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A dupla Lavoisier (Patrícia Relvas e Roberto Afonso) no final da caminhada que culmina na Lagoa de Empadadas
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A dupla Lavoisier (Patrícia Relvas e Roberto Afonso) no final da caminhada que culmina na Lagoa de Empadadas

VERA MARMELO

A dupla Lavoisier (Patrícia Relvas e Roberto Afonso) no final da caminhada que culmina na Lagoa de Empadadas

VERA MARMELO

Tremor: o festival onde a natureza continua a ser o grande cabeça de cartaz

O festival açoriano chegou ao fim este sábado, numa edição marcada pelo clubbing e por palcos mais convencionais do que é habitual. No Tremor, a música é o pretexto para descobrir a paisagem.

O caminho é íngreme e exige cautela. Um pé atrás do outro, evitamos as pedras, escapamos da poças, numa procissão lenta e silenciosa. O olhar ocupa-se das texturas verdejantes, a cabeça perde-se no mundo que sai dos headphones. À chegada, uma lagoa espelha um imenso cenário que nem o melhor postal açoriano consegue replicar, e um duo de artistas atua perante uma centena de pessoas sentadas sobre a erva selvagem. É uma das memórias que ficam do Tremor, festival realizado anualmente na ilha de São Miguel, nos Açores, dedicado à descoberta musical, mas incomum na paisagem, nos palcos e na forma como tenta relacionar a cultura local com quem a visita.

O festival, organizado pela editora e promotora portuense Lovers & Lollypops, foi conquistando um séquito de fiéis de tal ordem que o passe geral esgota sempre meses antes de começar — para responder à procura, a promotora vendeu este ano, pela primeira vez, passes de fim-de-semana. O habitual ecletismo do cartaz deu lugar a uma preponderância do clubbing e as Portas do Mar, espaço que o Tremor começou a ocupar no ano passado, tornou-se o epicentro de grande parte da programação musical, por regra mais dispersa em lugares inusitados. Dores de crescimento de um festival que se afasta da sua génese ou um sinal de sucesso? Na última semana, 1500 pessoas participaram no festival.

As inscrições "Tremor Todo o Terreno", que implicam uma caminhada guiada até ao lugar do espetáculo, são sujeitas a uma inscrição prévia (disponível apenas para quem tem bilhete para o festival)

MARINA CRUZ

Os primeiros dias de primavera foram bondosos para os Tremor Todo-o-Terreno, nome dado aos trilhos artísticos secretos em que os participantes são guiados por uma composição original e que culminam com um ato performativo. “Estão a apanhar o melhor dia do ano”, garantia um micaelense a um grupo de jornalistas continentais, ao princípio da caminhada, marcava o relógio nove de manhã. As inscrições (para os portadores de bilhete do festival) estão há muito esgotadas, para frustração de muitos que não o fizeram antecipadamente. O percurso é acompanhado por uma paisagem sonora criada pelos Lavoisier (duo composto por Patrícia Relvas e Roberto Afonso) que se escuta durante uma boa parte do trilho. Chegados ao sítio onde os esperam, a Lagoa de Empadadas, os participantes são brindados com um momento musical ao vivo da dupla Lavoisier, abrilhantado com a canção de José Afonso, Os bravos.

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“Movimento violento e vibratório em diversas direções”, assim define a primeira entrada do dicionário a palavra “tremor”. Mas nesta 11ª edição todos os caminhos iam dar à marina de Ponta Delgada, onde se desenrolaram grande parte dos concertos.

De Jards Macalé ao futuro do hip-hop açoriano

Foi a voz arrastada de Jards Macalé, histórico cantor e compositor brasileiro, com 81 anos, que arrancou o primeiro dia nas Portas do Mar, no centro de Ponta Delgada. O carioca, que nas décadas de 1960 e 70 trabalhou com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa, surgiu de camisa vermelha escarlate e óculos escuros e redondos. Foi o fim da sua maior tour europeia de sempre, depois de atuações em Paris, Colónia, Berlim, Dortmund, Frankfurt, Malmö, Copenhaga, Bremen, Londres, Varsóvia e Barcelona. Macalé que, em 2019, com o álbum Besta Fera, retratou o governo de Jair Bolsonaro como um período de trevas, e, quatro anos depois, tentou afastar os tempos sombrios voltando a escrever sobre o amor, com Coração Bifurcado, usou o palco do Tremor também para revisitar o seu disco de estreia, homónimo, de 1972. Acusando aqui e ali a erosão dos anos, a voz de Macalé pouco pareceu importar à primeira fila que aguardava para ver o tropicalista de primeira hora, diretor musical do disco marco de Caetano Veloso, Transa (1972), em palco, onde certamente torna “para curtir”, como entoa em Revendo Amigos.

