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Trabalhadores precisa-se. A construção quer reinventar o trolha como a restauração fez com o chef. Mas o desafio é a formação

Construção perdeu 150 mil trabalhadores em 12 anos — muitos emigraram, outros reformaram-se. Empregadores querem mudar a imagem do setor e requalificar centros de formação que foram "desvirtuados".

Este Especial é a terceira, e última, parte de uma série de três artigos sobre o tema “Trabalhadores precisa-se”. Foram publicadas as reportagens referentes à restauração e hotelaria e à agricultura. Termina com o que se passa na construção.

Será um insulto para nós se ainda estiveres cá daqui a 20 anos. Andares por aqui é uma perda de tempo.” A deixa é de Chuckie Sullivan, a personagem de Ben Affleck no filme de 1997 “Good Will Hunting”, e é dirigida ao melhor amigo, o próprio Will Hunting (Matt Damon) — um rebelde que se revela um génio (autodidata) da matemática. Chuckie, trabalhador na construção, é um jovem frustrado com a vida que vê Will como o miúdo inteligente que desperdiça o talento nas obras. É notório o tom desfavorável que a personagem cola ao setor: “Amanhã vou acordar, terei 50 anos e ainda vou estar a fazer esta porcaria.”

A representação mais negativa do trabalho na construção não é exclusiva do premiado filme de Gus Van Sant. A ideia de que o setor é para quem não serve para os estudos está quase enraizada, mas vários empresários consideram-na injusta e, garantem, já não corresponde à realidade do setor. Se é certo que há funções mais indiferenciadas, há outras mais técnicas e necessárias, que requerem formação e experiência, como a de carpinteiro, eletricista, canalizador — e para as quais é cada vez mais difícil encontrar trabalhadores.

Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN), considera que a própria nomenclatura das funções também não ajuda a torná-las atrativas. Enquanto a restauração soube “reinventar-se” com a figura do chef “que está hoje na moda”, a construção tem o “trolha”, que acarreta consigo uma conotação negativa. “Acho que essa é uma das formas de atrair jovens, atualizar a nomenclatura, a classificação. Na restauração, houve essa mudança que é positiva, que corresponde mais à realidade, há uma maior dignificação da categoria”, nota.

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Um trrabalhadror da construção civil faz uma pausa durante o recolher obrigatório do estado de emergência, no âmbito das medidas de contenção da covid-19, em Lisboa, 21 de novembro de 2020. Com 213 concelhos em risco em Portugal, o Conselho de Ministros decretou, durante o fim-de-semana, o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais e restauração a partir das 13h00 até às 08h00 do dia seguinte, para além do confinamento obrigatório para toda a população destes concelhos a partir das 13h. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Segundo os dados divulgados pelo Ministério do Trabalho nas estatísticas sobre a construção, em julho de 2021, o salário no setor era, em média, de 1.034,3 euros

ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

António Silva, 53 anos, responsável pelo recrutamento de trabalhadores para uma empresa do setor sediada nas Caraíbas, conta que sempre que coloca um anúncio online recebe dezenas de mensagens e chamadas: a ilha é atrativa, o salário também. Mas poucas são de pessoas abaixo dos 40 anos. “Os jovens aparecem pouco agora na construção, estudam e às vezes não têm colocação, mas também não querem ir para a construção, pensam que é mais doloroso”, indica. Outros, conta, sejam eles novos ou mais velhos, garantem ter qualificações, que, uma vez chegados ao destino, revelam não ter.

Fernando Martins, 49 anos, tem uma empresa de remodelações em Portugal e concorda que esse é um dos principais problemas do setor: não é que não haja pessoal disponível, o problema é a falta de qualificações ou mesmo de motivação. “Temos pouco pessoal preparado para atacar a remodelação, aparece muita mão de obra não qualificada“, lamenta.

Este trabalho também é para os mais velhos, dizem os empresários

Nos grupos de Facebook ligados à construção proliferam as oportunidades de trabalho — alguns temporários, outros permanentes; muitos para Portugal, outros para o estrangeiro: na Europa ou em destinos mais exóticos. Trocam-se números de telefone, descrições da experiência profissional, fotografias de trabalhos terminados ou em execução. Tudo à vista de todos.

