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O discurso que utiliza (quando se dirige ao país ou ao estrangeiro) é muitas vezes provocatório. Foi-o sempre, antes de ser eleito (no Twitter ou em comícios) e após a eleição. Mas Trump é descrito, sobretudo, como um negociador. E alguém que não dá ponto sem nó.
Quando é crítico da China, quando admite não sancionar a Rússia, quando se fala do muro a erguer na fronteira com o México, quando vê na NATO uma organização “obsoleta”, o que Trump está a fazer não é provocar por provocar; é negociar. É isso que concluem os especialistas em economia e política norte-americana a quem o Observador pediu que analisassem como será o mandato do novo presidente.
A agenda política de Trump propõe muito (olhando aos próximos cem dias, há tratados internacionais para renegociar, há empregos para criar e impostos para baixar, há medidas de Obama para simplesmente “rasgar”) e nem tudo se cumprirá durante o mandato, acreditam estes especialistas. Não que a oposição democrata ou a imprensa o impeçam de cumprir. O problema para Trump, garantem, está no interior do próprio partido Republicano. É certo que os republicanos têm a maioria no Senado e na Câmara dos Representantes. E essa é uma vantagem que o antecessor nunca teve. Mas não é menos verdade que Trump terá de agradar a gregos e troianos, ou seja, a republicanos nacionalistas (e, até, populistas) — como o seu conselheiro Stephen Bannon — e outros mais moderados — como Marco Rubio, seu opositor nas primárias.
Se não o conseguir fazer, há até quem preveja um impeachment a Trump. Mas este é somente um “se” entre os tantos “ses” que a presidência deste levanta. Por isso, analisemos algumas das medidas políticas que propõe, algumas das declarações que fez e alguns dos desafios que terá desta sexta-feira em diante.
ECONOMIA. Mais empregos, menos impostos e os mercados a pairar sobre Trump
Falar de Donald Trump é falar de negócios. Não se lhe conheceu outra profissão antes da presidência que não a de negociador. Mas se é de negócios (e de economia, portanto) que se fala, é importante lembrar que os mercados financeiros estão “de olho” na Casa Branca. E muitas das políticas que Trump quer implementar têm uma relação direta com estes. A “relação”, essa, até começou por ser de desconfiança face ao novo presidente. É isso que explica Carim Habib, diretor da Dolat Capital, empresa que investe em dívida pública norte-americana e avalia a estabilidade política das nações.
“Antes mesmo de se conheceram os resultados finais das eleições, a primeira reação foi de choque, assim que se percebeu que Trump tinha vencido na Florida e na Carolina do Norte. Quando se conheceram os resultados dos estados do Midwest, a reação voltou a ser muito negativa e os futuros do Dow Jones caíram. Os ativos norte-americanos desvalorizaram-se fortemente e o dólar também se desvalorizou”, lembra Habib.
A vitória de Trump foi uma surpresa absoluta e o mercado não contava com ela. Os primeiros momentos após a vitória foram de “grande incerteza”. E mantiveram-se por algumas horas, até que Hillary Clinton concedeu a vitória a Donald Trump. Carim Habib explica porquê: “Durante algum tempo, e enquanto não se sabia se a vitória era certa ou não, houve instabilidade e pairou no ar o fantasma das eleições de 2000, quando foi necessária a recontagem de votos no estado da Florida e o vencedor só foi declarado vários dias depois. Mas após a surpresa inicial – que até durou pouco, cerca de um dia e meio –, os mercados reagiram muito bem à eleição de Trump. Tudo o que eram ações que tivessem a ver com o plano fiscal, ações menos tecnológicas e mais industriais, valorizaram.”
Mas analisemos as medidas económicas de Trump para o imediato. Chegado à Casa Branca, há promessas eleitorais a cumprir. Algumas necessitam de ser negociadas dentro de portas, no Congresso, e há também as que dependem de outros países, como é o caso dos tratados comerciais que o novo presidente norte-americano quer rever. Entre as medidas mais propaladas estão a descida dos impostos e um investimento em infraestruturas. Ambas necessitarão da aprovação do Congresso. E ambas contribuirão diretamente para outra promessa eleitoral de Donald Trump: a criação de empregos no país.
O plano de Trump é “ambicioso”, lembra Carim Habib, mas este vê-o como executável. E positivo para a economia norte-americana. “A redução de impostos é fundamental na política de Trump. Há uma redução significativa de 15% para as empresas. Depois, haverá uma redução igualmente significativa nos impostos que são individuais. E, por fim, deixará de haver tributação ao repatriamento de capitais”, explica o diretor da Dolat Capital. Habib lembra que a última das reduções pode ser bem recebida, por exemplo, pela indústria da tecnologia: “Empresas como a Google, a Amazon ou Microsoft, que têm parte do excedente de tesouraria em ‘cash’ fora dos Estados Unidos, até aqui tinham um impacto fiscal, uma espécie de ‘portagem’, se quisessem repatriar o dinheiro. Com Trump deixarão de ter”.
