“Quando o dia for a meio”. Combinado. O local, em Peniche, ficava no Cabo Carvoeiro, na ponta da cidade rodeada por mar. O horário cumpre-se. Lá estamos quando os ponteiros coincidem a meio do relógio, nas 12 horas. Entra-se no edifício e, entre as escadas, os corredores e as portas com que o Instituto Politécnico de Leiria desenha um labirinto próprio, há que encontrar o auditório. Essa é a missão. O resto seria mais fácil — António José Correia já dera uma pista. “Quando entrares dá-me um sinal. Sou o único de bigode”, lemos, minutos antes, quando o telemóvel vibra e nos alerta para um sms. Vinha do presidente da Câmara Municipal de Peniche.
Já estava à espera. Mal o jornalista abre a porta o suficiente para, com um olho, conseguir espreitar para a sala, o autarca repara logo. Mostra um sorriso tímido e acena com a cabeça, dando sinal de mensagem recebida. Nem cinco minutos depois, António está cá fora. Sorridente, conversador e, sobretudo, aliviado. “Nem costumo estar assim vestido, isto é tudo por causa do secretário de Estado”, garante, tão a sério como a brincar, enquanto ordena aos braços que dispam o casaco que lhe tapa os ombros e a camisa branca. Fá-lo ali mesmo, à porta do auditório de onde, segundos antes, se esquivara de uma conferência com Nuno Vieira e Brito, responsável do Governo pela Alimentação e da Investigação Agroalimentar. Sem problema.
António, perdão, ‘Tozé’, como nos corrige assim que estende a mão para o cumprimento de boas-vindas, está bem-disposto. Percebe-se rápido. Mas também está apressado. Quer mostrar tudo e mais alguma coisa. Logo ali, no politécnico, leva-nos a uma sala onde estão expostos vários produtos da região: pão com algas ou hambúrguer de cavala são dois exemplos. Ambos, em parte, vinham do mar. Parece de propósito. E seria mesmo. Afinal, a culpa de estarmos ali é das ondas e do que, em Peniche, se pode fazer em cima delas — surf. E do bom: pelo sexto ano seguido, a praia de Supertubos ia acolher uma etapa do circuito mundial da modalidade, dali por três dias.“É como as paixões: elas surgem e depois há que mantê-las”, sublinha Tozé, ainda mais sorridente, ao rebobinar a memória em busca de histórias do evento que, desde 2009, tem conseguido agarrar à cidade.
São muitas. O próprio autarca o diz. Nenhum, porém, lhe faz encravar o discurso. Tozé sentou-se no trono da Câmara Municipal de Peniche no final de 2005. A caça à etapa do WCT (World Championship Tour) da ASP (Association of Surfing Professionals) arrancou três anos depois. “Lembro-me de ir com o José Farinha [diretor da Rip Curl Portugal] atrás de Frederico Costa [ex-presidente do Instituto de Turismo de Portugal] e do Bernardo Trindade [antigo secretário de Estado do Turismo]. Pimba, pimba, a dizer-lhes que isto era importante”, recorda, definindo-se como “um chato que não desistiu” e sempre viu “que o potencial estava ali”.
Tozé vê a etapa do circuito mundial de surf como “uma paixão” que teve de ir mantendo. E conseguiu: de 12 a 23 de outubro realiza-se a sexta edição do evento em Peniche, na Praia de Supertubos.
A insistência foi muita, mas a coisa só daria um pulo em Olhão, sentado à mesa e com amêijoas ou uma sapateira à frente. “A minha família gosta de águas quentinhas e vamos sempre de férias para o Algarve. Calhou na altura do Festival do Marisco. E quem encontrámos lá? Aquele dos chifres, o Manuel Pinho”, diz, ao puxar pelo nome do ex-ministro da Economia que, em 2009, no Parlamento, juntou os dedos indicadores na testa enquanto se virava para a bancada do Partido Comunista Português (PCP). “Quando o encontrei, vendi-lhe a ideia até ele me dar uma palmada nas costas e dizer que queria. O trabalho a sério começou nessa altura, no verão de 2008”, assegurou o presidente, já dentro do carro, estacionado no parque de estacionamento do politécnico, enquanto prendia o cinto de segurança à fivela e dava a volta à chave, para acordar o motor.
