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Créditos Renato Cruz Santos

Créditos Renato Cruz Santos

Um empreiteiro, um inspetor e a Miss Aveiro 97: uma história de amor e crime, por David Bruno

A mulher fatal, o Vítor Baía de Sandim, o empresário galã e o detetive assombrado: "Sangue e Mármore", um álbum e uma áudio-novela, com a participação de Rui Reininho, Gisela João e Marlon Brandão.

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“Que seria a minha vida sem histórias?” A interrogação aparece nas considerações finais do guião de Sangue & Mármore, o novo trabalho de David Bruno lançado esta sexta-feira, dia 16 de setembro. Sentado numa mesa do Café Piano-Bar Mozart – espelhos com molduras rococó na parede, piano ao lado do jogo de setas, mobiliário em madeira maciça, sofás de couro, cheiro a tabaco e a produto de limpeza no ar, futebol a dar nas televisões – o músico de Gaia diz-nos que continua a imaginar coisas novas todos os dias: “Acho que herdei isso dos meus avós”.

O avô Carlos, então, passava a vida a contar histórias, “até coisas inventadas sobre ele contava”, lembra DB daquela vez em que o fez acreditar que a taça em cima da lareira de casa tinha sido conquistada pela avó numa corrida de reformadas com mais de 65 anos. A taça e uma máquina de lavar, prémio de mérito pelo coice que a avó teria dado a uma concorrente mais nova que a estava a ultrapassar, atirando-a para uma valeta! “Ele dizia essas coisas sem se rir e depois eu ia contar aos meus pais e aos meus amigos da escola”.

A taça, ficou a saber mais tarde, pertencia ao tio, jogador de andebol. A máquina de lavar era apenas um eletrodoméstico comprado honestamente, sem feridos a registar. Mas o rastilho da imaginação estava acesso e já não havia volta a dar: David Bruno cresceu a “inventar mil histórias”, a meter “altas tangas nas visitas de estudo” e é a partir desse imaginário, que tem tanto de humor e de absurdo como de realismo, que vai alimentando a sua carreira.

[“Tema de Sequeira”, com Rui Reininho, um dos temas do novo álbum de David Bruno:]

O capítulo mais recente de um percurso a solo que começou com O Último Tango em Mafamude (2018) chama-se Sangue & Mármore, um álbum que é também uma áudio-novela e que explora a fundo os dotes de contador de histórias de David Bruno. Já o sabíamos fértil nisso, fosse a apresentar-nos o Adriano Malheiro caloteiro, em Miramar Confidencial (2019), ou o Corona, a personagem que dá vida ao Conjunto que partilha com Logos, alter-ego de Edgar Correia, e que em breve terá um novo capítulo a juntar aos já cinco discos lançados.

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Porém, em Sangue & Mármore o músico elevou a fasquia. A pandemia deu-lhe o tempo que precisava para aprofundar a veia guionista e bastou uma casa “mesmo tugona”, plantada à frente da sua janela, para que o enredo começasse a ser desenhado. “Era uma casa daquelas de luxo à portuguesa, com as fontes dos meninos a fazer xixi no meio do jardim, os azulejos das vindimas no Douro, as estátuas de Nossa Senhora de Fátima. Eu olhava para ali e pensava, ‘quem é que será que mora aqui?’. Quando dei por mim, estava a construir uma novela”.

Uma novela com sotaque de Olivier Bonamici

Mas afinal, que história é esta? O autor é David Bruno e é o próprio que descreve as personagens. Porém, quem a conta é um heterónimo seu, François da Costa, homem de Avintes, apaixonado pela sua terra e emigrado muitos anos em França. Alternamos, portanto, entre o toque de portugalidade – “as descrições são narradas como uma autêntica conversa de café” – e o sotaque e as expressões afrancesadas: há cheveux falsos referindo-se a “capachinho”, um detetive que gosta de réfléchir na bomba de gasolina Prio de Avintes, uma femme fatale com unhas de gel, argent não declarado escondido em sacos do Pingo Doce, como o Rei dos Frangos e um crime parfait.

