O sonho é antigo. Na Universidade de Évora, na de Aveiro e na de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) não se esconde a ambição de ter, um dia, uma faculdade de Medicina. Receber alunos em 2023, como é desejado pelo ministro do Ensino Superior, será mais difícil. Desde logo porque não depende da vontade de Manuel Heitor, nem da dos reitores: é preciso luz verde da A3ES, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, e passar por um processo de avaliação que dura no mínimo um ano. E, até à data, nenhuma das três universidades públicas entregou um pedido de acreditação, apurou o Observador, nem nenhum dos reitores se compromete com datas.
Oficialmente, o presidente da A3ES prefere não confirmar que cursos tem em mãos para avaliar e quais, com ‘ok’ do organismo, poderiam começar a funcionar no ano letivo de 2022/23. João Guerreiro considera prematuro fazer um levantamento nesta altura, uma vez que o período de candidatura de novos ciclos de estudos decorre até 15 de outubro, podendo vir a surgir formações que ainda não lhe foram entregues. No caso das licenciaturas, explica ao Observador, a agência tenta tomar a decisão sobre a acreditação até maio do ano seguinte, de forma a que essa nova oferta possa ser incluída no concurso nacional de acesso ao ensino superior.
“Não estou numa corrida nem vou fazer nada a contra relógio”, diz a reitora da Universidade de Évora quando questionada sobre a possibilidade de ter uma Faculdade de Medicina a funcionar em 2023 o que implicaria entregar, o mais tarde, a candidatura no espaço de um ano. “Vamos dar um passo de cada vez e decidir abrir quando as condições estiverem reunidas e se abrir uma Faculdade de Medicina for, de facto, um objetivo”, diz Ana Costa Freitas, lembrando que, para isso, precisa de ter financiamento, o centro académico clínico a funcionar e recursos humanos e investigação feita na área da saúde.
Por outro lado, também defende que a universidade tem de responder a algumas necessidades da região — oferecendo já formação na área da saúde —, mas não escondendo a ambição de vir a ter uma Faculdade de Medicina, como mostra o trabalho que tem feito nesse sentido. Em março passado, quando apresentou o conceito da nova Escola de Saúde e Desenvolvimento Humano da instituição, a reitora deixou clara a sua ideia: é “o momento de apresentar uma abordagem inovadora à formação na área da Saúde em Portugal com foco no regional”. Para além da nova escola, foi também formalizado (no papel) a criação do Centro Académico Clínico do Alentejo que terá parcerias com a Administração Regional de Saúde do Alentejo, o Hospital do Espírito Santo de Évora e vários centros médicos, para além de incluir os politécnicos de Portalegre e Beja.
Na Universidade de Aveiro e na UTAD os reitores preferem o silêncio. Na primeira instituição, a justificação é de que não é o momento certo para falar do assunto, uma vez que se trata apenas de uma intenção. Já o reitor da instituição de Vila Real diz não ser oportuno fazer comentários, depois das declarações de Manuel Heitor sobre o assunto.
Ao que o Observador apurou, o trabalho para avançar com novas faculdades de Medicina está a ser feito nas duas universidades, mas a ritmos diferentes. Na UTAD está praticamente tudo pronto, sendo uma questão de acertar detalhes para se poder avançar com o pedido de acreditação à A3ES. Das três universidades, é a que mais facilmente conseguiria ter uma candidatura pronta em setembro de 2022.
Em abril, na altura em que abandonava o cargo de reitor, ao fim de 8 anos, António Fontainhas Fernandes assinou um protocolo com o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro para criar um Centro Académico Clínico. O objetivo, deixo-o claro, era alcançar a acreditação de um curso de Medicina, ressalvando a importância do curso para fixar médicos em regiões do interior do país. O espírito, em Vila Real, é de que quando o curso de Medicina surgir será mais inovador do que os de Lisboa ou do Porto, podendo captar alguns dos estudantes que têm aquelas faculdades como preferência — mesmo que venha a oferecer menos vagas.
Em Aveiro, é o vice-reitor Artur Silva que explica em que pé está o Centro Académico Clínico, não rejeitando a ideia de que este é um primeiro passo para conseguir ter o curso de Medicina. “O que for feito será a longo prazo, paulatinamente, e com passos seguros. É preciso ter recursos humanos, infraestruturas e bases bem fixas para se poder avançar”, diz o professor que é também presidente do Conselho Científico. “Tem de ser algo sustentado. Temos um Centro Académico Clínico e já temos formação em Medicina de 2.º e 3.º ciclo. Havendo um sítio onde se possa fazer investigação clínica é um bom trampolim.”
Sobre o centro académico, Artur Silva lembra que este vai permitir que a universidade tenha investigação clínica, para além da investigação biomédica universitária que já é feita. O protocolo assinado reúne a Universidade de Aveiro, três centros hospitalares (Baixo Vouga, Entre o Douro e Vouga, e Gaia/Espinho) e todos os ACES (agrupamentos de centros de saúde) a sul do Douro e norte do Mondego.
“Esta parceria surge porque já há uma relação muito forte e já há investigação conjunta feita com os hospitais e os ACES”, diz Artur Silva. Ao ter investigação mais forte, explica, a universidade espera que o centro académico seja uma âncora para fixar médicos na região. “Não se pretende fazer ali formação inicial de médicos, mas aumentar o nível de formação dos profissionais de saúde da região”, explica o vice-reitor. A formação terá dois sentidos: os médicos das unidades de saúde tanto poderão ser formadores como formandos. Para já, o quartel general é a própria universidade, mas no futuro espera-se que venha a ter um espaço próprio, quando o Hospital Infante D. Pedro for ampliado.
