“Toda a Gente tem um Plano” é o título do novo romance de Bruno Vieira Amaral, que esta semana chegou às livrarias. A história é a de Calita, que depois de ter feito vida em Espanha enquanto DJ regressa a Portugal, procura um recomeço e enfrenta dilemas do passado, no mesmo bairro, com as mesmas memórias e renovadas tragédias. É o próprio autor (colaborador do Observador, no jornal e na rádio, na qual integra diariamente o painel das Manhãs 360) que nos apresenta a história — as origens, o processo, as exigências e dificuldades. O livro é publicado pela Quetzal:
“Esta história vem de um encontro fortuito com um amigo de infância que já não via há alguns anos e que tinha vivido uns anos em Espanha. Contou-me um pouco da história dele, houve alguns episódios que me interessaram, e a certa altura ele disse-me que eu devia escrever um livro sobre a vida dele. A ideia ficou, escrevi algumas crónicas e uns textos para me aproximar daquele mundo. Uns tempos depois voltei a encontrá-lo, contou-me mais coisas e foi como se uma personagem dos meus livros tivesse saído da ficção e tivesse ganhado vida. A partir daí, a minha intenção foi devolver aquela pessoa à ficção e, para isso, tive de me afastar da realidade e encontrar um caminho ficcional para contar a história.
Crescemos no mesmo bairro, eu conhecia a família dele, havia esse ponto em comum que facilitou o trabalho de imaginar certas situações que, não sendo inspiradas em acontecimentos reais, eram bastante plausíveis. Ele conhecera o meu primo João Jorge, protagonista do ‘Hoje Estarás Comigo no Paraíso‘ [romance publicado em 2017], e isso me ter levado a pensar que este livro não seria uma sequela, mas uma continuação alternativa do anterior, como se a vida do protagonista deste livro fosse a hipotética vida do João Jorge caso ele não tivesse morrido. Porque há vários pontos em comum nas histórias dos dois.
Não foi fácil afastar-me da realidade, porque as histórias eram muito fortes e apelativas. Construí o romance em torno de um episódio, que seria o clímax, e que acabei por não incluir porque entretanto gerou-se uma dinâmica própria que acabou por ditar o desfecho. O mais difícil foi a transição entre a primeira e a segunda parte. Já tinha escrito cerca de metade do romance, comecei a segunda parte e, de repente, deixei de o ‘ouvir’. Perdi o tom. E regressar não foi nada fácil, ao ponto de ter pensado que não valia a pena insistir. Mas voltei e encontrei talvez não o mesmo tom, mas algo complementar.
Por diversas razões estive a reler partes dos livros que publiquei [‘As Primeiras Coisas’, ‘Guia Para 50 Personagens da Ficção Portuguesa’, ‘Manobras de Guerrilha’, ‘Integrado Marginal’, entre outros] e encontrei repetições, temas, imagens e personagens, como se fizessem todos parte do mesmo livro (claro que aí a biografia ocupa um lugar diferente). E isso deixou-me satisfeito. Não vejo os contos e as crónicas como algo menor. Pelo contrário, acho que formam com os romances um todo, há uma continuidade. Porém, sei que o mercado e os leitores valorizam mais os romances. Nesse sentido, é quase como se ao longo destes sete anos em que não publiquei nenhum romance não tivesse escrito nada. No entanto, depois de terminar este livro, sinto-me motivado para escrever pelo menos mais dois neste registo, romances mais ou menos breves, centrados quase exclusivamente numa personagem.”
