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Três semanas depois de Mehdi ter conhecido Henriqueta, recebeu um email da empresa que geria a logística da ZAD em Espanha. A resposta exigiu-lhe quatro palavras: “já está, chegou, basta”. No bar em Valência onde bebia um copo com o sócio, decidiu o que ia fazer ainda com o telemóvel na mão: um último teste à distribuição do produto através de Portugal. Se corresse bem, fazia as malas e voltava para Lisboa. Mas desta vez — com ênfase na redundância — seria de vez. Um ano e meio depois, o empresário marroquino chega a um café do Príncipe Real, em Lisboa, com o espanhol ainda cravado na língua, mas com um negócio que já é oficialmente português. O coração também: agora mora com o de Henriqueta.
Aos 36 anos, Mehdi Addag repete várias vezes que é um privilegiado. “Juro-te, por Deus”. E é assim que faz voar anualmente 32 toneladas de óleo de argão, colhido no sudoeste de Marrocos e agora analisado em laboratórios portugueses, para os Estados Unidos. Gere tudo na capital portuguesa. Com três anos de existência, a ZAD coordena cerca de 40% da produção e exportação mundial de óleo de argão a granel, 100% puro e orgânico (matéria prima amplamente utilizada na indústria de cosméticos) e devidamente certificado pela entidade reguladora da agricultura norte-americana (USDA). A faturação estimada para o primeiro ano da empresa em Portugal é de 3 milhões de euros, sendo que 98% é faturado de fora do país.
Mehdi é natural de Agadir, na costa atlântica do sul de Marrocos. Quando terminou o ensino secundário, saiu da cidade onde nasceu e cresceu para estudar Engenharia Industrial em Valência, Espanha, apesar de o sonho inicial ter no GPS as coordenadas dos EUA — as mesmas coordenadas que hoje recebem as 32 toneladas de óleo de argão. Aos 31 anos, veio passar férias a Lisboa pela primeira vez e desde então perdeu a conta às escapadinhas que foi fazendo à capital portuguesa. A última foi há mais de um ano e meio, três semanas antes de receber a mensagem da empresa de logística que lhe fez dizer adeus aos espanhóis. “E nem foi preciso listar os prós e os contras”, contou ao Observador. A ZAD tornou-se num amor três em um: família, sustentabilidade e Lisboa. Foi uma designer portuguesa que os uniu.
A paixão que levou a outra e a outra
Mehdi estava curioso com Portugal desde que estudou o império português na escola, em Agadir. Mas só aos 31 anos — já estava há mais de dez a viver em Espanha — é que veio passar férias a Lisboa pela primeira vez. O encanto consolidou-se à primeira vista sobre a cidade. Depois disso, regressou várias vezes (não sabe precisar quantas). “Sentia-me bastante confortável, tudo me parecia bonito de alguma forma”, conta, ainda que admitindo que nem sequer esperava vir a gostar tanto. “Percebi que era a versão fixe de Espanha”, sorri.
Na última visita que fez a Lisboa, antes de se mudar definitivamente, foi (a custo) a um jantar de aniversário em casa de uns amigos. Insistiram para que fosse divertir-se, porque o empresário passava o tempo todo a trabalhar, confessa com alguma vergonha. Cedeu à pressão e foi lá que conheceu Henriqueta, a designer portuguesa que hoje dá “muita elegância” ao que Mehdi anda a fazer. Palavras do próprio, ainda que tímidas.
“Na festa, conheci uma rapariga portuguesa, que tinha este espírito empreendedor. Respeito-a muito intelectualmente e isso sempre foi muito importante para mim. Falámos bastante, porque ela tinha um projeto no qual fiquei muito interessado — não do ponto de vista do negócio, mas da qualidade da ideia. E foi este intercâmbio intelectual…”, conta. A mudança de Mehdi para a capital podia ser puramente romântica, mas não. A verdade é que há muito que a capital portuguesa estava debaixo do radar do marroquino. Primeiro, pelo fascínio que sentia pela história e cultura. Depois, pela insatisfação que sentia com as operações da empresa em Espanha. E, por último, pelas vantagens que um negócio em Portugal lhe trazia. “Não há nada que possa faltar a Lisboa”, diz.