Outro plano de Trump para fazer crescer a economia norte-americana é o das infraestruturas. “Um plano expansionista e de incentivo”, como descreve Carim Habib. E explica: “Este investimento poderá chegar ao trilião de dólares. Tal como o plano dos impostos, também este plano terá impacto nas empresas – desde logo nas de construção e de materiais — e, por conseguinte, na criação de emprego”.
A propósito da criação de emprego, o diretor da Dolat Capital lembra que os Estados Unidos estão bem e recomendam-se nessa área. “A economia norte-americana está numa fase de pleno emprego. A taxa de desemprego está nesta altura abaixo dos 5% – e isso deve-se às políticas de Obama e do próprio FED, o banco central dos Estados Unidos”, explica. No discurso de Trump sobre emprego Carim Habib vê, portanto, uma promessa algo populista e que terá um impacto residual. “O que eu acho que Trump pretende, mais do que baixar o desemprego, é satisfazer o seu eleitorado. As empresas que ele tenta influenciar são empresas de estados que o elegeram. Sobretudo da zona do Midwest.”
POLÍTICA EXTERNA. A aliada Rússia, a adversária China e a “obsoleta” NATO
Antes mesmo de ser eleito presidente, Donald Trump fez adversários e aliados. Ele próprio os definiu como tal com as críticas que ia tecendo, ora no Twitter, ora em comícios. E o país que mais vezes veio à baila com Trump foi a Rússia. Desde logo, por causa da alegada interferência de piratas informáticos russos (a mando de Putin) nas eleições norte-americanas, o que levaria mesmo Barack Obama a decretar a expulsão de 35 diplomatas russos dos Estados Unidos.
Trump acabaria por admitir, na primeira conferência de imprensa que deu como presidente-eleito, que a Rússia poderá ter realmente tentado interferir na eleição. Mas nunca escondeu que quer reaproximar os dois países. E as sanções de Obama (as relacionadas com a pirataria informática nas eleições, mas igualmente as impostas após a anexação da Crimeia pela Rússia) podem ser levantadas em breve.
Richard Benedetto, ex-jornalista e correspondente na Casa Branca de 1984 a 2004, não vê no recuo de Trump um “agradecimento” a Putin. E explica: “Ele é ‘rápido no gatilho’ a falar, mas não é tolo nenhum. Não vai levantar as sanções como agradecimento por a Rússia ter interferido nas eleições. Ele até pode estar agradecido, mas não acredito que ele sinta que tem uma dívida para com Putin. Levantar as sanções sobre a Rússia poderá, isso sim, ser o primeiro passo para chegar acordos — e retirar deles um benefício. Trump é um homem de negócios e sabe como fazê-lo”.
Acordos que poderão, explica Benedetto, estar relacionados com o conflito na Síria. É que Bashar al-Assad é próximo de Moscovo. “Trump sabe que Putin é um líder astuto. E sabe que há vantagens e desvantagens em ter boas relações com a Rússia. A vantagem é, desde logo, a segurança internacional. Obama, a meu ver, foi enganado quando pensou que poderia ser aliado da Rússia no conflito sírio. Putin passou mais tempo a atacar os rebeldes sírios do que o Estado Islâmico. E Trump criticou isso. Agora, se reatar as relações com a Rússia, ele tem aqui a hipótese de fazer mais e melhor”, lembra o ex-jornalista político.
Michael Kofman, especialista norte-americano na política externa da Rússia e membro do Wilson Center, em Washington, concorda com Benedetto quanto à retirada das sanções à Rússia por parte de Donald Trump. “Suspeito que a retirada das sanções esteja em cima da mesa, sim. E acredito que Trump quererá rever as relações dos Estados Unidos com a Rússia, acabando com o clima de confrontação a que temos assistido. As sanções são tóxicas para o relacionamento político, mas igualmente para os negócios. E Trump quererá voltar a ter negócios com a Rússia”, explica.
No entanto, e contrário do ex-jornalista, Kofman discorda de que tais “negócios” possam estar relacionados com o conflito sírio e, em última análise, com o fim do Estado Islâmico (e essa é uma prioridade assumida por Trump) se o conflito chegar, também ele, ao fim. “A Síria tem neste momento dois conflitos. E a Rússia participa num deles. Se falarmos da luta contra o Estado Islâmico, os Estados Unidos até podem beneficiar de uma aproximação à Rússia. É uma oportunidade de cooperar contra o terrorismo. Acredito que o fim do conflito na Síria vai depender da cooperação entre os Estados Unidos e a Rússia. Quanto ao fim do Estado Islâmico, parece-me ser algo demasiado ambicioso”, lembra.