Às sete e pouco da manhã quase não há movimento na Avenida da Praia. Vê-se pouca gente e a gente que se vê são fantasmas a arrastar o peso da rotina, velhos a falar sozinhos, malucos das corridas e do bem-estar físico, donos madrugadores de cães impacientes, paralíticos, Punjeets da Uber e das lojas de capas para telemóveis, jeovás, ciganos, antigos com batentes da Guerra Colonial onde perderam pernas, braços e juízo (e ganharam uma reforma de merda e ódio aos turras), homicidas, cancerosos colostomizados, deprimidos sem dinheiro para aviar a receita de Xanax, cardíacos, filhos de uma grandessíssima puta, distribuidores de folhetos que podem ganhar até quinhentos euros por mês, náufragos dos estabelecimentos de diversão noturna que os vomitam de madrugada. É a hora ideal para passear o cão, apesar do frio que se faz sentir seja qual for a estação do ano. No verão, tem dias. Mas de manhãzinha cedo é quase sempre frio. E o frio, de algum modo, e a neblina que cobre a superfície da água, agravam a solidão dos fantasmas matinais que povoam a cabeça de Calita, os seus irmãos de sangue e terra. Têm ar de suicidas, de quem não tem a que se agarrar, de quem está no limite e se prepara para dar o último passo rumo a um abismo maior, mais profundo do que o braço de rio que se estende à sua frente. Para Calita seria simples. Bastava prender o cão a uma árvore, a um poste, ou soltá-lo para que ladrasse e fosse à procura de ajuda quando visse o dono executar o mergulho definitivo na água. Mas quem disse que Calita tem coragem para fazer uma merda dessas? Nunca na vida. Nem atirar-se de uma ponte ou de um viaduto, nem cortar os pulsos ou beber um copo de 605 Forte — ainda há 605 Forte? —, nem dar um tiro na têmpora ou enfiar a cabeça no forno a gás, nem rebentar com a casa, nem nada.
Mas supondo que o fazia, o corpo haveria de aparecer dias depois, a boiar na Praia do Rosarinho, intrigando um transeunte que, a princípio, não saberia distinguir o vulto na água, a massa negra e informe de uma paz mortal, ou então iria mais longe, arrastado pela corrente, até ao pontão de Alcochete, o ombro a embater num barquinho com nome de mulher — Aurora, Maria da Luz, Cláudia Sofia —, ou a maré caprichosa poderia levá-lo para sul, depositá-lo junto a limos, ervas, canas e lodo de onde seria resgatado por fuzileiros que ali treinam e se exercitam e se preparam para guerras adiadas. Quem sabe, ficaria a flutuar para sempre no Mar da Palha, devorado pela paisagem fluvial como as boias de sinalização que vira na primeira viagem de barco que se lembrava de fazer, numa manhã de domingo, a manhã mais terrível da sua vida, um cadáver coberto de algas, restos de flores, recordações dos que se lembrassem dele.
As crianças que então fizessem a primeira travessia do rio, como acontecera com ele há muitos anos, acenar-lhe-iam da janela e atirar-lhe-iam pedacinhos de pão como faziam aos patos do parque da cidade, julgando tratar-se de um animal marinho que só existe na imaginação excitável de crianças na primeira travessia para o outro lado do medo. Conheceria o mesmo destino de Amílcar, o amigo espancado numa madrugada de verão por um bando de brancos e atirado ao rio como uma saca de pedras e que, após dias sem que nada se soubesse dele, apareceu no sítio exato onde o tinham matado, encalhado nos postes do precário cais do Parque Zeca Afonso. Ele, que nessa noite fugiu para escapar à mesma sorte, reencontrar-se-ia com o amigo e pedir-lhe-ia perdão pela cobardia, por tê-lo abandonado à fúria de homens maus. Mas a vida é assim. Rapazes como Amílcar, lentos de raciocínio, vagarosos na fala, tinham azar e o azar é uma força poderosa. E, depois, rapazes maus.
O cão corria agora pela relva, uns cinquenta metros à frente, a focinhar na areia negra em volta dos troncos das árvores e, ao ver um velho sentado no muro de pedra, Calita pensou no que faria se o homem fizesse menção de se atirar à água. Se seria capaz de correr na sua direção e segurá-lo pela aba do blusão, se teria dentro de si as palavras que o pudessem salvar ou um silêncio tão poderoso que o comovesse, se haveria no livro da sua vida uma hora marcada para salvar a vida de alguém. Quando essa hora chegasse, talvez ele estivesse sob o efeito da ganza. Nesses momentos de paz, os únicos a que conseguia aceder no meio do caos e do tumulto que eram os seus dias, ficava mole, distante, sem paciência para conversas, sem energia para convencer alguém do que quer que fosse, sem força até para ir atrás do cão que se afastara tanto, quase a chegar ao Clube Naval, pouco mais do que um ponto na distância, à sua maneira um corpo flutuante a deslocar-se para longe do dono, uma memória de outros dias levada pela maré do tempo para um lugar que a imaginação de Calita, entorpecido pela droga, já não alcançava.