Recebeu a mensagem que o levou a fazer as malas de vez três dias depois de assinar contrato com a empresa americana que é responsável pela exportação das 32 toneladas de óleo de argão. “Não gostei absolutamente nada”, disse. O email veio acelerar a vontade que já existia. “Acho que me queria justificar quando o fizesse, como se estivesse à espera de um sinal ou algo assim.” Antes de se mudar de vez para Lisboa, Mehdi fez três ou quatro testes às operações, movendo a matéria-prima em líquido de Marrocos para Portugal: passando o óleo extraído pela alfândega, tratando-o em laboratórios portugueses e enchendo as garrafas que depois vendia aos clientes. Agora que a empresa portuguesa já foi lançada, as operações da ZAD são efetivamente geridas a partir de Lisboa.
“Pouco a pouco, vamos começar a faturar o máximo possível através de Portugal, porque enviar produtos para os EUA a partir de Marrocos não é o mesmo se o fizermos passando por Portugal. A mercadoria que não precisa de ser tratada aqui podíamos mandá-la diretamente. Mas como queremos ter o controlo sobre tudo o que se está a fazer, optámos por não comercializar nada a partir de Marrocos. É de Portugal que vai para o mundo”, conta Mehdi. A ZAD tem clientes na indústria alimentar (o óleo de argão começou por ser utilizado na cozinha) e na indústria dos cosméticos distribuídos pelos quatro continentes.
Foi já em Lisboa que o empresário lançou a linha de produtos que é dirigida ao consumidor final, com o design de Henriqueta, tratamento em laboratórios portugueses e acabamentos feitos em parceria com outras empresas nacionais. “Quero que a ZAD comece a ganhar uma tradição portuguesa“, disse ao Observador, ainda que lamente a falta de informação que existe sobre o óleo de argão. Mas também não a quer em demasia. Mehdi reconhece que o óleo de argão se tornou numa moda e que não quer que isso aconteça com a gama orgânica da ZAD. Para montar a empresa portuguesa, o empresário investiu 120 mil euros.
Um ano e meio depois, diz que se sente “muito privilegiado”. Conta que a família veio passar férias a Lisboa no verão e que o facto de terem visto a cidade como ele a vê tocou-lhe ainda mais. Quando decidiu mudar-se, diz que não contabilizou nem os prós nem os contras. “Às vezes, as pessoas têm de confiar no instinto, no sentido em que pensam ‘eu quero fazer isto bem, sou honrado sobre o que penso, sou íntegro e vou acreditar mais no que penso que é correto e vou fazê-lo'”, conta. Daqui a dez anos, admite que gostava que a ZAD fosse vista como uma empresa portuguesa, apesar das raízes marroquinas e de depender de um fruto que não pode sequer ser cultivado.
1120 mulheres berberes que recebem 5% das vendas
A história do empresário marroquino que troca Espanha por Portugal para exportar óleo de argão para os EUA e lançar uma marca própria dirigida ao consumidor é suportada por 1120 mulheres, organizadas em 25 cooperativas de seis províncias da Arganerie: Agadir Ida Outonan, Tiznit, Taroudant, Chtouka Ait Baha e Essaouina. São elas as mestres da produção. “Procurava um produto que representasse algo verdadeiramente especial, queria algo que não fosse manipulado, que fosse tocado o menos possível pelo ser humano”, explica Mehdi. Foi assim que chegou ao fruto das argânias.
“Só quando comecei a estudar o argão é que percebi o valor real que tem, que a árvore não pode ser plantada em nenhuma outra parte do mundo, só no sudoeste de Marrocos. E que, por isso, não se pode acelerar o processo de cultivo de maneira nenhuma. É como se de alguma forma a natureza te dá o que dá e diz assim: ‘não questiones'”, conta. Rico em vitaminas A, D e E, antioxidantes e níveis elevados de ácidos graxos essenciais — as gorduras boas que o corpo não consegue produzir — tornou-se num dos ingredientes mais procurados no mundo da cosmética para tratamentos de pele e do cabelo. As características que lhe estão associadas incluem a regeneração celular ou a melhoria do acne, cicatrizes e manchas.
5 razões para usar óleo de argão na pele (e não só no cabelo)
A missão de sustentabilidade (que nasceu ainda estava na universidade) a que Mehdi se propõe estava justificada se ficássemos por aqui, mas o empresário juntou-lhe mais uma: o impacto social e económico que a produção e exploração do argão tem nas comunidades berberes que moram naquela zona de Marrocos. “O óleo de argão tem um grande valor para a sociedade que vive lá. Tem um grande valor a nível ecológico, por exemplo, porque limita a desertificação. Como cresce unicamente em zonas muito áridas ajuda bastante. E permite a algumas mulheres terem um sustento: não há ninguém que saiba fazer isto melhor do que estas mulheres”, explica o engenheiro de 36 anos.