É lá que António Silva procura trabalhadores que queiram percorrer mais de cinco mil quilómetros sobre o Atlântico e fixar-se numa pequena e quente ilha das Caraíbas, São Bartolomeu, que “já tem mais portugueses do que locais”, sobretudo na construção e na hotelaria. Natural de Aveiro, é nesta ilha que vive há três anos e onde é encarregado geral de uma empresa francesa “com patrão português”. Uma das responsabilidades é, precisamente, o recrutamento.

António conta ao Observador que gosta de dar prioridade aos portugueses quando contrata — diz que são mais “certinhos”, além da existir a facilidade da língua. Os seus posts têm dezenas de comentários e dão origem a outras dezenas de contactos telefónicos. Em dois dias, já tinha todas as oito vagas preenchidas. “E continuam a telefonar, a mandar mensagem.”

A experiência de António diz-lhe que não é difícil ter candidatos: pelo clima da ilha e pelos salários, que são apelativos para o trabalhador português, habituado a, por vezes, não chegar a arrecadar mil euros ao final do mês. A empresa onde trabalha está a oferecer entre 3.000 e 3.500 euros para as oito posições: desde manobradores de pesados, mecânicos, eletricistas ou carpinteiros. Oferece alojamento — que na ilha dos hotéis de luxo facilmente chega aos 1.500 euros — e o transporte para o trabalho. Já a comida fica a cargo do trabalhador, que pode chegar a gastar 600 euros mensais nesta rubrica.

O problema, relata António, é encontrar quem realmente tenha as qualificações que diz ter ou quem vá para ficar muito tempo. A empresa até deixou de pagar as viagens — que ultrapassam os mil euros —, depois de ter tido sucessivas más experiências. “Chegámos a pagar e depois não aparecia ninguém. Viajavam, mas iam para outras empresas. Depois há aqueles que chegam, não gostam do clima e não ficam mais do que uma semana. O calor às vezes cansa mais do que o físico”, relata. É frequente, explica, chegarem trabalhadores destacados para uma posição que não sabem fazer. A estratégia é, para não desperdiçar uma oportunidade, baixar o salário consoante as qualificações reais e tentar dar-lhes formação. “Se a pessoa quiser ficar, fica, mas para aprender”, avisa.

Quem fica, costuma aguentar vários anos. António está há três na ilha. Estima que, se estivesse em Portugal, o seu salário rondaria os 1.500 euros, muito aquém do que sempre ganhou no estrangeiro. Aliás, quando há 16 anos saiu do país — já esteve em Angola, na Bélgica, no Panamá, na República Dominicana, na Noruega, em França — rapidamente triplicou o ordenado.

Das oito vagas que agora preencheu para São Bartolomeu, todas vão para trabalhadores de 40 anos para cima — um tem 62 anos. Não que a idade seja um critério de seleção. Os jovens é que “aparecem pouco”. Será por pensarem no futuro e que a profissão, exigente fisicamente, pode não ser viável quando a idade começar a pesar? António rejeita. O trabalhador de 62 anos que acaba de contratar vai fazer trabalho de “carpintaria limpo”. “É um trabalho mais leve, dá para uma pessoa de 62 anos.”

Fernando Martins também tem a resposta na língua: “É cansativo, mas no fundo se as pessoas se mentalizarem e souberem gerir não é. Eu não sou de ferro, porque é que ando cá e os outros não andam?

Ele próprio reconhece que já não faz o que fazia antes com a mesma energia: “Temos de dobrar a barriga em cima dos joelhos para medir isto e aquilo, sarrafar a massa, a coluna obriga a andar derreado. Não é a mesma coisa do que se for um jovem, e por isso eles fogem”. Mas não baixa os braços. Há serviços “mais leves” que ainda poderá fazer quando chegar aos 60: “tapar umas paredes com a espátula, fazer pinturas”, exemplifica.