Sim, com Tozé e em Peniche, não há motorista à mercê do presidente da câmara. “Não tenho que avisar nem dar satisfações a ninguém, posso estar à vontade”, explica, já com a marcha em andamento, justificando a decisão com o que via acontecer com os antecessores no cargo, sobre quem “se ficavam a saber coisas”, mas “desconhecia-se de onde elas vinham”. Não há dia, portanto, em que não conduza. E neste, o destino da viagem era “o local do crime”, como lhe chamou. Ou seja, a praia de Supertubos.
Do Cabo Carvoeiro à praia, a boleia de Tozé dura quase dez minutos. Há tempo para conversar. No caminho, o presidente tem quase sempre uma mão colada ao volante enquanto a outra, deambulante, vai ficando pendurada no ar, a apontar para um e outro local que vão surgindo. Primeiro é a Papoa, onde “às vezes quebram ondas gigantes” contra rochedos encavalitados contra o mar. Depois vem a fábrica de conserva de sardinhas, “que as embala logo no dia seguinte a serem pescadas”, vizinha da loja que fabricou “o fatinho de verão” do autarca. “É aquilo que chamo o alfaiate das ondas”, acrescenta, antes de explicar que surf “não é bem” aquilo que faz no mar. “É mais deslizar nas ondas. Agora já não vou tantas vezes. É mais esporádico. Faço mais durante o inverno, aos domingos de manhã. Até já apanhei temperaturas de 1.ºC”, conta.
Nem um quilómetro se percorre e, no horizonte, avistam-se andaimes e fundações, em cimento, de uma construção em andamento — é uma futura unidade hoteleira, avaliada em “cerca de dez milhões de euros”. E mais: existe o projeto para construir um empreendimento com uma piscina de ondas artificiais. “Vem cá o presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Vale do Tejo durante o campeonato. Depois tenho uma reunião com ele no final do mês para vermos a questão dos locais”, explicou Tozé, sem mais revelar. Há até um plano para construir um aeródromo na região. Planos e mais planos, a nascerem, e a crescerem, desde 2009. O surf é outro exemplo. E a entrada para o recinto do campeonato prova-o.
A estrutura surge logo ao início da estrada de terra batida que se estende em paralelo à Praia de Supertubos. É preciso autorização para entrar. Tozé tem-na, claro. É o presidente da câmara. Mas pára o carro antes de chegar ao portão. “Não sei onde pus o dístico, é preciso mostrá-lo para entrar. Não quero desrespeitar ninguém”, explica-nos. Arranca a caçada. Tozé abre a porta, sai do carro, espreita debaixo dos bancos e vasculha pastas e documentos que estão espalhados no banco de trás. Nada. Pelo meio, a procura é uma e outra vez interrompida, porque há sempre alguém para roubar a mão a Tozé — toda a gente que por ali passa o cumprimenta. Depois lá encontra o dístico, que “estava escondido na mala do computador”, cola-o no vidro e seguimos marcha.
Estaciona-se o carro e a conversa fica difícil. Se não é um aperto de mão, é um ‘olá’ ou um ‘hello’ que entrega com a voz. Nenhuma pessoa escapa. E eram dezenas as que, a três dias do arranque da prova, andavam a ziguezaguear pelo recinto que ia acolher os surfistas, as bancas, as lojas, as tendas, os veículos e tudo o mais. Às tantas, Tozé farta-se. Estava há demasiado tempo de fato, camisa e sapatos. Ao ver a banca reservada ao Turismo do Oeste, que merecia a atenção de quase uma dezena de trabalhadores, pede a alguém uma das tshirts que “mandou fazer” para o evento. “Bem, agora vou fazer um strip”, brinca. E faz mesmo. Ali, sem pudor, à frente de todos: coloca-se em tronco nu, veste a tshirt, descalça os sapatos, tira as meias e pronto.