Mário Sequeira, empreiteiro encontrado morto à porta do Zoo de Santo Inácio, é baseado num antigo vizinho de David Bruno: “Ao imaginar a figura de um empreiteiro de acabamentos com dinheiro, imaginei-o logo a ele. É aquele homem com alguma idade, mas muito galante, sempre a arrastar a asa às mulheres todas, até na presença da mulher e das vizinhas”

“A inspiração para o François da Costa é o [jornalista] Olivier Bonamici. Eu via-o e ficava hipnotizado com a pronúncia dele. Quando comecei a contar a história tinha visto uma reportagem dele e resolvi contar com o sotaque de Olivier Bonamici. Assim até dá um toque mais cultural e requintado à coisa.”, refere.

Não é só o narrador que é fruto de uma inspiração. Todas as personagens têm o seu sósia real. Mário Sequeira, empreiteiro encontrado morto à porta do Zoo de Santo Inácio, é baseado num antigo vizinho de David Bruno: “Ao imaginar a figura de um empreiteiro de acabamentos com dinheiro, imaginei-o logo a ele. É aquele homem com alguma idade, mas muito galante, sempre a arrastar a asa às mulheres todas, até na presença da mulher e das vizinhas”. Sandra Isabel, a Miss Aveiro 1997, é inspirada na filha do Presidente do Arouca, Carlos Pinho: “Ela era conhecida como a Paris Hilton de Arouca”, satiriza David Bruno que, à semelhança da personagem da sua história, tinha de facto um cabriolé e um cão com uma coleira de diamantes. “Eu vi isso em frente ao Piolho”. Crespo, a grande promessa dos Dragões Sandinenses (o Vítor de Baía de Sandim), é um “pobre diabo” que faz lembrar um antigo colega seu, o guna da escola Teixeira Lopes. Já para o inspetor Guedes, veterano da Guerra Colonial, homem solteiro na casa dos sessenta e cheio de demónios na cabeça, David Bruno projetou uma imagem muito sofrida à semelhança do ator João Lagarto.

Um policial “noir low cost” com laivos de “Vila Faia” e “Twin Peaks”

Em “dois ou três dias” DB engendrou uma narrativa com princípio, meio e fim, sem pontas soltas. Aprimorou detalhes nas semanas seguintes e gravou a história toda de cabeça, num dia só e sem nenhum apontamento a ajudá-lo. “Depois é que escrevi o que gravei”, conta, explicando que o objetivo era o de tornar a gravação o mais próxima possível do ato genuíno de contar histórias, tal e qual como ouvia na sua infância. As hesitações, os suspiros, os enganos, as pausas e a saliva embolada na boca, tudo isso é percetível na gravação e está reproduzido no guião: “Fiz questão de não corrigir”, diz, deixando claro que, nesse momento, não tinha expetativa nenhuma em relação ao material que acabara de produzir.

A capa de "Sangue e Mármore", o novo álbum de David Bruno, editado a 16 de setembro

Créditos Renato Cruz Santos

Só quando começou a ter o retorno de pessoas próximas é que percebeu que o projeto poderia ter pernas para andar: “As pessoas acharam piada àquilo e começaram a enviar-me fotos do Instagram e a dizer, ‘olha, esta é a Sandra Isabel’, ‘Este é o Crespo’. Eu pensei que a história deveria ter alguma coisa, porque as pessoas estavam a perceber as personagens.” Ora, isto levou David Bruno a querer fazer “o pacote completo”, com banda sonora à altura.

As narrações oscilam entre uma música de fundo tensa, ao estilo de “Twin Peaks”, e instrumentais que lembram o genérico da telenovela “Vila Faia”, aliás uma inspiração para este trabalho, a par d’”Os Lobos” e da novela mais antiga de sempre, a americana “The Young and the Restless” (em exibição desde 1973). “Em França chamava-se ‘Les Feux de l’amour’ e o meu avô via sempre. Mesmo quando veio para Portugal, comprou uma parabólica para a ver”. Se misturarmos isto tudo com um toque de “Perdita Durango” (1997), o filme de Álex de la Iglesia que é uma “espécie de ‘Kill Bill’ dos trezentos” e que conta com Javier Bardem a fazer de mau, Rosie Peres a interpretar o papel de mulher fatal e James Gandolfini como detetive, então temos apurado o caldo de Sangue & Mármore.