Na Universidade de Aveiro, em 2012, chegou a “abrir e fechar” um curso de Medicina, em parceria com o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), como lembra o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães. O curso, contestado pela Ordem, encerrou por falta de acreditação, depois de a Comissão de Avaliação Externa da A3ES ter concluído que o corpo docente era insuficiente e por haver falta de empenhamento do ICBAS no projeto.
Em Portugal, há atualmente oito mestrados integrados em Medicina em universidades públicas e dois ciclos básicos na Madeira e nos Açores, que são finalizados no continente. Este ano letivo, abriu ainda o primeiro curso privado na Universidade Católica para 50 alunos.
Para ter luz verde da A3ES um ano não foi suficiente. O curso da Católica começou por não ser acreditado e, numa segunda fase, foi acreditado com condições. “Uma das condições imediatas foi a redução de alunos”, frisa João Guerreiro, presidente da A3ES. Em vez de 100 alunos, o curso só pode receber 50. Para além disso, há outros critérios que serão avaliados daqui a três anos como, por exemplo, as relações com o Instituto Gulbenkian de Ciência.
Ordem dos Médicos e faculdades de Medicina desconhecem novos cursos
Numa entrevista ao Diário de Notícias, quando questionado sobre que legado gostava de deixar, Manuel Heitor apontou a criação de novas faculdades de medicina. “Se me pergunta outro objetivo, que sei que é muito complexo, mas que estamos a trabalhar nisso, é certamente o alargamento do ensino e da modernização do ensino da Medicina. Espero chegarmos a 2023 com a possibilidade, ou as oportunidades, de virmos a ter três novas escolas de ensino da Medicina, nomeadamente em Aveiro, Vila Real e na Universidade de Évora”, respondeu o ministro. Na altura, Manuel Heitor lembrou que tinha acabado de “ser formado o centro académico clínico em Aveiro”, estando em preparação “o futuro centro académico clínico de Évora e o centro académico clínico de Vila Real, ligado à UTAD”.
Dias mais tarde, foi o primeiro-ministro a prever a abertura de novos cursos de medicina nas mesmas três regiões, declarações feitas na inauguração do curso de medicina da Universidade Católica. Pelo caminho, António Costa apontou o dedo ao corporativismo — médico, neste caso — e aos bloqueios que terão atrasado a abertura do primeiro curso privado de Medicina do país
No processo de acreditação a um curso de Medicina, a A3ES é obrigada a pedir um parecer, não vinculativo, à Ordem dos Médicos. Até ao momento, garante o bastonário Miguel Guimarães, a Ordem não recebeu nenhuma solicitação nesse sentido. Também Fausto Pinto, presidente do Conselho de Escolas Médicas e diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, diz não ter ouvido até hoje qualquer indicação da parte dos seus colegas de outras universidades de que um novo curso estivesse na calha. Já Carlos Robalo Cordeiro, diretor da Faculdade de Medicina de Coimbra, afirma que “esse cenário nunca foi apresentado ao Conselho de Escolas Médicas, a Ordem dos Médicos não foi consultada e a A3ES nunca publicitou nada”, acredita, por isso, que as novas faculdades de Medicina não irão avançar.
Fausto Pinto tem outra perspetiva e acusa “desconforto” por o Conselho de Escolas Médicas “ter sido ignorado e excluído da discussão” sobre a necessidade de novas formações de médicos em Portugal. Ao contrário do colega, acredita que tudo pode acontecer. “Tudo é possível, estamos a caminhar para ser como o Brasil. Vamos acabar a ter universidades de primeira e de segunda, quando o que devia estar a ser feito é o reforço do investimento nas faculdades que existem para que possam ser competitivas no plano internacional”, argumenta o diretor da Faculdade de Medicina de Lisboa.
O médico acusa ainda o ministro de fazer pressão política sobre a A3ES ao indicar onde gostaria de ver nascer novos cursos de Medicina, uma visão partilhada pelo bastonário. “O ministro fez uma coisa inédita no país que é pressionar publicamente a A3ES, que teoricamente é um organismo independente, ao dizer que queria escolas até 2023. É grave, significa que se mexe influências”, acusa Miguel Guimarães. Por último, questiona o porquê de se falar do ensino público e não do privado: “Faz sentido pagarmos todos médicos que o país não precisa?”
Crítica idêntica fez o presidente da associação do ensino superior privado, em declarações ao Público. António Almeida Dias lembra que várias instituições do setor privado “já se candidataram e querem continuar a candidatar-se a ter um curso de Medicina”. O Instituto Universitário de Ciências da Saúde foi uma das instituições privadas que anunciou publicamente ter a intenção de fazê-lo ainda este ano. Por isso, Almeida Dias diz que “não cai bem que antecipadamente se esteja a dizer que existem três instituições” que serão aquelas com condições para poder abrir o curso de Medicina. “Isto até é injusto para a A3ES, porque parece que aqueles três cursos terão um patrocínio político. Mesmo que os projetos sejam bons, já dificilmente vão livrar-se desse ónus.”