O cão, a única companhia que lhe restava, sairia da sua vida como todos os outros, uns mortos, outros desaparecidos, uns que ele abandonara, outros que o tinham abandonado a ele, gente que se evaporara numa esquina, numa escolha, à saída de uma discoteca, à porta de uma casa onde já não podia entrar, numa recordação que todos os dias se desfazia mais um pouco. A ideia de se tornar um herói, de salvar alguém e ser alvo de homenagens, de receber elogios e cumprimentos de pessoas que o ignoravam, que nunca o viram como um homem, era atraente, embora não fosse o mesmo agarrar a este mundo alguém que queria partir ou alguém que queria ficar. E se se salvasse a si mesmo, se no último segundo recusasse dar o derradeiro passo, ninguém saberia do seu heroísmo porque não é herói aquele que se salva a si mesmo do abismo que o chama.
O cão tinha dado a volta e parecia a Calita que ele agora corria na sua direção. Observou com atenção amorosa o mundo cinzento que era de novo o seu: estilhaços de garrafas de cerveja no campo de basquete, restos de alegria, triciclos destruídos, papéis amarrotados com promessas de salvação, com promessas de promoções que ele distribuíra, e como isso se comparava tristemente ao fulgor das noites, das bolas de luzes e aos intermináveis céus artificiais que rebrilhavam nos tetos das discotecas.
Soube que se visse alguém prestes a lançar-se nas águas turvas do rio, ainda que não estivesse ganzado, nem que o desespero tivesse embotado o seu discernimento, nada faria para o salvar. Desviaria o olhar e seguiria o seu caminho. Talvez lhe desse um empurrão ou lhe gritasse, de longe, «atira-te, nada de mal te poderá acontecer», embora preferisse a indiferença porque a conhecia melhor que ninguém. Não era a indiferença que matava. Era o excesso de preocupação. E com o cão de volta, a farejar-lhe as mãos, feliz e estúpido, Calita sabia que a preocupação não salvava ninguém. Quem tinha de regressar, regressava. Quanto aos outros, nada havia a fazer. A preocupação não salvava ninguém.
«Levanta-te! Rápido!»
A tia Lena puxou-o da cama por um braço, arrastou-o pelo quarto de tacos frios e descolados, empurrou-o para a casa de banho do vidro partido por onde entrava a luz de dezembro e o ar gélido da manhã.
«Ainda vamos perder o autocarro! Lava a cara! Rápido!»
Molhou as mãos no fio de água que escorria pela torneira, esfregou-as no sabão azul e branco com pequenos pelos incrustados, passou-as pela cara vincada pelo lençol, sentindo a cola seca da baba no canto da boca, e viu-se finalmente ao espelho, os olhos inchados, cheios de remelas, a carapinha indomável com pedacinhos de cotão dos cobertores por cima.
«Rápido!», gritou a tia Lena enquanto lhe secava a rosto a uma toalha húmida com cheiro a palha molhada. Deu-lhe um esticão, mas ele voltou para trás só para bochechar, espremer um resto de pasta dentífrica e escovar os dentes com o indicador.
«Não temos tempo. Anda!»
Calita tossiu, engasgou-se, cuspiu à pressa. A tia Lena deu-lhe as calças de ganga. O rapaz ia tirar o pijama, mas ela parou-o.
«Veste por cima, ó! Está frio.»
Vestiu as calças e o pulôver de malha por cima do pijama.
«Olha o kispo!»
E o kispo com um rasgão no peito por cima do pulôver de malha.
«Esse cabelo, Calita! Olha, vai assim. Calça rápido as botas. Metem nojo.»
