– Gostava de ir fazer a voz, se não te importares.
– Está um bocadinho ‘picada’.
– Estou completamente ‘picada’ e cheia de nervos…
– Não seria normal se não estivesse.
– Não, porque eu não sei como está a voz. Frio. Uma diferença de temperatura muito grande.
– Vai ser incrível, Simone.
– Se tu estás esperançado, está bem…
– Não é esperançado, é com certeza.
– Está bem, meu querido.
Foi numa conversa com o assistente de encenação e também ator, Salvador Nery, que Simone de Oliveira deu voz aos receios que a assombram antes de cada espetáculo. “Simone O Musical” teve estreia no Porto na sexta-feira à noite e tal como em todas as sessões anteriores, a cantora de 79 anos – a celebrar 60 anos de carreira – continua com o nervoso miudinho de que algo pode não correr bem ou que o público se sinta defraudado.
“Primeiro de tudo, é o Porto. E o Porto ama ou detesta”, diz Simone ao Observador.
Na primeira vez que a produção do espetáculo, juntamente com o encenador e autor do texto Tiago Torres da Silva, lhe disseram que o Coliseu era o próximo ponto de paragem, Simone disse: “Vocês enlouqueceram todos. Porque o Coliseu tem dois mil e não sei quantos lugares”. A curiosidade e o sucesso na capital mostraram que também os portuenses queriam muito ver Simone em palco, a ponto de a produção criar uma terceira sessão no Porto, para juntar às duas inicialmente pensadas. No sábado, “Simone O Musical” subiu a palco às 16h30 e às 21h30.
Mas nem isto acalmou os nervos. “A responsabilidade é muito grande. Pode ser perdoável numa pessoa que tenha menos anos de profissão. Não é perdoável numa pessoa que tem 60 anos disto”, afirma Simone de Oliveira.
“Fazemos a equalização com o público a chegar?”
Às 15h de sexta-feira, já eram várias as vozes que aqueciam no ensaio de som, dirigido pelo diretor musical da peça, Renato Júnior. O elenco composto por Simone, Maria João Abreu, José Raposo, Sissi Martins, FF, Soraia Tavares, Marta Andrino, Pedro Pernas, Ruben Madureira e Salvador Nery tentavam à vez, já em cima do palco, perceber como deveriam aumentar ou diminuir o volume face à acústica do Coliseu. Por detrás de uma parede branca improvisada, também os músicos preparavam os ritmos e as melodias e acompanhavam os atores.
“Estou com efeito em palco”, diziam alguns dos atores, ainda num processo de adaptação ao Coliseu. “Fazemos a equalização com o público a chegar?”, perguntavam. Fora dos termos técnicos do som ou da iluminação, um musical exige uma preparação diferente daquela que se faz para uma peça de teatro. Além das falas e das mudanças de cenário, há canções e coreografias.
Para interpretar uma das cenas da chegada de Simone de Oliveira à estação de comboios de Santa Apolónia, depois do sucesso alcançado no Festival da Eurovisão em 1969 com a interpretação da “Desfolhada Portuguesa”, vários atores tiveram-se de se juntar numa coreografia e reviver o caos sentido pelos admiradores da cantora portuguesa naquele dia. “Vocês lá [em Lisboa] estavam mais juntos desse lado”, avisa o coreógrafo Paulo Jesus. Uma nova casa de espetáculos exige adaptações.
[a chegada a Lisboa de Simone de Oliveira, depois da Eurovisão]
https://www.youtube.com/watch?v=6dowxJqDcsc
Por entre a iluminação baixa, Salvador Nery, assistente de encenação, faz as marcações dos lugares em palco com fita-cola e transporta acessórios de um lado para o outro: cadeiras, urso de peluche, cadeirão. Para não se perder ou tropeçar no caminho, usava uma fita com uma pequena lanterna no cimo da cabeça. “Onde está a mala dos adereços?”, perguntava, já junto aos camarins.
É também fora do palco que se veem alguns dos vestidos emblemáticos usados por Simone de Oliveira em momentos marcantes da sua carreira. A réplica do vestido verde, usado no Festival da Eurovisão em Madrid no ano de 1969, é um deles. “É uma responsabilidade muito grande porque as pessoas viram muitas vezes esse momento”, confessa Sissi Martins ao Observador. A atriz interpreta Simone de Oliveira, dos 20 aos 33 anos, e depois passa o testemunho no final do primeiro ato a Maria João Abreu, que interpreta a cantora a partir dos 50 anos.
Os figurinos idealizados pelo designer Dino Alves têm avivado muitas memórias e não apenas as do público. “A senhora que me estava a fazer a bainha disse-me: ‘As voltas que o mundo dá. Eu estou a fazer esta bainha e fui proibida pelos meus pais de ouvir esta mulher [Simone] dizer: ‘Quem faz um filho, fá-lo por gosto’. Aqui estou, anos mais tarde, a fazer o vestido verde’”, conta Sissi.