Este ano, foram seis as iniciativas "Tremor Todo o Terreno", sempre guiadas pela paisagem sonora concebida pela dupla portuguesa Lavoisier

MARINA CRUZ

De Chelas para Rabo de Peixe, o hip-hop não chegou aos Açores, já cá estava e foi protagonista de um dos poucos pontos altos do festival, que chegou ao terceiro dia. O encontro entre Sam the Kid, figura maior do rap português, e 14 rappers açorianos deu-se ao final da tarde, no Porto de Pescas de Rabo de Peixe, numa celebração da música que se faz no arquipélago. Lina Estrela, Adílio, Gilberto Penteado são nomes de barcos por ali atracados, mas bem podiam ter inspirado alguns dos versos dos jovens que durante uma semana trabalharam com o MC de Chelas e a Escola de Música de Rabo de Peixe numa residência artística promovida pelo festival. Do talento emergente e local evidenciaram-se no espectáculo Joana Pacheco, jovem cujas letras carregam uma herança narrativa do autor de Poetas de Karaoke, e Oestrela, um caso claro de popularidade local, que reunia um pequeno grupo de fãs que entoavam os seus versos de cor, com direito as pedidos de fotografias no final. “Ele realmente tem músicas que já estão a ter algum sucesso. É capaz de ser o artista com mais sucesso que canta aqui connosco”, comentava Sam the Kid (Samuel Mira) ao Observador no ensaio-geral, no dia antes do concerto.

O MC e produtor Sam the Kid com catorze rappers do arquipélago dos Açores (à esquerda). Jards Macalé (à direita), histórico cantor e compositor brasileiro, arrancou o primeiro dia de festival

VERA MARMELO

Punk feminista e Glockenwise com temporizador

De vestes negras, Doc Martens nos pés e loiro oxigenado à cabeça, três miúdas de Brighton, Inglaterra, incendiaram as Portas do Mar na sexta-feira, no que muitos classificaram como o mais portentoso momento do certame de cinco dias. É mérito do punk feminista imbuído em vontade de fazer do género um espaço seguro para todos. As Lambrini Girls têm uma agenda que não se esconde por trás de subtilezas ou meias palavras: pede-se o fim do patriarcado, da misoginia, do assédio e da cultura de abuso que persiste no seio da indústria musical.

“Só 8% dos casos de assédio sexual em Inglaterra chegam a algum lado”, alertaram. “Vemos e não fazemos nada, porque temos medo”, “Acreditem nos vossos amigos”, “Façam alguma coisa porque a polícia não faz nada”, clamaram para um público na mão, que dominaram enquanto desfilavam faixas como Help Me I’m Gay, White Van, Lads Lads Lads ou Big Dick Energy. No final, a energia concentrou-se num dedo erguido ao céu.

Duas horas antes, atuou o mais próximo que esta edição terá tido de cabeça de cartaz e em português, com os Glockenwise a mostrar o seu aclamado Gótico Português, lançado em 2023.

A banda de Barcelos Glockenwise era um dos nomes mais esperados no Tremor, mas acabou por dar um concerto mais curto do que o esperado. “É o que da festivais, pessoal”, disseram no fim

VERA MARMELO

“Vieste ao sítio certo/ Toda a gente se respeita/ Cada um com a sua seita/”, cantaram em Margem, qual cântico de sereias para os fãs da banda minhota que tinham os versos na ponta da língua. Apaixonados pelos Açores há uma década — ou assim recontam —, o grupo de Barcelos atuou para uma plateia do mais composto que se viu por estes dias, mas isso não os impediu de fazer um concerto curto. “É o que dá festivais, pessoal”, disse o vocalista em jeito de despedida.

Entre os espetáculos em espaços mais convencionais — a saber, além das Portas do Mar, o festival ocupou também com frequência o Teatro Micaelense, o Coliseu Micaelense ou o Auditório Luís de Camões — outros dos destaques deste 11.º Tremor foram o produtor ugandês Faizal Mostrixx, com uma atuação entre a música e a performance em jeito de celebração afro-futurista, o groove interminável dos belgas La Jungle, capazes de aquecer a temperatura no Mercado Municipal da Ribeira Grande em tempo de intempérie açoriana, ou P.S. Lucas, que pese embora se tenha apresentado com uma plateia despedida à custa do horário infeliz (20h30), conseguiu fazer um dos momentos mais solenes do festival. Numa edição pouco dada a canções, é de salutar qualquer tema que possamos trautear, mesmo que seja uma “tentativa poética para escrever sobre offshores” e “esquemas marotos do Novo Banco”, nas palavras do próprio, referindo-se a Little Lizard.