Mesmo agora, Fernando já podia “andar por aí a passear” em vez de estar com os trabalhadores no terreno, mas não quer. “Às vezes dá-me uma certa revolta quando vejo trabalhos que não correm bem, pego nas ferramentas e digo ‘Olhe lá como se faz’”. E atira: “Eu costumo dizer que a construção civil não é para amar. Não é um trabalho que seja suave, até digo que é mesmo um trabalho, não um emprego”.

A construção já não é o que era?

O empresário de Loures já foi formador em centros de formação do setor, mas diz que notou algum desinteresse por parte dos estudantes. “As pessoas quando querem algo para vingar na vida, têm de fazer com gosto, senão também nos tiram a vontade. Encontrei pessoas que não quiseram acabar os estudos, tinham um — desculpe a expressão — bom cabedal para exercer funções e ganhar algum rendimento, mas estavam parados”, aponta.

A construção, considera, “não tem nada a ver” com o que era há 30 anos. Desde logo, com as normas de segurança e pelas máquinas que permitem substituir algum do trabalho mais pesado. “Antes havia pouca segurança e também era um trabalho mais árduo e pesado. Hoje, as máquinas transportam materiais, temos equipamentos — óculos, luvas, fardas próprias. Quando comecei a trabalhar muito jovem não tínhamos nada disso. Era ali carne agarrada diretamente no material. Cheguei a ter sangue nas mãos com o desgaste”, explica. Antes “era meia bola e força e quanto mais rápido melhor porque não havia tempo para se ter cuidados”.

António conta que a dificuldade em encontrar quem saiba fazer, ou pelo menos aprender, não é necessariamente nova. “Já em 97, 98, ia com a carrinha para o Lumiar e eles faziam fila. Em 30 ou 40 [que apareciam para trabalhar] se calhar também só tirava dois ou três. Em 2001, lembro-me de chamar um rapaz e explicar-lhe o que tinha de fazer: ‘ó Carlos, a alcatifa é para arrancar toda, vamos envernizar e betumar o chão’. Nem eram 11 horas e já me estava a dizer que estava todo roto, que não estava habituado e que ia procurar outra coisa”.

Mesmo mais recentemente é muitas vezes difícil conseguir encontrar quem não saltite de empresa em empresa ou quem queira mesmo ficar no setor. “Tive aí um artista que esteve um mês e meio e quando lhe disse que precisava dos documentos para fazer a Segurança Social respondeu: ‘Desculpe lá, só vim aqui buscar um dinheirinho para ajudar o meu neto, já estou reformado’. E eu até gostava dele.”

A explicação para o problema da falta de mão de obra, acredita, tem de ser feita aludindo à crise de 2008, que ceifou o mercado imobiliário, com consequências na emigração de muitos trabalhadores. Os que ficaram foram-se reformando. “Estamos a atravessar uma fase em que a geração atual não está a aprender com as gerações anteriores que estão a ir para a reforma. Hoje temos muita gente a trabalhar mas com pouca qualidade.” Já aconteceu ter de recusar trabalhos porque não tem gente suficiente? “Isso é certinho”, responde.

Os números do INE ajudam a traçar uma dimensão do problema. Em 2007, o setor tinha 370 mil trabalhadores por conta de outrem (não inclui empregadores ou trabalhadores por conta própria), um valor que caiu para um mínimo de 178 mil em 2013, ou seja, menos 192 mil profissionais no espaço de seis anos. A mesma série do INE vai apenas até 2019, altura em que já estavam no setor quase 220 mil trabalhadores por conta de outrem, ainda 151 mil trabalhadores aquém dos dados de 2007, antes da crise.

Essa quebra foi transversal às mais variadas funções. Por exemplo, os quadros superiores passaram de mais de 14 mil em 2007 para quase metade — um mínimo de 8.299 em 2015. Queda maior, em termos percentuais, teve o número de aprendizes e praticantes: em 2007 eram mais de 13 mil e em 2016, o número mais baixo da série, não chegavam aos cinco mil. Desde então, pelo menos até 2019, já tinham recuperado (muito ligeiramente) para cerca de 5.500.