“Toda a gente conhece uma pessoa assim”

Mas a banda sonora não se fica por aqui. Havia que dar vida a Sequeira, Sandra Isabel, Guedes e Crespo e para isso David Bruno sabia exatamente quem contactar. “Conhecia-os mal e pessoalmente se calhar só tínhamos falado uma ou duas vezes”, diz sobre Rui Reininho, Gisela João e Marlon Brandão, dos Azeitonas. “Foram as minhas primeiras escolhas, não falei com mais ninguém, mas juro que achei que eles não iam aceitar. De alguma maneira, não só perceberam a história, como, passado algum tempo, começaram a fazer comparações e a falar de pessoas que inventei como se fosse um dado adquirido.” Afinal, “toda a gente conhece uma pessoa assim”.

Há ainda um filme experimental, realizado pelo próprio, onde a banda sonora e a história estão sobrepostas numa única peça artística. “São gravações que fiz dos sítios onde se passava a história, mas já apareceu aí um convite de uma empresa para transformar isto de facto numa mini série”

Rui Reininho vestiu a pele de Sequeira, dando-lhe corpo na terceira faixa do disco. “Ele já participou em algumas séries e fez sempre de vilão e o Sequeira é um homem mau, sem sentimentos, que só quer saber de viver a vida e de mulheres.” A voz inconfundível do vocalista dos GNR entra a cantar os versos “Suave Cantoneira / Difícil de encontrar”, ao jeito do início de “Tirana”, do álbum Mosquito, de 1998.

Na sexta faixa chega-nos Marlon Brandão, o “Guedes que enlouquece / se não tem o que merece”. “Foi ele que escreveu a sua própria letra”, nota, ao contrário das de Rui Reininho e de Gisela João, a Sandra Isabel do nono tema. “Sabia que ela perceberia perfeitamente o que é ser uma Sandra Isabel e até lhe mandei uma notícia sobre uma mulher que contratou um homem para matar o marido, só que cometeu o erro de lhe dar 50% de sinal. Claro que ele não matou o marido e ela meteu-o em tribunal”. Gisela canta as mentiras de uma cara fria / maquilhada que sonha com capas de revista e um corpo puro açúcar, diabetes, como se estivesse a cantar “A Louca” e isso eleva o próprio universo musical de David Bruno para outro patamar.

François da Costa, o narrador criado por David Bruno, avisa que “por muito sedutor que seja, o crime não compensa”. A 4 de outubro, "Sangue & Mármore" subirá ao palco do Hard Club, no Porto

Créditos Renato Cruz Santos

Não é que este trabalho apresente uma rutura na fórmula de samples com solos curtos de guitarra que caraterizam a sua linguagem, mas, ao contar pela primeira vez com convidados a cantar nas suas canções, os temas ganharam um novo corpo que anteriormente não tinham. De resto, a música serve aqui o propósito do enredo, com instrumentais que nos pretendem levar exatamente para o imaginário que DB preconizou para cada personagem.

O formato físico de Sangue & Mármore chega em álbum e num guião assinado pelo autor. Há ainda um filme experimental, realizado pelo próprio, onde a banda sonora e a história estão sobrepostas numa única peça artística. “São gravações que fiz dos sítios onde se passava a história, mas já apareceu aí um convite de uma empresa para transformar isto de facto numa mini série”. Se vai ou não acontecer, depende da aprovação de uma candidatura, porque, como nota David Bruno, feliz ou infelizmente não arranjou “nenhum investidor do ‘Madagáscar’ para lavar dinheiro” neste projeto.

Fica aqui lançado o repto, embora, advirta e bem François da Costa, “por muito sedutor que seja, o crime não compensa”. A 4 de outubro, Sangue & Mármore subirá ao palco do Hard Club, no Porto (€12) e mais concertos aí virão, promete David Bruno. Já sobre se vai mostrar este trabalho ao avô, o músico de Gaia tem muitas dúvidas: “Acho que ele ia chegar ao fim e não ia perceber”. Contudo, reflete, seria uma boa forma de se vingar da história da máquina de lavar e da taça da avó.

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