Fica satisfeito. Está como e onde quer. “Todos os anos sou o primeiro a chegar e quase o último a sair. Durante mais de duas semanas o meu escritório é Supertubos”, garante, à medida que nos encaminhamos para a praia — com paragens pelo caminho. “Um gajo tem que andar sempre a olhar por tudo”, alerta, ao interromper a marcha, quando, já perto da estrutura reservada ao júri que fixará os olhos no mar e nas ondas, se nota uma diferença entre as tábuas que estão deitadas sobre a areia. “Puseram-me isto, com os pregos à vista”, critica, enquanto bufa uma, duas vezes. Andamos mais uns metros e Tozé pára de novo. Bufa pela terceira vez. Baixa-se, coloca-se de cóqueras, aproxima os olhos de um poste, ali erguido para segurar uma bandeira, e passa a mão pela sua base. A tinta está lascada. “Estou tramado com quem fez isto”, dizemos nós, numa tradução simpática da reação que o presidente dispara ao detetar o problema. “Agora chega aqui um gajo da oposição e diz que a câmara se está nas tintas para as pinturas”, lamenta, quando, com ou sem intenção, dá uma analogia ao queixume.
Depois retoma o passeio — “Vamos para o local do crime.”
É lá, na areia, a meio caminho entre as dunas e o mar, que Tozé tem de estar quieto durante uns minutos. É contra a sua natureza, mas a entrevista, filmada, assim o exige. “Queres que faça a minha voz de rádio? Vê lá”, brinca, às tantas, para quem está atrás da câmara, de lente e microfone focados no que o autarca ia fazer e dizer. Por norma, com o campeonato a rolar, Tozé nunca está parado. Anda no meio dos surfistas, de um lado para o outro, a conversar com todos, sem que o inglês, que domina a custo, seja uma barreira na conversa. “Gosto de acompanhar, de intervir, de colaborar, de apoiar ou de os convidar para determinados momentos. Cumprimento todos e ofereço coisas da região a eles e às namoradas ou mulheres. Nunca nenhum deles recusou o que fosse”, assegura o homem que, talvez por isso, foi eleito pelos surfistas como o Coolest Mayor on Tour — o mais simpático autarca do circuito — logo na primeira edição do evento, em 2009.
É muito rara a pessoa que cruza caminho ou olhar com Tozé e não esteja na mira de um cumprimento vindo do presidente da câmara Municipal de Peniche. “Um gajo tem que olhar por tudo. Todos os anos sou o primeiro a chegar e o último a sair [do recinto]”, justifica o autarca.
Tozé gosta de privar com os melhores do mundo a colocarem-se em pé, sobre uma prancha, à boleia de uma onda. E com isso ganhou várias histórias para contar. Uma delas vem de um desafio provocado por Jadson André. O surfista brasileiro, então já eliminado da competição, estava a assistir à prova, no recinto, e lembrou-se de pedir uma coisa. “Disse assim: o presidente é o melhor do mundo se me arranjar uma coca-cola em dez minutos”, lembra, enquanto se ri. “Ai é? Então olha para o relógio e vais ver. E pronto, ao sétimo minuto já tinha a bebida na mão”, conta, sem revelar como o conseguiu, sublinhando que “lá está para resolver” aquilo que “eles às vezes julgam ser impossível”. Depois há momentos engraçados. Noutro ano, o autarca decidiu nomear Damien Hoobgood como “embaixador internacional da cavala em Peniche”. Porquê? Pouco antes o norte-americano fora filmado “a fazer um tubo numa onda na qual se viam peixes”. Tudo aconteceu na mesma manhã em que Tozé oferecera latas de conserva aos operadores de câmara e “um deles aproveitou” para “fazer um grande plano” numa delas, após a realização “mostrar um replay” da onda. “Mesmo a calhar”, congratulou o presidente.