O Tremor é um palco, a ilha uma festa

Há uma certa liberdade na inexistência de um cabeça de cartaz que impõe uma agenda. O prazer de desfilar pelos palcos da cidade, praticando uma escuta intercalada revela-se uma frustração para muitos, mas um deleite para quem não se rege por querer escutar um artista — há mais mundo além do que o conhecemos, como prova um festival dado à experimentação.

Se os concertos do alinhamento não surpreenderam por demais, há um inebriante entusiasmo nos concertos-surpresa (a que a organização dá o nome de Tremor na Estufa). Através de uma notificação na app do festival ou por mensagem, cada pessoa recebe horas e coordenadas. Este ano, o mapa levou festivaleiros a uma peregrinação até ao Miradouro do Rosário, em Ponta Delgada, para encontrar Landrose (nome artístico de David Temprano). O cenário contrasta com a energia pulsante do baterista dos belgas Cere, a impulsionar corpos dançantes acelerados. No dia seguinte, uma nova mensagem, desta vez a conduzir uma multidão até à Pedreira Marques, onde altíssimas paredes de basalto abrigavam o pequeno palco de onde ao longe já se ouvia o punk de Detroit, EUA, dos Poison Ruin.

À esquerda: a Pedreira Marques, onde se ouviu o punk de Detroit dos Poison Ruin. À direita: o Miradouro do Rosário, em Ponta Delgada, onde atuou Landrose (nome artístico de David Temprano)

MARINA CRUZ

É certo que não precisamos do Tremor para ver vacas felizes, hortênsias, ou descobrir a ilha e os seus museus, termas e recantos. Mas tem sido apanágio do festival mostrar a cultura da região, nomeadamente com a iniciativa Receitas do Baú — Na Nossa Mesa, desenvolvida em parceria com a Vid’Açor. A oportunidade de conhecer e interagir com pessoas da vila de Rabo de Peixe, e de fazer uma refeição tendo por base base o receituário tradicional e hábitos gastronómicos locais é um privilégio de poucos, já que os menus e pré-vendas disponíveis no bilhete digital esgotam em minutos.

“Querer saber é revolucionário”, ouvir-se-ia mais tarde numa atividade menos exclusiva, sem receita ou inscrição. Mantendo a relação com as comunidades e associações, o festival voltou a desafiar o coletivo Ondamarela a trabalhar com a Associação de Surdos de São Miguel. Nesta edição, juntaram-se ao grupo de percussão açoriano Bora Lá Tocar para uma arruada por Ponta Delgada. O mote é o nosso bem mais precioso: o tempo. “Tempo para abraçar”, “Tempo para sorri”, “Tempo para comer crepes”, lia-se em bandeiras hasteadas pelo público que assistia ao espetáculo, que decorria entre o Jardim Antero de Quental e o Jardim Botânico António Borges.

Mais de 40 pessoas fizeram um workshop de arte bonecreira, que remonta à segunda metade do séc. XIX. As figuras em bairro são utilizadas nos tradicionais presépios açorianos

MARINA CRUZ

A Arte Bonecreira está viva

Num pequeno centro comercial em Ponta Delgada, as montras estão ocupadas por pequenas figuras de barro, presentes nos tradicionais presépios de Natal açorianos. A Arte Bonecreira remonta à segunda metade do séc. XIX, altura em que aparecem as primeiras oficinas de produção destas pequenas figuras de barro na cidade de Lagoa, em São Miguel, chegando a ser um complemento ao rendimento de várias famílias. No entanto, em 2017, artesãos alertaram que a arte dos bonecreiros estava em risco de extinção. Hoje, a arte está a ganhar um novo impulso, com um projeto da Câmara Municipal da Lagoa que permite incentivar a arte bonecreira naquele concelho, certificando novos artesãos a dar continuidade aos tradicionais presépios de Natal com figuras de barro, pintadas à mão.

Durante o Tremor, fizeram-se workshops com uma abordagem contemporânea à arte bonecreira, tradição à qual foram beber as figurinhas que este ano fazem a identidade visual do festival. Mais de 40 pessoas aprenderam com o artesão João Arruda a pintar os bonecos construídos com recurso a molde e posteriormente aperfeiçoados à mão, cozidos e, depois, pintados com o cuidado de realçar detalhes como roupas, expressões faciais e acessórios.

Com a instabilidade política da ilha e os primeiros sinais de gentrificação, parece um milagre que se mantenha um festival imune ao seu entorno. “Tremor é amor” é o mote. Até ver, assim continua.

O Observador viajou até São Miguel a convite do festival Tremor.

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