Nos últimos anos, a perceção da falta de trabalhadores intensificou-se porque o setor cresceu, nota Manuel Reis Campos, da AICCOPN. O representante dos empregadores do setor explica que, depois da crise de 2008, a construção “foi-se consolidando”. Mais recentemente, mostrou-se relativamente imune à pandemia, nunca parando (as paragens aconteceram, apenas, em surtos localizados).

Manuel Reis Campos (à esq.), presidente da AICCOPN, não acredita que sejam os baixos salários a afastar trabalhadores

LUSA

Em 2020, por exemplo, em contraciclo com o resto da economia, o setor cresceu 3,3%, segundo os dados do INE, enquanto a economia nacional caiu 8,4%. Nos próximos anos não haverá abrandamento: nas estimativas da AICCOPN, o setor vai crescer este ano cerca de 4,3% e, em 2022, já quando o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) estiver em andamento, aponta para 5,5%. “O setor é conhecido como resiliente”, refere.

Este crescimento não tem sido acompanhado na mesma proporção pelo aumento do número de trabalhadores. Em 2019, a AICCOPN identificava a falta de 70 mil trabalhadores, mas reconhece que hoje o número subiu. Uma contradição, quando se olha para os números do IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) de desemprego registado: em novembro, mais de 18 mil pessoas vindas do setor estavam inscritas nos centros de emprego.

Centros de formação foram “desvirtuados”

Reis Campos alerta que vêm aí anos mexidos no setor, de “desafios” com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e o Programa Nacional de Investimentos (PNI), que vai até 2030. Além de “capacitar as empresas”, é preciso “orientá-las”, argumenta. Para isso, pede medidas de “reorientação da formação profissional”, tirando partido dos centros do setor existentes.

O responsável argumenta que alguns destes centros, como o CENFIC (Centro de Formação Profissional da Indústria da Construção Civil e Obras Públicas do Sul), foram “desvirtuados”, ao deixarem de se focar especificamente na formação para o setor. “Os centros são uma oportunidade para desenvolver a formação e devem ter como finalidade potenciar a atração de jovens, coisa que não tem existido, e a possibilidade de reconverter desempregados”, sugere. Por isso, pede que estes centros sejam “reposicionados”.

Crítica semelhante é feita por Albano Ribeiro, presidente do Sindicado da Construção de Portugal: faltam escolas industriais e de formação profissional, o que está a levar ao envelhecimento da mão de obra.

“Estamos atravessar uma fase em que a geração atual não está a aprender com as gerações anteriores que estão a ir para a reforma. Hoje temos muita gente a trabalhar mas com pouca qualidade.”
Fernando Martins, empresário da AM Construções e Remodelações

Mas há um ponto em que os dois divergem. Por um lado, Manuel Reis Campos não acredita que sejam os baixos salários a afastar trabalhadores. Em agosto, foi assinado com seis sindicatos (não inclui o de Albano) um novo acordo coletivo de trabalho que aumentou em 5% o valor dos salários mínimos no setor. A nova tabela salarial prevê, no entanto, uma retribuição mínima de 532 euros (que terá de subir este ano para 564 por força do aumento do salário mínimo) para trabalhadores praticantes que estejam em formação certificada (o Código do Trabalho permite um salário abaixo do ordenado mínimo para praticantes e aprendizes). No novo contrato coletivo, o valor vai subindo até ao grupo I (a função mais elevada), de 1.020 euros. “São valores mínimos, os trabalhadores hoje têm valores muito superiores”, garante.

Setor da construção tem nova tabela salarial entre 665 euros e 1.020 euros

O sindicalista Albano Ribeiro contrapõe que o problema da falta de trabalhadores se resolveria com salários mais apelativos. É que, nas contas do sindicato, um engenheiro civil ganha 970 euros em início de carreira, enquanto em Espanha pode estar a ganhar 4 mil euros. Já um carpinteiro pode ver o salário subir de 720 para dois mil euros, argumenta.