Não seria a única coisa a calhar bem. Quando a conversa, na areia, já ia com meia hora de embalo, aparece mais outra pessoa em busca de um cumprimento. É um fotógrafo. Não chegamos a saber-lhe o nome. Preciosa acabou por ser a novidade que trouxe consigo — dentro de água, ali mesmo em Supertubos, estava Mick Fanning, o australiano, de 33 anos, melhor surfista do mundo em 2007, 2009 e 2013. Não é difícil, ao longe, localizá-lo: quando está deitado sobre a prancha é o único homem de cabeça loira que está na água. E de pé, em cima dela, é mais e melhores coisas faz. As mesmas que o fizeram conquistar a primeira edição do campeonato em Supertubos, há cinco anos. Tozé não se esquece desse dia. “Hoje és tu o mayor de Peniche”, gritou o autarca ao australiano, enquanto o surfista era carregado em ombros, mal saíra da água, após vencer a final desse ano. A imagem ficou. A amizade, diz Tozé, também.
É o que se nota quando Fanning diz basta. O sol já estava com a luz de hora de almoço quando o australiano abandona o mar. Depois de espetar a prancha na areia e despir o fato até à cintura, começa a encaminhar-se na nossa direção. Tozé não consegue esperar. Também ele dá corda aos passos e encontra o surfista a meio caminho. Depois começam ambos a andar, lado a lado, e a trocarem sorrisos. “É boa pessoa. Nota-se que é bastante apaixonado pelo surf e adora a cidade”, resume o australiano, “cansado”, já depois de pedir que a conversa “seja rápida”, quando a pergunta sonda a opinião que tem sobre Tozé.
Mick sente-se “especial” por ter o nome inscrito como primeiro vencedor em Peniche, embora “nunca mais tenha feito grande coisa” em Supertubos. Uma onda, diz, “muito complicada” e que desconhecia quando soube da sua inclusão no circuito — dia em que teve de “recorrer” a Tiago Pires, único português no WCT e atual 25.º classificado — e já eliminado na 3.ª ronda da etapa deste ano — entre os 36 homens que participam no campeonato mundial. Quando “está a funcionar”, garante o australiano, Supertubos “é das melhores ondas do planeta” e não vê razões para que “não continue a fazer parte” do roteiro que, ano sim, ano sim, coloca estes surfistas a viajarem pelo mundo. Uma coisa terá sempre que funcionar: o dinheiro. E não é pouco.
Nas cinco primeiras edições do evento em Peniche, o investimento “andou à volta dos 1,5 milhões de euros”, revela o presidente da autarquia. Desse lote, por exemplo, a câmara, “gasta sempre entre 75 e 90 mil” com “a afetação de meios, de máquinas e de trabalhadores” que, para dedicarem atenção ao surf, Tozé não os tem “a trabalhar em estradas”. “Então se quantificarmos as minhas horas de trabalho, aí já perdi a conta”, acrescenta. Depois cada empresa “traz o seu próprio pessoal” para montar as estruturas no recinto da prova, explica, ao para lamentar que “não há muitos postos de trabalho” a serem gerados para quem por ali vive e procura emprego. O importante, sublinha Tozé, é “o impacto” da etapa na “animação da atividade económica na hotelaria, restauração e surfcamps“.
“Se tivéssemos brindes para dar estávamos sempre cheios”
As palavras pedem um teste. O primeiro está perto e nem 200 metros é preciso caminhar. O bar de José Santana está logo ali, na fronteira do recinto, com vista para tudo, preso entre Supertubos e o Molhe Leste, nome da praia mais encostada a Peniche naquela língua de areia. O estabelecimento está ali há muito. Mas José só conta dois anos atrás e à frente do balcão, a ver o que se passa. “E não é tão sorridente como dizem”, lamenta, quando é altura de falar do proveito que lhe toca por estar à beira dos melhores surfistas do mundo.
