ao “”Cavaleiro Andante e Cotinelli Telmo, como homem dos 7 ofícios, também foi um importante colaborador destas revistas.
“Tintin”, embora graficamente muito superior, também parece ter herdado das suas antecessoras esta característica: um dos seus grandes directores foi Dinis Machado, que além de nos contar o que dizia Molero, também contava o que dizia Tintim às cartas dos fãs, entrevistava autores e procurava, dentro dos limites de uma revista juvenil, elevar a Banda desenhada a um estatuto de verdadeira arte que só nos anos 70 lhe começou a ser reconhecido.
Dinis Machado e Vasco Granja, os dois directores mais conhecidos da revista, tinham a sorte de, à falta de concorrência (não desfazendo do “Mundo de Aventuras”) poderem sorver de todas as revistas estrangeiras; assim, a qualidade da revista, ao longo dos seus 14 anos de existência, é impressionante: publica o melhor de “Spirou” e o melhor da “Pilote”, sempre com a última página dedicada ao herói que nomeia a revista. Publica também autores portugueses (Carlos Roque, por exemplo, que chegou a publicar na “Tintin” belga) e adapta algumas das séries históricas, com maior ou menor pertinência (o caso Dreyfus em Banda-desenhada, por exemplo, devia interessar mais ao público francês do que ao português). A revista vai, também ela, acompanhando as mudanças de filosofia que vêm do mundo francófono, que dita as tendências da Banda-desenhada: não é com grande atraso que publica Hugo Pratt ou Buddy Longway o que, de resto, já correspondia a uma tradição portuguesa com o Tintim, não apenas de não se atrasar, mas até de se adiantar: quando o Padre Varzim comprou os direitos de Tintim para “O Papagaio”, além de ser o primeiro a fazê-lo fora de um país francófono, decidiu ilustrá-lo antes do próprio Hergé!
A revista portuguesa durou até 1982, longevidade assinalável para uma revista deste estilo, e que só se antecipou à morte da congénere francesa em seis anos. Os editores, decididos a dar uma cara nova a Tintim, substituíram o velho jornal por um “Tintin Reporter”, a que se seguiu a “Hello BéDé”. Nenhuma delas teve grande êxito, tanto que em 1993 os editores acabaram definitivamente com a revista. Hergé disse certa vez que “Tintin c’est moi”. Estava a falar da personagem, mas também podia estar a falar da revista. Morto o criador, morto também Goscinny, a idade de ouro da BD franco belga já só a muito custo dava algum do seu metal aos garimpeiros. No entanto, a qualidade vertida semanalmente durante os anos que a revista durou ajudam a perceber o pregão que Bob de Moor criou para a revista em 1948: “Tintin” não é para ler apenas dos 7 aos 77 anos; significa apenas que, começando aos 7, aos 77 ainda tem muito para ler. A própria revista o comprova: chegou agora aos 70 e já alguém se fartou?
Nota: aplica-se aqui o princípio que considera legítimo traduzir os nomes mas não as marcas ou empresas. Assim, a personagem vem grafada como Tintim, à portuguesa, e a revista como Tintin.