O que dizem os números do Governo? Segundo os dados divulgados pelo Ministério do Trabalho nas estatísticas sobre a construção, em julho de 2021, o salário no setor era, em média, de 1.034,3 euros, mais 4,6% do que no mesmo período do ano anterior. Mas a realidade é muito díspar: os ordenados vão desde os 846,9 euros no caso dos trabalhadores mais indiferenciados até aos 2.039,8 euros para engenheiros civis. Os valores são brutos e incluem o subsídio de refeição, assim como outros subsídios regulares ou prémios (como isenção de horário, subsídio por trabalhos perigosos ou de turno).

Os relatos ouvidos pelo Observador andam à volta destes valores. João, 22 anos, no setor há três, explica que se trabalhar aos sábados, consegue 900 euros líquidos, senão o ordenado fica entre 750 e 850 euros. E aponta problemas ao setor: “Passei por muitas empresas de baixo e alto padrão e posso afirmar que 70% cumpriam as normas básicas de segurança desde equipamentos de proteção individual a condições sanitárias”, só que “alguns locais de obras não têm sítios sequer para os empregados fazerem as suas necessidades básicas nem desinfetar as mãos nesta altura de Covid”.

Há, ainda, muitas empresas que, por “dispensarem o uso de máquinas” para carregar e descarregar materiais pesados, obrigam a um trabalho mais pesado, a “subir muitas escadas e carregar peso”. Por isso, “muitos funcionários queixam-se de dores na lombar”, diz o jovem, que veio do Brasil à procura de um salário “atrativo”. Ele próprio já sentiu isso, sobretudo quando era servente (agora é responsável pela montagem de tetos falsos). “Tinha muitas dores por pegar em cargas pesadas de mal jeito”, relata. João já ponderou ir para o estrangeiro onde a oferta salarial é “muito boa” e onde tem amigos, como Bélgica, Alemanha, Luxemburgo. Aí conhece quem consiga por mês entre 1.800 e 2.500 euros consoante a função.

"Os centros [de formação] são uma oportunidade para desenvolver a formação e devem ter como finalidades potenciar a atração de jovens, coisa que não tem existido, e a possibilidade de reconverter desempregados.”
Manuel Reis Campos, presidente AICCOPN

A profissão é muito caraterizada pela mão de obra imigrante, uma porta de chegada a quem se queira fixar no país. É também o caso de Leandro, 33 anos, natural do Brasil, que chegou a Portugal há um mês à procura de uma “educação melhor” para a filha e “melhor qualidade de vida”. Não se queixa das condições salariais: trabalha de oito a dez horas e consegue ganhar cerca de 1.000 a 1.200 euros. Mas aponta o esforço físico, que é “bem grande”. “Mesmo eu, que já trabalho na construção civil há muito tempo, chego quebrado a casa todos os dias.”

Os biscates

João R., 55 anos, caiu na construção pelo acaso da pandemia. A empresa de audiovisual onde trabalha há 26 anos foi obrigada a parar e o lay-off tornou-se o refúgio para evitar uma falência. Ficar parado não era uma opção que lhe agradasse: João pôs as mãos à obra e aceitou fazer “biscates”, primeiro na agricultura, depois na construção. A lei não o impedia de acumular o dinheiro do lay-off com um salário noutro emprego, desde que este fosse num dos setores considerados prioritários — o que incluía a agricultura, mas não a construção. Mas, frisa, “foi trabalho ganho, trabalho honrado”.

No caso da construção, a oportunidade foi-lhe oferecida por um amigo. “Numa daquelas conversas de café perguntou se queria ir com ele às remodelações em Lisboa. Remodelar casas, partir paredes. Estava eu longe de saber que hoje se parte uma parede de uma sala para uma cozinha e faz-se tudo em pladur! É rapidíssimo”, conta, entusiasmado.

Sem formação na área, foi aprendendo com a experiência. Não que isso tivesse sido um problema. “O meu patrão dizia: olhas, vês e aprendes. E para mim foi extremamente rápido, tive também um estucador que me deu umas lições”, lembra.