E dos milhares de pessoas que pisam a areia para os verem. “Há realmente bastante movimento, mas há pouco consumo. Apesar de haver muitos estrangeiros, a maior dose é portuguesa. E é notório que os portugueses trazem a lancheira, com a garrafinha e a sandes”, revela. “Se tivéssemos brindes para dar, tínhamos isto sempre cheio”, brinca, com uma frase que diz ter um recheio de verdade, ao garantir ser “moda” as pessoas “espreitarem” o recinto da prova, “tirarem uma fotografia ou outra e verem se há alguma coisa a ser dada”. Ali, no Banana Beach Bar, o negócio não engorda muito com o surf. Mas também “estava muito mais parado” se não houvesse a prova, lá admite José. E não será por falta de sedução que o bar não cativa quem aterra na praia para ver o campeonato.
O estabelecimento, por dentro, está pintado com cores vibrantes. As paredes aguentam várias pranchas de surf, penduradas e à vista de todos. A televisão, que cobre um canto do espaço, arranjou poiso num canal de desporto que, na altura, resumia o que se passara no dia anterior no Moche Pro, evento de surf, realizado em Cascais, que antecedera a etapa do circuito mundial, em Peniche. Do lado de fora, na esplanada, está um pequeno toldo a tapar pouco mais de uma dezena de pranchas, encavalitadas umas nas outras. Uma escola de surf? “Não, não, são só para alugar”, corrige. “Têm alguma saída. Mas é complicado”, lamenta José. Nos dias do campeonato — que este ano ficaram entre 12 e 23 de outubro –, revela, “há um cafezinho de vez em quando ou um gelado porque o puto chateia”. O homem, de 53 anos e residente em Peniche há cinco, diz que “a realidade é mesmo assim”. Ou um pouco diferente, como chegou a descrever Tozé: “Há uns que aproveitam e outros que vêem a onda passar. Que ninguém espere que levemos a ondinha e os surfistas para dentro dos restaurantes e que deixemos lá o dinheiro.”
José tem “pena” que Supertubos “só mereça atenção da câmara nesta altura”. A praia, queixa-se, “não tem iluminação pública, as estradas não estão alcatroadas e não há ecopontos”. Está desde fevereiro “a mandar emails” à autarquia porque lhe “custa” ver a zona como está. Nunca teve uma resposta. Critica a falta de vigilância nos parques de estacionamento e conta a história de “quatro rapazes espanhóis” a quem, dias antes, “partiram os vidros da carrinha e roubaram as coisas” que estavam lá dentro. Sobre Tozé, o homem que manda no concelho, reconhece que “fez um bom trabalho em segurar” o campeonato em Peniche. Mas diz que podia fazer mais pela praia quando o evento não anda por ali. “Infelizmente isto não é uma máquina de fazer dinheiro e talvez sejam os espaços ligados ao surf que lucram mais com isto”, suspeita José. Parece ter razão.
A uns cinco quilómetros de Supertubos está o Baleal. Uma terra pequena, a rodear uma baía virada para o mar, onde sempre entraram e quebraram ondas. O caminho faz-se rápido e o surf é sempre companhia: vêem-se lojas viradas para a modalidade, cartazes a anunciarem alojamento para surfistas e escolas que se propõem a ensinar. Muitas. A primeira e mais antiga surgiu em 1993. “Abri isto para dar aulas a uns putos na ilha do Baleal. Não fazia a mínima ideia de nada”, recorda Bruno, proprietário do bar que tem o seu nome, ao recordar os tempos em que o negócio se resumia “a uma roulotte” ou a um “bungalow de madeira”. Hoje tem tudo: um espaço grande, restaurado, em cima da praia, onde quem entra vê primeiro o balcão de receção da escola de surf antes de conseguir chegar à parte do restaurante.
Seja para comer ou aprender a surfar, “começou-se a notar uma procura acentuada desde 2009”, garante. Para Bruno “é evidente” que “toda a promoção gratuita que surgiu a partir daí contribuiu de forma decisiva para colocar Peniche no mapa do turismo do surf”. Agora, explica, existem “30 ou 40 operadores [escolas de surf e surfcamps, estes a incluírem alojamento] diferentes” no concelho. Bruno admite que a clientela se perfaz “sobretudo com estrangeiros”, antes de virar a cara, olhar para o mar, ver alguém a deslizar sobre uma onda e dizer: “Este gajo é bom.” Agora, prossegue, “a época alta esticou mais um mês” e “vai até ao final de outubro”. É “como se o verão ficasse maior”, conclui.
