As reformas realizadas em Portugal para a prevenção e o combate a incêndios rurais ainda “não foram completamente concretizadas” e existem “persistentes vulnerabilidades”, apesar de terem sido realizadas “uma boa parte das medidas definidas”. Esta são algumas das principais conclusões de uma auditoria divulgada esta sexta-feira pelo Tribunal de Contas (TdC) sobre o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR).
Pensado após os grandes incêndios de 2017, o DECIR é um “instrumento de planeamento, organização, coordenação e comando operacional, que pretende assegurar em permanência a mobilização, prontidão, empenhamento e gestão de todos os meios disponíveis para a supressão e combate a incêndios rurais”. É elaborado anualmente pela Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) — e o de 2021 foi esta quarta-feira apresentado, com Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna (MAI), a anunciar que contará “com o maior número de sempre de meios envolvidos, em todas as fases de empenhamento”.
Incêndios. Dispositivo de combate tem este ano “maior número de sempre” de operacionais
A auditoria propunha-se a “examinar o grau de implementação de medidas de reforma”, bem como a “eficácia” do DECIR, depois de, em 2017 e 2018, Portugal ter sido, no conjunto de 19 países europeus, aquele com um maior número de incêndios rurais (sendo que em 2019 foi apenas superado por Espanha).
Maioria das medidas foram cumpridas, mas persistem “vulnerabilidades”
A maior parte medidas definidas no DECIR acabaram por ser realizadas com sucesso, mas persistem atrasos “nalgumas vertentes importantes”, mesmo tendo havido um “reforço nos meios humanos, terrestres” e uma “melhoria no respetivo planeamento e coordenação”, aponta a auditoria.
O Tribunal de Contas indica como uma das principais falhas do DECIR o facto de carecer uma “visão mais integrada e de melhorias de desempenho no terreno”, ou seja, de ser necessário um reforço da cobertura nacional no que diz respeito à “capacidade para o ataque precoce aos incêndios e sua consolidação com a intervenção do combate noturno”.
Segundo a auditoria, um determinante do sucesso do combate ao incêndio passa pela “rapidez da primeira intervenção”, estabelecida através do tempo de alerta e o tempo em que o primeiro meio chega ao teatro de operações. Nesse aspeto, o TdC denuncia, baseando-se num estudo de 2020 do Observatório Técnico Independente (OTI), que a “rapidez dos meios é muito variável no território nacional”, uma vez que está dependente do “pré-posicionamento de meios” e da distribuição dos bombeiros.
Na generalidade do território, os meios também chegam mais tarde durante o período noturno e são “muito pouco eficazes”. A auditoria dá conta de que o grande incêndio de Monchique, em 2018, “poderia ter sido efetivamente extinto durante a noite de dia e a madrugada do dia 4 de agosto”, sendo que “tal não sucedeu devido a inadequado desempenho de equipa no terreno”.
A “multiplicidade de sistemas”
Outra das críticas que a autoria menciona prende-se com a falta de “uniformização de conteúdos”. Os mecanismos nos quais o DECIR se divide são três: o primeiro é Sistema de Gestão de Operações (SGI) que ajuda a caracterizar “o tipo de ocorrência” que cada incêndio representa; o segundo é o Sistema de Apoio à Decisão Operacional (SADO), que avalia os riscos e previne emergências, sendo que também procede ao registo de todos os meios humanos, dos veículos e de aeronaves chamadas a participar em situação de emergência; e, por fim, o terceiro é o Sistema de Georreferenciação de Meios Operacionais (SIRESP-GL), que permite que haja uma “recolha automática da posição geográfica enviado por cada terminal-rádio”, sendo possível localizar, em tempo real, “a posição georreferenciada em cada rádio”.
Há ainda a plataforma GEO-MAI, que “integra mapas, dados socioeconómicos, vias rodoviárias e pontos de interesses geo-localizados”, o Sistema Nacional de Alertas e Avisos (SNNA), que serve para enviar SMS à população “sempre que for decretado um alerta especial”, e ainda, cumulativamente ao SIRESP, existem outras “estruturas de comando, controlo e coordenação dos meios aéreos”.
De acordo com o TdC, esta “multiplicidade de sistemas e plataformas de apoio à população civil” faz com que haja uma “dispersão da informação” e uma “falta de uniformização dos conteúdos”, que acaba por criar entraves a um funcionamento eficaz em rede e evita que se criem sinergias entre os diferentes mecanismos.
Em relação ao SIRESP, a auditoria salienta que “satisfaz atualmente as principais necessidade de comunicação de emergência”. Contudo, o TdC alerta para o término do contrato vigente a 30 de junho, antevendo-se “alterações no modelo tecnológico e de gestão que urge definir”, sendo que o MAI e a Altice, uma das empresas responsáveis pela rede de comunicações, reuniram-se esta terça-feira para discutir a renovação do contrato.
