O dia começou quente, mas só em termos meteorológicos: politicamente, só aqueceria à medida que a manhã avançava. À hora a que António Costa, Carlos César e companhia entravam no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, ainda não tinha rebentado mais uma polémica relacionada com a TAP nem tinha sido noticiado o novo veto de Marcelo Rebelo de Sousa. Foi, ainda assim, munidos de alguns óculos de sol e muitas rosas na mão que as dezenas de socialistas que se encontraram à porta do cemitério rumaram aos jazigos de vários dos fundadores, tendo como destino final o de Mário Soares, em quem António Costa pareceria encontrar inspiração para ser primeiro-ministro em tempos difíceis.
Foi, aliás, um dos pontos que Costa tocou durante os minutos em que falou, diante do jazigo de Mário Soares e de Maria Barroso e ladeado pelos filhos do casal e vários dirigentes socialistas, para assinalar o 50º aniversário do PS (deixou flores a outros fundadores –“e só não vamos ao do Antero porque é nos Açores”, comentaria um membro do grupo).
Soares, recordou Costa, foi o primeiro-ministro que “teve de enfrentar tempos mais difíceis”, fosse durante a consolidação da democracia — e aí deixou-lhe elogios por ter “garantido a autonomia da esquerda democrática” e evitado a ameaça de “novos totalitarismos” em Portugal — fosse depois, durante as “gravíssimas crises económicas e financeiras” que enfrentou.
Costa, que enfrenta as suas próprias crises no Governo e num momento em que o país atravessa dificuldades económicas, preferiu lembrar os tempos difíceis de Soares e a “grande lucidez” com que lidou com eles — mas também a “enorme incompreensão” que muitas vezes recebeu de volta.
E, ainda ao lado do jazigo onde o PS depositou uma coroa de flores vermelhas e amarelas, fez questão — numa altura em que o fantasma da dissolução anda no ar — de recordar a forma como os governos de Soares caíram: “Um pelo chumbo de um voto de confiança, outro por dissolução e outro, a poucos dias de estar assinado o tratado de adesão à UE, por o PPD ter resolvido retirar o apoio ao Governo”.
Ainda assim, Soares conseguiu “transcender em muito o PS”, graças a qualidades como a “enorme determinação, tolerância e respeito pelos adversários”, “enorme cosmopolitismo” e um “patriotismo sem hesitação”.
Pelo meio dos elogios a Soares Costa deixou outros a Maria Barroso, recordando que a também fundadora começou, na reunião que fundou o PS na Alemanha, em 1973, por votar contra a criação do partido — uma recordação que fez rir Fernando Medina, que tal como outros dirigentes socialistas (Duarte Cordeiro, Carlos César, João Torres, Eurico Brilhante Dias ou Marta Temido) ouvia de perto o pequeno discurso.
A foto do “irrequieto” Costa e o protesto surpresa
A ata dessa reunião de 1973 esclarece que os sete votos contra se deveram apenas a divergências quanto ao timing da oficialização do partido, e não aos princípios que serviram de base à fundação do PS. É fácil de confirmar, uma vez que essa ata é incluída num dos cartazes do arquivo do PS que fazem parte da exposição inaugurada a propósito do aniversário do partido, e que António Costa e os restantes dirigentes visitariam meros minutos depois de a comitiva ter deixado o cemitério.
50 anos, 50 cartazes. A história do PS contada pelas paredes
Nas paredes do Largo do Rato encontrava-se uma mostra alargada de provas da história do PS — mas não de toda: os cartazes alusivos a vários dos ex-líderes socialistas encontravam-se numa sala mais pequena, que os jornalistas não puderam visitar ao lado de António Costa por questões de espaço. De qualquer forma, no conjunto dos cartazes, a que o Observador teve acesso e que disponibilizou, em parte, nesta fotogaleria, constam imagens de quase todos os antigos líderes, incluindo José Sócrates — só não foi possível ouvir as apreciações de Costa sobre essas imagens.
Foi possível ouvi-la sobre outras: o líder socialista pareceu percorrer com gosto a exposição, acompanhado pelo curador, José Manuel dos Santos. Admirando um cartaz antigo em que a Juventude Socialista prometia “abrir caminho à juventude”, Costa apressou-se a tirar rapidamente o telemóvel do bolso para lhe tirar uma fotografia. Depois, foi puxando da memória à medida que via alguns dos outros cartazes: “Isto é com o Guterres! Onde é que está a Edite [Estrela]? Venha cá, ajude-nos lá a decifrar de quando é que isto é”, ia pedindo.
Por esta hora, já a oposição estava em ebulição por causa do pedido recusado pelo Governo para divulgar um parecer jurídico sobre a TAP e já Marcelo confirmava o novo veto à eutanásia. Dentro do Largo do Rato, os socialistas continuavam em modo de celebração: o secretário-geral adjunto, João Torres, falou ao microfone sobre as várias definições de um socialista e passou a palavra a José Manuel dos Santos, que esclareceu que o PS sabe que “em democracia não há História oficial, nem a História se confunde com propaganda”.
E admitiu que o partido tem na sua história, “como na história de todas as instituições, luzes e sombras” que trazem “inspiração e ensinamentos”. E, sobretudo, uma “responsabilidade ainda maior” no presente.
José Manuel dos Santos teria ainda tempo para fazer referência às qualidades de algumas das figuras maiores do PS e acabar com as de Costa, deixando a plateia a rir-se ao falar da “voz juvenil, enérgica e levemente irrequieta” do atual líder socialista.
Mas assim que acabou a temperatura aqueceu, desta vez dentro da própria sede: um grupo de cinco jovens ativistas climáticos tinha conseguido entrar na sala e começou a gritar palavras de ordem como “Celebrar o quê? Não há palavra B”, enquanto três dos jovens baixavam as calças, revelando a palavra “Ocupa” escrita nas nádegas.
O espanto foi geral. E, enquanto os jovens eram retirados da sala e identificados pela PSP no andar de baixo e à porta da sede socialista, o orador seguinte, Raul Moreira, diretor de Filatelia dos CTT, tentava aliviar o ambiente com humor: “Este momento de liberdade de expressão que tivemos muito se deve ao PS!”. Ainda arrancou alguns risos à plateia. As comemorações seguiram, e seguirão nos próximos dias.