A colheita do argão é feita entre julho e setembro pelas mulheres das comunidades berberes (povos nómadas do Norte de África, que falam o dialeto berbere e viviam em tribos no deserto do Saara). São o único povo que tem direito a explorar os frutos das argânias, afirma. “Cada litro leva 10 horas de trabalho e não há nenhuma máquina que consiga identificar melhor se as amêndoas são boas ou não. São elas. E é este know-how desta mulher de 60 e de 70 anos. que passa o seu saber às filhas, que lhes permite ser independentes”, explica Mehdi.
Com a criação da empresa portuguesa, o óleo passa a ser testado em laboratórios portugueses. Segue depois para empresas nos quatro continentes, sendo que o maior mercado da empresa são os EUA. No final das contas anuais, há 5% das vendas que revertem para as mulheres que trabalham com a ZAD e outros 5% para a replantação das árvores. Para desenvolver o óleo, o empresário conta ainda com o apoio de várias organizações marroquinas.
Como a ZAD sai de Marrocos, vai para Espanha e chega aos EUA
Quando Mehdi chegou à universidade espanhola para estudar engenharia industrial, começou a gostar de outros temas. O interesse pela sustentabilidade ambiental levou-o a desenvolver um projeto sobre gestão de matérias-primas no Instituto de Ideias de Valência. “Pensava nestas coisas, gostava de sistemas complexos, queria torná-los o mais simples possível e havia muita matéria-prima que estava a perder-se estupidamente. Fiz um estudo sobre tudo o que se consome na Europa e peguei no exemplo da reciclagem. Percebi que, se conseguirmos racionar o que temos, conseguimos materiais espetaculares . Como sociedade, só precisamos de uma boa gestão destes materiais”, explicou.
A partir daí, Mehdi quis encontrar primeiro uma solução para o que já existia. Foi assim que lançou a plataforma online dedicada à sustentabilidade de onde nasceu a ZAD: porque percebeu que tinha de oferecer uma alternativa sustentável às pessoas. Focou-se na cosmética: “Comecei a ler muitos dados sobre os efeitos dos químicos no corpo humano e percebi que a maioria destes químicos não serve para nada”. Dentro da plataforma, lançou ainda uma loja online dedicada a produtos sustentáveis, mas faltava oferecer às pessoas “uma alternativa válida”: uma gama de produtos puros.
“Procurávamos um produto que representasse algo verdadeiramente especial, que não tivesse manipulação humana. Qualquer produto suscetível de ser cultivado, se as pessoas gostarem dele, torna-se um problema no futuro”, conta. O óleo de argão resolvia esta preocupação: não pode ser cultivado e só nasce de forma selvagem. Encontrado o produto, as mulheres e o modelo de negócio, Mehdi começou a exploração do que viria a ser a ZAD. Mas as leis espanholas que visam proteger o óleo de oliva foram-lhe dificultando a vida: pelas barreiras à entrada nas alfândegas e na comercialização do óleo de argão como óleo alimentar. Foi aí que a empresa começou a fazer testes à operação através de Portugal.
Abriu a empresa em 2014, “na crise”. E apontou para o mercado norte-americano, porque a indústria cosmética estava ávida de óleo de argão. Foi certeiro. “Quando os americanos querem comprar óleo de argão, querem comprar o melhor óleo que existe e isto nós podíamos cumprir perfeitamente. Focámo-nos nos EUA e começámos a ter como alvo as empresas que já compravam este óleo, porque elas já sabiam como era o óleo que recebiam”, conta. Contactaram produtores de cremes primeiro e depois os centros que vendem matéria-prima nos EUA para as empresas de cosméticos.
“Uma coisa levou a outra e agarrámos um contrato bastante interessante com uma empresa, com quem assinámos uma parceria durante cinco anos. Têm a possibilidade de ter os nosso produtos em exclusivo e abriram-nos o mercado para as empresas que compram matéria-prima em grande quantidade”, acrescenta. Quando Mehdi se despede do Observador, no mesmo café do Príncipe Real, continua a ter o mesmo sotaque espanhol cerrado num sorriso que já é português. E que não lhe saiu do rosto. Do princípio ao fim da conversa.