A entrada suja de areia e lama seca. Bem que a tia Lena já o avisara para não trazer as botas naquele estado para dentro de casa. Não valia a pena. Noutro dia, com tempo, teria levado uma bofetada. Agora era tarde demais para reprimendas. Havia um autocarro para apanhar.
«Anda!»
A tia Lena tinha tido tempo para se arranjar. Lábios pintados, risco nos olhos, mesmo sem ter ido à cabeleireira o cabelo não estava mal. Para Calita, a tia estava bonita. O exagero da maquilhagem não o chocava, nem que a tia parecesse uma boneca gorda pintada por uma criança de cinco anos. E o que lhe interessava a ele que as botas da tia Lena já estivessem velhas e gastas? Naquela casa era tudo assim, velho e gasto. Até ele. Quando a tia abriu a porta, o ar lá de fora empurrou o cheiro da mulher até às narinas do rapaz: cheirava a leite de coco e ao desodorizante que ela guardava no quarto e que ele às vezes punha nas botas e nos ténis.
«Porcaria do elevador. Vamos de escadas.»
Ele começou a descer as escadas desde o quinto andar de três em três degraus enquanto a tia Lena se agarrava ao corrimão tentando equilibrar-se nas botas de cano alto e segurando na outra mão um enorme saco de plástico com roupa.
«Espera, ó! Vem aqui ajudar a tua tia.»
Calita subiu as escadas ao encontro da tia, pegou no saco pesado pra caraças e correu.
«Vê se ainda está aí o autocarro.»
Era muito cedo. Não se ouvia ninguém. Só o piar de pássaros nas árvores à volta do campo de futebol e nas gaiolas de plástico e arame penduradas nas varandas de algumas casas. Ao sentir os passos rápidos de Calita, um cão espetou o focinho pelas grades do quarto e ladrou-lhe. Era o Trovão, o filho da puta de um cão minúsculo mau como o diabo dos infernos que aterrorizava os miúdos, a mascote do Silva, um retornado que o ensinara a odiar pretos tanto quanto ele os odiava.
«Vai-te foder!»
Calita fingiu pegar numa pedra e fez o gesto de a atirar. O cão ficou possuído. Por um instante, parecia que ia passar pelas grades ou rebentá-las à dentada. A tia Lena vinha atrás, meio desengonçada.
«Não te disse para correres?»
O autocarro ainda não saíra. Lá dentro, de portas fechadas, o motorista fumava um cigarro. Na paragem, a tiritarem de frio, D. Palmira e a filha. Eneida, menina de doze anos, um pouco mais velha do que Calita, tão bela com os seus longos cabelos frisados que lhe dava um aperto no peito, um frio no estômago, que ele ficava para morrer de vergonha quando a encontrava assim, sem aviso. Da bolsa de D. Palmira via-se a lombada de uma Bíblia. Olharam para ele, o kispo rasgado, as botas enlameadas, a carapinha com pontinhos de cotão, o saco sujo carregado de roupas, sem o cumprimentar. O sorriso leve e trocista da menina perfurou-lhe o coração e deu-lhe vontade de chorar e desaparecer dali, esfumar-se, desfazer-se. A tia Lena chegou esbaforida, pegando com brusquidão o saco que ele pousara no chão. E ele odiou-a com todo o amor que lhe tinha. E odiou a D. Palmira, a sua Bíblia, o seu Deus e os seus cânticos monocórdicos. E odiou a menina pela beleza que o humilhava.
«Vamos embora!»