O cálculo do ordenado era feito ao dia e chegava às mãos de João sempre à sexta-feira. Limpos, sem descontos para a Segurança Social. Num mês, chegava a ganhar, só com o trabalho nas obras, dois mil euros, uma remuneração que quase o pôs a pensar abandonar o emprego no audiovisual. “Acredita que se eu não tivesse 26 anos de casa não pensava nisso? Mas agora já estou velho”, atira.

Durante os meses em que esteve no setor, João remodelou dois apartamentos. Até se ofende quando a pergunta é se ainda tem força para o trabalho mais físico. “Então não tenho? Por amor de Deus! Faz-se tudo muito bem, só não trabalha quem não quer.” O trabalho é físico, sujo, e isso, reconhece, pode não apelar a muitos trabalhadores, mas em compensação, defende, “quem quer trabalhar, hoje em dia, ganha muito dinheiro”. O problema é que “há poucos a fazer o trabalho limpo, a fazer bem, a entrar na casa limpa, arranjar e sair com a casa limpa”.

João conta que o amigo tem agora 18 funcionários, mas na altura em que trabalharam juntos “ele não tinha quase ninguém”. “Fizeram uma remodelação no apartamento e não havia ninguém para trabalhar. Ele prometia a um servente sete euros à hora, a uma pessoa credenciada dez euros à hora, a uma pessoa de primeira — como nós na gíria chamamos — 15 euros à hora. É bom. Mas as pessoas se calhar pensam: para que é me vou moer, levantar às seis da manhã, quando consigo 600 e poucos euros no subsídio de desemprego?”

No seu caso, a jornada começava às sete da manhã e terminava entre as 18h00 e as 20h00, com uma hora de almoço. O que João mais prezava era o convívio e a camaradagem com os colegas: “Cada dia um de nós pagava o almoço a todos no restaurante, para ninguém levar comer. A bucha era diferente… ia um ao supermercado comprar queijo, pão, manteiga, os sumos, e a cerveja como é óbvio. Dividíamos por todos, gostei muito. Ainda hoje me chamam para ir lá ter com eles.” Para já, só volta para o convívio. “Eles sabem que não vou. Amo a minha profissão e tenho a minha idade.”

Questionado sobre se a informalidade é ainda uma realidade muito presente no setor, o sindicalista Albano Ribeiro lembra que essa opção pode significar pensões a rondar os 400 euros. O sindicalista dá mais peso à clandestinidade que expõe muitos imigrantes: “70% do trabalho que está a ser feito na reabilitação urbana é clandestino e há sinais de escravatura contemporânea“, diz mesmo.

Albano Ribeiro, sindicalista, acredita que faltam escolas de formação profissional para o setor

JOSÉ COELHO/LUSA

Os salários mais apelativos no estrangeiro levam os portugueses a procurar uma vida melhor lá fora, ficando o país mais suscetível às empresas que operam à margem da lei e que trazem mão de obra imigrante, muitas vezes não lhes garantindo direitos básicos. “Temos agora sete casos de trabalhadores brasileiros a quem o angariador não pagou. Já vimos 17 trabalhadores brasileiros a dormir debaixo de uma placa. Há trabalhadores que têm de pagar o próprio material de proteção”, exemplifica. No sindicato, há professores de português a ensinar estrangeiros “para se defenderem”.

Manuel Reis Campos, da AICCOPN, diz que a clandestinidade no setor ainda preocupa. Depois da última crise, o problema “desregulou-se” ainda mais. A associação a que preside tem tentado acabar com a “concorrência desleal” de empresas que operam à margem da lei, com pagamentos sem descontos para a Segurança Social e que não oferecem condições de trabalho e segurança dignas.

“Temos tido com a ACT uma campanha contra a marginalidade, a clandestinidade, a concorrência desleal.” Até porque essa “marginalidade” está muitas vezes de mão dada com a sinistralidade — os acidentes e as mortes no setor devido à falta de medidas de segurança. A clandestinidade também propicia a que os trabalhadores fiquem pouco tempo em cada empresa, o que causa constrangimentos à atividade empresarial.