Falha de registo financeiro e na avaliação
Outra das falhas apontadas pela auditoria do Tribunal de Contas consiste no facto de não existir um “sistema de informação integrado que evidencie os recursos financeiros utilizados por todas as entidades envolvidas”.
Não há nenhum instrumento que determine quais são os recursos financeiros utilizados pelo DECIR, quer seja na “aplicação dos fundos em despesas”, quer no “funcionamento corrente”, quer “na aquisição de bens e serviços”. A auditoria não conseguiu averiguar os valores que cada sistema utilizou, não só pela inexistência de um sistema de informação centralizado, mas também por, certas vezes, esses dados não estarem disponíveis.
Assim, o TdC aconselha o Governo a colocar no Orçamento do Estado “um programa transversal para a prevenção e combate aos incêndios, desagregado, numa medida específica, com dotação apropriada, em capítulo próprio e transversal a todas as entidades intervenientes”.
Além do mais, não existe nenhum mecanismo eficaz que permita avaliar o sucesso do programa DECIR, cujos resultados poderiam ser utilizados de maneira a corrigir algumas fragilidades do instrumento. E, “para além de uma fraca institucionalização da função de avaliação” — que acaba por condicionar a “verdadeira análise de resultados do dispositivo” — “verificou-se ainda que as recomendações que são feitas por entidades externas não são sempre aceites”, revela a auditoria.
Os meios humanos precários e a existência de mais meios aéreos (mas com menos capacidade)
O TdC alerta ainda para “alguns aspetos negativos relativos aos meios humanos implicados no combate aos incêndios”, principalmente “a precariedade laboral dos agentes, a falta de recrutamento para lugares de comando operacional e a insuficiente formação e qualificação dos agentes”. Sendo um “aspeto chave” no cumprimento dos DECIR, as medidas relacionadas com os recursos humanos “apresentam uma execução de 50% e 70%”.
Contudo, a auditoria também revela que foi dada formação aos profissionais, em forma de workshops, simulacros e e-learning, de modo a aperfeiçoarem conhecimentos e a “ficarem dotados de maior competência para a prevenção e combate a incêndios”.
Os meios aéreos continuam de igual modo a ser um problema, embora tenha existido um reforço da disponibilização deste tipo de recurso. Considerados “extremamente importantes para atuar em conjunto com os recursos terrestres”, os dispositivos “passaram a estar disponíveis o ano interior com reforço nas alturas mais críticas”, ainda que se tenham verificado situações “de não demonstração prévia dos documentos de habilitação e certificação de pilotos e empresas”, de “avarias técnicas” e até da “interrupção ou cancelamento de missões”. A auditoria também revela que as entidades competentes têm sentido dificuldades na compra de meios aéreos.
Números são, no entanto, positivos
Apesar das fragilidades apontadas, a auditoria aponta como um indicador “positivo” o facto de a área ardida ter diminuído em 2019 e em 2020 face aos anos transatos. Porém, quando comparado com outros países da Europa, o número de incêndios continue a ser “elevado” em Portugal.
Além disso, o TdC assinala que as “situações que ocorrem em determinado ano não dependem apenas da eficácia do dispositivo de prevenção e combate existente, estando condicionadas por circunstâncias climáticas, meteorológicas e dos solos”, ainda que instrumentos como o DECIR, acabem por ter um papel importante na “melhoria na prontidão e combate aos incêndios”.
A auditoria frisa ainda a criação do Mecanismo de Proteção Civil da União Europeia (MPCUE) e a participação portuguesa é uma “forma mais rápida e eficaz” de responder às emergências, havendo uma coordenação e um maior auxílio às equipas de proteção civil dos Estados-membros.
MAI considera contributos da auditoria “inestimáveis”
Em resposta aos problemas identificados no DECIR, incluída no relatório da auditoria, Eduardo Cabrita sublinhou a importância destas observações, que classificou de “contributos inestimáveis para a otimização do dispositivo”.
O Ministério da Administração Interna lembrou o plano aprovado pelo Governo a 4 de março dedicado às florestas e que solicitou ao Parlamento uma “autorização legislativa para o estabelecimento de meios para o cumprimento dos deveres de prevenção da ocorrência de incêndios rurais” e também “mecanismos de responsabilização pelo incumprimento desses deveres”.
Sobre esta medida e outras (como uma aprovada a 22 de março pelo Governo que aprova a aquisição e locação de meios aéreos pelo Estado), o TdC toma “boa nota”, uma vez que “todas elas relevam de necessidades identificadas na auditoria” e “serão relevantes para a eficácia do DECIR”.