Miguel Monjardino, professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, acredita que Trump negoceie com Putin. “Para Trump e muitos dos seus apoiantes, a Rússia de Putin é um aliado civilizacional – pelo papel da religião, pelo conservadorismo – num mundo que se encontra em forte mudança cultural.” Mas a Casa Branca não teme o Kremlin. “O adversário de Trump é a China e nunca a Rússia”, explica, questinando depois: “Eu diria que este Presidente – tal como Barack Obama, tal como George W. Bush antes dele – representa um dos dilemas da América, que é como gerir a China. Quais são as regras do comércio internacional e qual é o papel do dólar e da moeda chinesa na gestão desse comércio? Será que a América consegue manter a primazia na Ásia-Pacifico? Isso é algo que Obama queria e que Trump quer. A questão é: como é que isso vai ser feito? Não sabemos.”
Carim Habib sabe. Ou desconfia das intenções de Trump. Quando o agora Presidente acusa Pequim de desvalorizar a moeda chinesa de forma artificial e, com isso, prejudicar a economia norte-americana, o que Trump quer é negociar acordos comerciais. “Quanto à China, há várias visões sobre qual o posicionamento de Trump. Uns dizem que ele está a desdenhar agora para comprar mais barato a seguir, digamos assim. Está a abrir uma negociação ao acordo comercial que existe com a China. E está a provocar a China. Ele sabe o que está a fazer. Sabe que no final do ano haverá um congresso do Partido Comunista Chinês e poderá haver uma mudança na liderança da China”, explica o diretor da Dolat Capital.
Mas não é apenas Trump quem tece críticas a Pequim. Do secretário de Estado Rex Tillerson, a Peter Navarro, diretor do Conselho Nacional de Comércio, passando por Robert Lighthizer, representante do Comércio, todos o fizeram. Então, quem negociará com a China se esta o aceitar fazer? O novo secretario do Comércio, Wilbur Ross. “Ross é um homem experiente, com quase 80 anos, e um especialista em mercados financeiros. É muito experimentado no comércio internacional. Mas atenção: a China também dispõe de instrumentos para dissuadir Trump. Não nos podemos esquecer que a China é um dos maiores investidores em dívida pública dos Estados Unidos”, alerta.
À parte da China ou da própria Rússia, o novo Presidente dos Estados Unidos resolveu identificar outro “alvo” negocial: a NATO. Numa recente entrevista ao Bild e ao The Times, Donald Trump descreveu a organização como “obsoleta”. Michael Kofman explica as críticas de Trump. “A verdade é que parte da organização despende pouco ou nada em defesa e, essencialmente, usa-se livremente do que os Estados Unidos investem – Portugal, por exemplo, investe somente 1.38% do seu PIB, quando deveria chegar a 2%. Quando Trump falou em ‘obsoleta’, referia-se a isso.” Richard Benedetto, ex-correspondente na Casa Branca, é da mesma opinião. “As declarações, tal como outras que fez, podem servir para começar as negociações sobre a reestruturação da NATO. Ao usar a expressão ‘obsoleta’, ele não quer necessariamente dizer que pretende que a NATO desapareça.”
Mas Benedetto lê outra mensagem nas entrelinhas do que Trump afirmou: “Ele também referiu que o propósito inicial da NATO era defender a Europa da invasão soviética. E, claramente, essa ameaça não é hoje tão grande como foi. O que ele talvez queira também é que a NATO venha a oferecer proteção a Israel – algo que não acontece devido à antipatia europeia para com aquele estado judaico.” Lembre-se que, recentemente, Donald Trump assumiu que pretende mudar a embaixada norte-americana em Israel de Telavive para Jerusalém, algo que não é bem aceite pela Palestina. O que também não é bem aceite – e pode agudizar o conflito israelo-árabe – é a escolha de Trump para novo embaixador: David Friedman, um defensor da expansão dos colonatos.
POLÍTICA INTERNA. O muro e o “trapézio” (sem rede) que pode ser o partido Republicano
Mais do que falar do muro que Donald Trump assumiu erguer caso vencesse as eleições (é necessária a aprovação do Congresso e a “fatura” pode chegar aos 25 mil milhões de euros), falar do México e de Trump é falar da renegociação do NAFTA, o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio. Também essa medida vai necessitar da aprovação do Congresso de maioria republicana, mas poderá vir a contribuir no imediato para a criação de emprego. Como? Fazendo regressar a indústria que se deslocalizou para o México.