O autocarro em que regressou ao bairro era bem diferente do que apanhara com a tia Lena naquela manhã de domingo de há muitos anos. E os motoristas já não fumavam no interior enquanto deixavam os passageiros enregelados lá fora. Quem o conduzia era uma mulher de cabelo vermelho. Ao descer os degraus, Calita voltou a lembrar-se da filha da D. Palmira, Eneida. Durante anos, nos seus melhores momentos, desejou encontrá-la e mostrar-lhe que já não era aquele menino frágil de kispo rasgado, botas sujas, o rapaz que ela atormentava de propósito com a sua beleza, que o humilhara no quarto. Se a tivesse visto então, quando era uma estrela, rei de noites fulgurantes nas margens do Mediterrâneo, tê-la-ia agarrado com força pelos braços, obrigá-la-ia a senti-lo: vê, vê quem sou eu agora. Dançarino nas discotecas da moda em Benidorm, deitado na espreguiçadeira numa vivenda em Las Rosas, nas afueras de Madrid, o seu corpo forte a mover-se frenético ao som da música a explodir nas colunas, ele, admirado por dezenas de corpos suados e felizes de dezenas de mulheres e homens, ele, desejado como nunca, ele, enfim, um homem completo. Mas não era esse Calita que regressava trazendo apenas a mala que um dia pertencera a Emílio Pretérito Perfeito, o professor. Este Calita não tinha vontade nenhuma de rever Eneida. Talvez gostasse de a rever, o que não queria é que ela o visse assim, confirmando tudo o que de pior ela poderia ter imaginado para a vida dele quando eram adolescentes.
Um dia, aproveitando a distração dos adultos na sala, Eneida encurralou-o no quarto, encostou-o à parede. Ah, o cheiro dela. Cheirava tão bem. Aloé vera, desfrisante. Ela tinha o cheiro do paraíso enquanto o corpo dele emanava um odor acre a suor. Estava tão perto, respirava em cima dele. O pau quase lhe rompia as calças do fato de treino. Começou a chorar.
«Não chores, seu burro. Mostra.»
E ele mostrou.
***
«Ele paga bilhete?»
O pica olhou para o miúdo de relance.
«Paga. A partir dos seis pagam todos.»
Contrariada, a tia Lena tirou a carteira da bolsa, remexeu os trocos, pagou os dois bilhetes do barco que sairia dali a nada para Lisboa. Ainda tinham muito que andar até chegar ao bairro da Quinta da Fonte Santa, que era o destino naquela manhã de domingo que Calita haveria de recordar para sempre. Cada pormenor: do céu límpido ao ar cortante de dezembro, do medo de cair na água e morrer afogado ao cuidado da tia Lena com a aparência, usando um espelho minúsculo para retocar o batom, das bocas famintas dos peixes à volta do barco ao homem de muletas que lhe sorriu a mostrar um dente de ouro na outra viagem de autocarro, já do outro lado do rio.
Esse homem negro, de dentes enormes e pontiagudos, chapéu panamá, calças de fazenda com joelheiras, reapareceu-lhe vezes sem conta nos sonhos ao longo de toda a vida. Calita até lhe deu um nome: Aparício. Cota Aparício. Num desses sonhos, não sabe se estava no reformatório na Guarda ou no aparthotel de Benidorm, a dormir na central de camionagem de Barcelona ou na Carrer Poeta Miguel Hernández, em Cullera, o cota Aparício, arrimado às muletas, arrancava o dente de ouro da boca, limpava-o a um lenço tirado do bolso das calças, e incrustava-o nas suas gengivas, fazendo-as sangrar. Acordou com a imagem do dente de ouro coberto de sangue.
Era a primeira vez que saía do bairro e tudo lhe parecia gigantesco, desmesurado. O mundo, enorme como as goelas de um monstro, podia devorá-lo. Queria agarrar com força o braço da tia Lena para não se perder dela porque só ela sabia para onde se dirigiam naquela manhã de domingo. Porque é que não lhe disse aonde é que iam? Porque é que ele não lhe perguntou a razão daquela viagem inesperada? Se soubesse, imaginaria anos depois, teria fugido. Para onde? Para as mesmas ruas da Baixa que haveria de calcorrear com os miúdos criados ao deus-dará, fugidos de casa, que, durante uns meses, foram a sua família e o seu refúgio, os miúdos que lhe ensinaram a cheirar cola e os gases dos tubos de escape, com quem se agarrava ao elétrico do Terreiro do Paço à Praça da Figueira, com quem roubava fruta nas mercearias e ao lado de quem dormia coberto de jornais e papelão sob as arcadas do Ministério das Finanças. Porém, sabia que se a tia Lena lhe tivesse dito a verdade ele não teria fugido. Era pequeno demais para fugir. Teria feito a mesma viagem, visto o mesmo Aparício que haveria de o visitar em sonhos recorrentes com o mesmo dente de ouro a reluzir-lhe na boca, atravessado toda a cidade até chegar àquele lugar de infâmia e pavor, àquelas barracas rodeadas de poças de água e lama, onde perdeu a inocência e cometeu o primeiro de muitos crimes para os quais não havia perdão.