[“Desfolhada Portuguesa” em 1969]
Embora Simone tivesse posto à disposição o vestido original, foi decidido que uma réplica seria uma melhor solução para o musical. “Já que andamos sempre às correrias”, diz.
Para Sissi Martins, “Simone O Musical” foi um desafio acrescido já que será a primeira vez em Portugal que a biografada está também a interpretar. “Eu tento pôr tudo o que absorvi daquela pessoa e dentro das minhas possibilidades e capacidades pessoais tento transmitir o que ela transmitiu às pessoas naquela altura”, explica. Para lá disso, a atriz tem noção de que o público vai estabelecer comparações entre ela e a “verdadeira” Simone de Oliveira, seja nos gestos, no timbre ou na fisionomia.
Ter Simone de Oliveira em palco é uma pequena lembrança de que o elenco não pode vacilar perante um espetáculo que é também uma história de vida. “Algumas vezes, a pessoa está a brincar, está mais cansada ou não está concentrada e de repente ela [Simone] está atenta. Está a emocionar-se. É a vida dela e nós às vezes esquecemo-nos que não estamos a fazer só uma peça de teatro”, esclarece Sissi.
Se as emoções falam mais alto quando vê alguém a fazer de si própria, Simone diz ter tentado gerir o coração com tranquilidade. “Houve alguns ensaios mais emocionais. As pessoas que fazem a minha figura quer aos 25 e aos 50 anos diziam nos primeiros ensaios: ‘Eu à frente da Simone não consigo fazer isto’. E eu ia para a sala ao lado”, conta.
É nesta reserva que Simone se refugia, seja para descansar ou para acalmar os nervos. “Posso entrar? Só queria cumprimentá-la”, dizem alguns atores do elenco quando chegam aos camarins.
“A mulher que finca os pés no chão”
Pelos sapatos espalhados pelos corredores, as roupas prontas a vestir, os ferros de engomar prontos a entrar em ação nos camarins, Tiago Torres da Silva absorve tudo o que se passa no ensaio de som. Caminha por alguns dos lugares do Coliseu, como se estivesse a conhecer a casa que mais logo receberá e aplaudirá efusivamente o musical que escreve e encenou.
Foi ele, juntamente com Renato Júnior, que após ter colaborado com Simone de Oliveira para o Festival da Canção de 2015 com a interpretação de “À Espera das Canções”, lançou o desafio à cantora de fazer um musical sobre a sua própria vida. A resposta foi um imediato “não”. Passaram-se alguns dias e Simone recuou na resposta. “Pensava que não tinha interesse para o público e que era uma exposição muito grande”, explica o encenador.
[No festival da Canção em 2015:]
Tiago Torres da Silva explica que todas as “Simones” que estão em palco — porque “ela tem uma vida camaleónica” — foi ele que as escolheu. Todo o elenco esteve diretamente envolvido na encenação, mas na escrita do texto ninguém interferiu. Nem mesmo Simone de Oliveira. A atriz apenas ficou com dúvidas numa das frases do espetáculo, quando a ouviu pela primeira vez numa fala: “Os meus filhos foram registados com pai e mãe incógnitos”.
Os momentos mais marcantes da carreira de Simone estão presentes no musical, no entanto as histórias pessoais não ficam de fora. Desde a educação dos filhos enquanto mãe solteira – ficou grávida aos 19 anos –, as vozes mais críticas durante a ditadura face às letras das canções, a perda de voz durante três anos, os problemas oncológicos e as relações amorosas conturbadas, vários pormenores estão expostos. Outros ficam “nos jardins secretos”, como Simone descreve. “Porque todos os temos”, diz ao Observador.
“São coisas que poderiam tê-la deitado abaixo, mas não. Tornaram-na mais forte, mais naquilo que nós vemos da Simone: esta mulher que finca os pés no chão, acende o seu cigarro, dá um gole no whisky e segue o seu caminho”, diz Tiago Torres da Silva. Para o encenador, este não será um espetáculo de homenagem, mas sim “um espetáculo de amor à Simone”. No entanto, adverte: “Não interessa muito as cusquices sobre a vida das pessoas. Eu sei que há pessoas que vêm à procura disso, mas então não é comigo”.
Ao Observador, Simone afirma que nunca pensou que se estaria a expor em demasia com o musical: “Não há aqui nenhuma mentira, não se escamoteou nada, mas sei que algumas pessoas ficam um bocadinho espantadas”. “Há ocasiões em que é doloroso e eu não me posso deixar ir atrás disso”, acrescenta, quando se fala das saudades de alguns momentos. Alguns deles pertencem, por exemplo, à relação que teve com o ator e encenador Alberto Varela Silva, interpretado por José Raposo, e de quem é viúva desde 1995.
Depois do Porto, o musical vai passar pelo Casino da Figueira da Foz a 17, 18 e 19 de novembro. O próximo ano traz mais sessões em Setúbal, Faro e Lisboa.