Poderá a bola de neve de oferta transformar-se numa avalanche de escolas de surf? É “um pau de dois bicos”, responde. “Por um lado”, explica, “são as pessoas que geram receita, mas por outro, se o destino ficar com ‘excesso de carga’, acaba por se degradar e perder atividade”, alerta, embora esperançado de que “as coisas nunca serão feitas à bruta”. Como não o fez John Malmqvist, que encontramos ali perto, também no Baleal, nem cinco minutos depois de uma viagem de carro.
John é sueco, vive em Portugal há dois anos e, há dez, foi campeão nacional de surf no seu país. Hoje, com 35 contados de vida, é proprietário do hotel que inaugurou em setembro de 2013. E não teme que surjam mais. “Dou as boas-vindas a isso. Da maneira como vejo as coisas, temos de trabalhar em conjunto para promover Peniche”, explica, sentado à mesa no terraço do hotel, com vista para o mar e enquanto dois hóspedes estão em banho-maria no jacuzzi que lá tem montado. O Surfers Lodge, nome do espaço, porém, é diferente. Não é um hostel barato, para desenrascar, onde os preços sorriem sempre ao cliente. Dormir aqui custa entre os 49 e os 199 euros por noite. “Cheguei a trabalhar num surfcamp, na Ericeira, e vi que são montados para um público mais jovem. Mas há pessoas mais velhas que também querem aprender a fazer surf, ao mesmo tempo que comem e dormem bem”, explica.
Portanto, com a ajuda da carteira dos pais e de dinheiro vindo do QREN (Quadro de Referência Estratégica Nacional), John abriu um espaço recheado com madeira e materiais sustentáveis, como as mesas do hall de entrada feitas a partir de “velhos barcos de pesca” que trouxe da Indonésia. Qual é o plano? “Construir mais resorts destes no futuro, em Sagres, na Ericeira ou talvez nos Açores, e depois vender tudo à Quiksilver”, diz, deixando explodir uma gargalhada logo depois, tão descontraída como o gorro que lhe tapa a cabeça, as tatuagens que lhe pintam os braços e o peito, ou a barba que ainda não fez as pazes com a tosquia. Além do aumento do número de pessoas e do impacto no negócio durante setembro e outubro, John realça o “efeito a longo-prazo” da presença do WCT em Supertubos: “As pessoas vêem a prova online, reparam nas ondas e depois vêm cá no ano seguinte ou no próximo.”
Tozé “está lá”, mas “preocupa-se sempre com o mesmo”
E elas têm vindo e aparecido. Quase em massa. E mesmo quem “não [liga] nenhuma” ao surf repara nisso. João Chaves serve de prova. Viveu todos os seus 76 anos em Peniche. Está sentado num banco encostado à muralha da entrada antiga da cidade com mais sete amigos, todos septuagenários. Às tantas chama “chato” ao jornalista que insiste com as perguntas sobre surf e o que ele tem feito a Peniche. “Faz um movimento aí de estrangeiros e portugueses, só malta jovem, uma grande confusão”, responde não ele, mas Joaquim Viola, um amigo, que se mete na conversa quando ela já ia morna. Queixa-se da “catrefada de gente que enche as praias” em outubro, além “das que o fazem” no verão. Benefícios vê poucos. Ou nenhuns. “Aqui dentro da cidade os restaurantes e lojas continuam na mesma”, garante.
João e Joaquim andam ali há anos. São de Peniche, nascidos e criados ali, na terra. Contam os anos, vêem-nos passar e condenam Tozé Correia por “só prestar atenção ao surf”. Ambos repetem a crítica quase uma dezena de vezes. “Falta sempre alguma coisa. Olhar mais para esta praia aqui, por exemplo”, sugere Joaquim, falando da Praia da Gambôa, mesmo ali ao lado, nem a 50 metros. O que podia ele fazer ali? “Olhe, pelo menos um abrigo para reformados quando está a chover”, diz outro dos presentes, às tantas, trocando as voltas ao tema de conversa, que Joaquim é rápido a endireitar: “Então o homem vem perguntar sobre surf e tu falas de reformados?”