A porta do prédio estava fechada. Calita tocou à campainha do 5.º frente, sabendo que não havia ninguém para lhe abrir a porta. Noutros tempos, seria diferente. Havia sempre alguém em casa. A tia Lena ou o filho, Américo, conhecido no bairro como Meco Mulato, uma das visitas, Rosa Quivunge, o professor Pretérito Perfeito, quem sabe D. Pacas. Não se importava que fosse esse filho da puta, ou o fantasma desse filho da puta, pois não sabia o que lhe acontecera, se era vivo ou morto, a abrir-lhe a porta. Desde que alguém o deixasse entrar. Sem esperança noutro resultado, ainda tocou de novo, a olhar para as grades do quarto de onde o Trovão lhes costumava ladrar. Tantos anos depois, o cão de certeza já tinha morrido. Por muito mau que fosse, não havia animal que durasse tanto. E a esta hora o dono também há muito devia ter encontrado repouso eterno na quinta das tabuletas ou nos quintos dos infernos.
Esse cabrão do Silva que um dia o puxou por uma orelha por alguém ter atirado a bola contra a janela e partido o vidro. Saiu de casa a espumar, furioso, com a chibata de couro que trouxera de Angola e que se orgulhava de ser o instrumento com que educara muito preto da senzala. Não tinha sido Calita a chutar a bola e a partir o vidro, mas os outros miúdos fugiram e ele, petrificado, sem saber se era terror ou coragem, ficou, com o gordo do Chuinga ao lado. Só que o Chuinga era branco e os olhos raiados de sangue do Silva só viam aquele mulato de merda. Agarrou-o pela orelha e deu-lhe duas chibatadas na perna.
«Vocês não aprendem! Por mais que apanhem, não aprendem.»
A mão áspera do homem a apertar-lhe a orelha, o bafo horrível a coisas podres, os olhos inflamados, o suor por cima do lábio, os pelos brancos do braço ainda forte do velho, a dor lancinante das vergastadas na carne, o latido do cão e a espuma de ódio que saía das bocas dos dois, homem e cão, um ódio maior do que o insignificante incidente que o despoletara, todas essas imagens vívidas do passado regressaram nesse momento em que Calita tocou pela terceira vez à campainha do 5.º frente e ninguém respondeu.
***
Avançaram pelo labirinto de barracas tortas, chapa, madeira apodrecida, tijolos nus, cabos elétricos que as sobrevoavam, alguidares amontoados à porta, uma ou outra cadeira de plástico, das que se viam em esplanadas, botijas de gás tombadas, bidões cheios de água, pneus calcinados, rodas de bicicleta enferrujadas, varais com panos de limpeza ressequidos, cães, muitos cães sujos, esquálidos, sem forças sequer para ladrar. Algumas crianças andavam por ali e olhavam, curiosas, os dois forasteiros, um menino do tamanho delas com um saco de roupas ao ombro e atrás dele uma senhora a caminhar com dificuldade, a equilibrar-se nas botas de cano alto. Dois estranhos. Não era preciso muito para que aqueles miúdos se distraíssem. Seguiram-nos porque pressentiram que não sabiam para onde iam.
«A casa da tia Alda é ali.»