É o que explica Carim Habib, o diretor da Dolat Capital. “O México cresceu muito economicamente nos últimos anos. E cresceu muito suportado pelo NAFTA. O México está muito interligado à economia norte-americana e há muitas empresas que produzem no México e vendem nos Estados Unidos. Com muro ou sem muro, só o facto de Trump querer negociar o NAFTA bilateralmente com o México e o Canadá, isso é algo que deixa o México vulnerável – mais de 80% das exportações mexicanas são para os Estados Unidos. O facto de muitas empresas norte-americanas – por exemplo, as da indústria automóvel – se terem deslocalizado para o México na última década e meia, isso trouxe naturalmente desemprego. Se a indústria voltar, criará emprego nos Estados Unidos.”
Miguel Monjardino é da mesma opinião que Carim Habib. “Ele [Donald Trump] quer atrair empresas e criar empregos. Ele quer que as empresas automóveis, por exemplo, repatriem parte da sua produção para os Estados Unidos. Uma parte dessa cadeia de logística está onde? No México.” Quanto ao muro, Monjardino vê nele uma medida para “ser vista” e não uma medida útil à economia. Mas como assim, “ser vista”? “Ao criticar o México, Trump está a defender uma classe trabalhadora e branca. Foi essa classe que votou nele. Não interessa quem vai ou não vai pagar o muro. Trump afirmou-se com base em duas ou três coisas simples. O muro é uma delas. E o que é que o muro representa? É o símbolo de um presidente que ambiciona proteger a América. Trump sabe que não vai poder cumprir a maior parte das promessas que fez. Muitas vão cair. Mas as que têm um valor simbólico, Trump não deixará que caiam. O muro é uma delas…”
Talvez não cumpra tudo, como Monjardino antevê. Mas o ex-jornalista Richard Benedetto acredita que a administração de Trump não será apenas fogo de vista. “Eu acredito que Trump vá mover-se rapidamente para tentar concretizar muitas das coisas que prometeu durante a campanha eleitoral: a redução dos impostos, substituir o Obamacare, construir o muro na fronteira com o México, dar início a um grande programa de construção de infraestruturas ou renegociar o NAFTA.” Mas terá ele sucesso? “O seu sucesso vai estar limitado pela forte oposição dos democratas e dos próprios media – que estão longe de estar do lado dele. Por outras palavras, ele vai precisar de todas as suas qualidades de negociador para concretizar o que quer”, explica Benedetto, lembrando que o problema maior para Trump… é o próprio Trump: “O que o pode dificultar é também a capacidade que tem de não ter a capacidade de ter a opinião pública do seu lado”.
Miguel Monjardino é igualmente da opinião de que Donald Trump não terá vida fácil ao longo do mandato. Não tanto por culpa própria, mas sim por causa do partido Republicano. “Trump vai ter que gerir uma coligação. E a dúvida que tenho é como é que vai ser possível equilibrar republicanos internacionalistas, como Marco Rubio ou John McCain, e nacionalistas mais populistas, como Stephen Bannon. Vai haver muita tensão numa fase inicial da administração. E isso vai refletir-se em termos de legislação proposta e aprovada no Congresso”, explica o professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica.
Trump precisará do Congresso, por exemplo, para eliminar o Obamacare, o programa de saúde criado pelo antecessor na Casa Branca. O presidente-eleito (que garante ter uma alternativa “muito mais barata”) e os congressistas republicanos ainda negoceiam a melhor alternativa. Mas esta, aconteça o que acontecer, terá custos. Desde logo, na sociedade, pois a revogação vai deixar quase 20 milhões de norte-americanos fora do sistema de saúde. O outro custo é nas empresas que fazem negócio com o Obamacare. “O que Trump quer fazer é ‘repeal and replace’, ou seja, revogar e reverter o Obamacare. A intenção é fazer com que os custos que o Estado tem com o Obamacare sejam mais baixos. Naturalmente que isto prejudicará, por exemplo, as indústrias farmacêutica e da saúde. A ser implementado, poderá ter um impacto muito negativo nesse setor económico”, lembra Carim Habib.
O diretor da Dolat Capital acredita, no entanto, que Trump se soube “rodear de uma equipa forte em áreas-chave, com pessoas experientes e que vêm do setor privado” , mas lembra igualmente que tal equipa pode fazer da estadia de Trump na Casa Branca uma estadia curta. “A questão para um milhão de dólares é se a visão do gabinete e a visão de Trump vão ser a mesma. Ou seja, se haverá consistência política. Se o secretário de Estado ou o da Defesa vão ou não ter a mesma visão política do presidente. Numa perspetiva de médio-prazo, considero que Trump pode estar sujeito a conflitos de interesse. E há o risco de vir a sofrer um ‘impeachment’ ao longo do mandato. Não excluiria isso.”