Lamentam os tempos de inverno, quando o mar sobe e a água tapa a estrada, ali na Gambôa. “Você acha, na sua ideia, que Peniche, com belas praias, tenha uma entrada assim?”, insurge-se João, ao levantar-se do banco que lhe amparava o corpo e virar-se para um descampado, cercado por uma vedação, mesmo à entrada da muralha. “Nunca tivemos um campo de concentração aqui”, sublinha. “Aquilo é para entrar dinheiro da Comissão Europeia, é disso que ele está à espera”, suspeita Joaquim, mas João não desarma: “É uma vergonha e ponto final!” E a conversa termina sem ele largar as críticas. “Não são capazes de plantar aqui uma árvore ou o que fosse. É um desleixo. Ele está lá, mas preocupa-se sempre com o mesmo”, defende.
Ali não havia bons olhos a verem o surf. Na outra ponta da escada da idade, porém, é tudo diferente. Entra-se em Peniche e segue-se a estrada. Avistam-se parques, cafés, restaurantes e pessoas na azáfama de uma tarde já idosa de sexta-feira. As aulas já terminaram. Mas há resistentes. Uns quantos persistem, rapazes e raparigas, em torno da Escola Secundária de Peniche. António Vala, de 17 anos, é um deles. Está mesmo à porta do edifício. Não faz surf, mas acha-o “bué importante para a região, porque os surfistas conhecidos vêm todos” e até conhece “pessoas que vêm de Santarém” para assistirem ao evento.
António também gosta de ver. Pisou e sentou-se na areia, com os olhos postos no mar, em cada um dos cinco anos em que Supertubos foi palco do evento. Este ano não ia falhar. Nem Rui Mesquita, amigo e colega, que já se tinha aventurou “uma vez” no surf. “Não pratico, mas gosto muito de ir ver”, assegura, partilhando um sentimento que parece ser mútuo com muita gente — no ano passado, conta, “estiveram 60 mil pessoas na praia, a um domingo”. António explica que, por ali, o verão, o das festas, animação e calor a chamar para a praia, acabava sempre “por volta da terceira semana” de setembro. Agora, confere, “parece que volta tudo, com camones por todo o lado”, logo na semana que antecede o campeonato.
Não se chateiam com a invasão de gente. “Sem essa confusão isto não era nada. Se não forem os ingleses e a estrangeirada toda a irem aos bares e restaurantes, era só a malta da escola mais uns rapazinhos quaisquer”, defende António. Será que toda a gente pensa assim? O aluno do 12.º ano acha que sim, nem que seja por ter sido o pai “a insistir” para que, no primeiro ano, ambos fossem à praia ver o campeonato. “Estivémos lá a tarde inteira e, no fim, foi ele a dizer que voltaríamos no dia seguinte. Agora sou eu a puxar por ele. Levo-o a Supertubos pelo menos um dia”, conta António.
A conversa despede-se com um lamento. “Já dizem que é o último ano disto por cá”, revela Rui, frisando que o surf “dá tudo a Peniche”. É o que “traz vida” à cidade. Se a prova mudar de ares, vaticina António, “será o ano de transição, em que a malta ainda vem experimentar as ondas, mas, passados dois ou três anos, a terra vai morrer”. Tozé não tem medo disso. “São desde logo os surfistas a dizerem que a onda de classe mundial está aqui, em Supertubos. E isso é o nosso capital. Temos pouco mais do que esse”, argumenta, imaginando que, se algum dia o circuito virar as costas a Peniche, será porque “o glamour do surf se perdeu”. Portugal, concluiu, “acordou para a importância da onda a partir de Peniche”. A região sempre as teve. Mas só apaixona Tozé há seis. Será essa a relação que terá de perdurar para Supertubos não sair do mapa.