Com o PRR no horizonte próximo, Reis Campos apela a uma ação rápida do Governo: “Estas pessoas vão estar aqui muito tempo, precisamos de as formar e converter e que setor saia dignificado.” O representante dos empregadores insiste na desburocratização de processos que permitam às empresas uma “mobilidade mais eficiente e dinâmica”. Reis Campos já não tem esperança que os que emigraram desde a crise regressem a Portugal. “Têm melhores condições lá e nesses países também há muito trabalho, também têm os seus PRR”.

Albano Ribeiro, por sua vez, estima que, em seis anos, o setor tenha perdido cerca de 300 mil trabalhadores, valor que inclui empregadores e empregados, dos operários menos qualificados aos quadros superiores técnicos. Engenheiros, estima, terão saído cerca de 16 mil para França — onde há mais de 20 mil portugueses na construção —, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Suíça.

A globalização e as viagens low-cost também deram azo a essa mudança. “Antigamente, um trabalhador de Marco de Canaveses vinha trabalhar e ficava numa caserna. Agora vai segunda-feira para a Alemanha num voo de baixo custo e ganha quatro mil euros, ou dois mil euros em Espanha e volta à sexta-feira”, conta.

89% dos empregadores tem dificuldade em preencher vagas

Segundo um inquérito da AICCOPN sobre a situação do setor no terceiro trimestre de 2021, tanto no segmento das obras públicas como no das privadas a principal preocupação identificada pelas empresas foi a “falta de mão de obra especializada” (73% e 79%, respetivamente, valores que têm estado a subir).

Ao Observador, Vítor Antunes, managing director da ManpowerGroup, explica que a empresa especializada em recursos humanos tem alguma “facilidade em preencher a maioria das vagas” que recebe. “Mas temos em aberto uma posição, que até costumo discutir com a minha equipa todas as semanas, que é a de estucador. Há três meses que não conseguimos preenchê-la. É uma posição muito técnica, necessária e até bem paga, mas é difícil construir, para estas pessoas, uma proposta de valor.” Mesmo que o salário possa rondar os três mil euros.

“Seria natural que ao fim de uma ou duas semanas houvesse um desinteresse do cliente perante o não preenchimento de uma vaga, mas não é o caso que estamos a assistir. Isso reflete um momento de mercado”, acrescenta.

Segundo um inquérito da ManpowerGroup, 62% dos empregadores nacionais relatam dificuldades em preencher as vagas. O número dispara para os 89% no caso da construção. Vítor Antunes atribui os valores ao dinamismo do setor, que não parou com a pandemia e até esteve em “contraciclo”.  “Quem está no setor tem uma perspetiva de crescimento, logo, de contratação”, nota.

Vítor Antunes considera que o problema pode não ser “necessariamente uma questão de falta de atratividade do setor, embora isso também exista, mas o facto de este setor, como muitos outros, também obrigar à requalificação dos profissionais”. E faz um enquadramento mais estrutural: a pandemia acelerou de forma rápida a forma de trabalhar, estendeu a digitalização.

A velocidade de formação não está ao mesmo ritmo da evolução das necessidades do setor. Além de que os trabalhadores tendem a ir mais para os empregos da tecnologia de informação ou para os centros de serviços partilhados. Os funcionários, hoje, valorizam a flexibilidade de horários, organização e localização do trabalho — características que não são propícias na construção.

Vítor Antunes diz que, para compreender o problema, é importante olhar para onde está o país a direcionar as estratégias de formação: elas estão não só nos grandes centros urbanos, mas também nas tecnologias de informação, com um “crescimento exponencial”. O responsável da ManpowerGroup alerta: a escassez de trabalhadores pode afastar investimento estrangeiro, não só neste como noutros setores. “Em todas as interações que temos com investidores estrangeiros que pensam em montar as suas operações em Portugal o primeiro tema é o do talento. Se existem pessoas com as competências que são necessárias para desempenhar determinadas funções”, indica.

Manuel Reis Campos concorda e defende que o caminho passa por aliciar os jovens a regressarem ao setor, que queiram ser trolhas mas sem a carga pejorativa, com uma profissão bem vista e valorizada. Talvez assim, Chuckie Sullivan olhasse com outros olhos para o seu futuro no setor.

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