Apontou um deles quando viu a hesitação de Calita e da tia Lena, duas estátuas ambulantes de tristeza no meio do lixo. O que foram aqueles minutos até chegarem ao destino e Calita descobrir a verdade? Em retrospetiva, sente que a sua vida se definiu naquela manhã, que tudo o que lhe aconteceu depois estava para sempre ligado àquela viagem, à caminhada pelo labirinto, às crianças que lhe apontaram a casa que a tia Lena procurava, aos seus rostos de uma alegria esgotada, ao fumo a elevar-se dos fogareiros, à música das telefonias a misturar-se com o ar frio que o cortava como uma promessa de um mundo melhor, mais aconchegante, aos cães dormentes que nem se mexiam à sua passagem, a guarda de honra de um desfile de desamparo, às duas meninas que guardavam a entrada da barraca, dois anjos mudos em cujas veias corria o mesmo sangue de Calita. Se ao menos tivesse existido o tigre que ele, anos mais tarde, imaginava, se esse tigre da sua imaginação fosse real, talvez eles não tivessem ido tão longe, talvez a tia Lena tivesse recuado e desistido dos seus intentos, talvez Calita tivesse sido poupado à verdade.
Um tigre. No meio das barracas, uma jaula enorme com um enorme tigre lá dentro. Os olhos do tigre faiscavam e ateavam um fogo que haveria de arder para sempre nos sonhos de Calita. Esse tigre, esse tremendo animal de perigo e poder, perfeito e completo como a manifestação inteira do medo, não o pôde salvar. Ninguém o podia salvar.
No cimo de algumas barracas, bandeiras de Angola e Cabo Verde drapeavam ao vento, como que para sinalizar um território e um orgulho estranhos, carros velhos com caixotes de fruta no lugar dos pneus que serviam para arrumar o que não cabia nas casas, torres de grades de cervejas umas em cima das outras, tanques de pedra debaixo dos quais se acumulavam poças de água fétida com dois grandes bidões de plástico de onde vinha a água para todos os usos, baldes de tinta vazios pendurados em pregos espetados na madeira à entrada, gaiolas feitas de tábuas húmidas e arame, numa cristaleira, o único móvel naquela divisão exígua e escura, um prato com o símbolo do Benfica, molduras com fotografias das crianças que vira lá fora, e um retrato seu, tirado uns meses antes junto às piscinas do bairro com a máquina do professor Pretérito Perfeito, ele que também acalentava ambições artísticas na área da fotografia, alguidares empilhados numa mesa de fórmica vergada sob o peso, embalagens de detergente, uma botija de gás, garrafões de lixívia, tachos suspensos de uma viga, de onde pendiam igualmente ramos de louro, uma mangueira enrolada no chão, a um canto, uma vassoura, uma esfregona e vários utensílios vagamente agrícolas, uma mesa de campismo rodeada de cadeiras desirmanadas, resgatadas sabe-se lá de onde, sacos de plástico a abarrotar de tupperwares e, espreitando para a outra divisão no interior, via-se um beliche ferrugento, com colchões sujos mal tapados por cobertores imundos e almofadas com fronhas de desenhos animados, também elas sujas e gastas, mas que eram ainda assim o único apontamento de cor e alegria infantil no meio da sordidez geral.
Alda. Foi da boca daquele miúdo que os guiou, a ele e à tia Lena, pelas barracas do bairro da Fonte Santa, que ouviu o nome pela primeira vez. Não lhe dizia nada. Era um nome como outro qualquer, duas sílabas puras, das vizinhas do prédio, das senhoras do bairro, das visitas que a tia Lena recebia regularmente e que, em muitos casos, nunca mais voltavam. Nomes que desapareciam arrastados pelo tempo, esquecidos num recanto da memória — Beatriz, Lucinda, Zulmira, Santa, Eunice — e que eram o cheiro de um perfume, uma água-de-colónia, um lenço, uma palavra, um gesto que Calita fixara e que, mais tarde, recordaria sem ser capaz de os associar ao nome. Confundiam-se na sua memória, uma amálgama de mulheres que tinham passado por aquela casa, pela sua vida, deixando um rasto vago de saudades e tristeza. Saudades nem ele sabia bem do quê. Mas o nome de Alda, esse, ele nunca mais poderia esquecer. Era o nome daquela mulher parcialmente oculta por detrás das tiras de plástico à entrada da barraca, uma negra, pequenina, magra, de lenço colorido na cabeça, ladeada por duas meninas de tranças tão perfeitas. Foi ela que os veio receber.
«Dá um beijo a essa senhora, Carlitos. É a tua mãe.»