910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

D. R.

D. R.

Um mundo novo rendido a um baile latino: Rosalía, a conquistadora

Cada vez mais lançada nos EUA, piscando o olho também à Ásia, a espanhola Rosalía lança o novo disco "Motomami". Que álbum é este e o que pode mudar na pop mundial? Já o ouvimos.

O mundo está de pernas para o ar, portanto não há altura mais apropriada para que pareça lógico aquilo que acontece entre a faixa cinco e a faixa seis de Motomami — o novo disco da cantora espanhola, compositora e nova dona disto tudo Rosalía Vila Tobella, editado esta sexta-feira, 18 de março, com pompa, circunstância e vontade de conquistar a América toda outra vez.

Num momento estamos a ouvir uma batida reggaeton, a arrancar deslizando sem vergonha numa poça de virgem extra. O corpo balança mais rápido do que o temeroso cérebro e Rosalía mandachuva canta como se o mundo fosse uma noz: “solo quiere cash, yo le doy mi dinero”. E com ela vamos à boleia, para um baile em discotecas de duvidoso “bom gosto” (o sacrilégio!), shots em cima da mesa a evaporar o pudor. E Rosalía, imparável, segue sempre no centro da festa, agora a piscar o olho à Ásia que (ainda para mais) é nestes tempos uma potência pop:

Pa’ ti naki
chicken teriyaki

De repente a faixa muda, entramos em “Hentai” (#6) e parecemos estar na manhã seguinte. Mas é uma manhã seguinte estranha: o som é de uma balada dolente à Frank Ocean (não por acaso, presente nas sessões de gravação do disco), soul latina-americana eletrónica e cantada com uma solenidade emocionada. Só que alto lá, afinal a canção vai buscar nome a uma espécie de pornografia japonesa (em anime), à noção de perversidade legítima no desejo? E Rosalía canta-nos assim, como se entoasse uma fábula de amor moderno:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Te quiero ride como a mi bike
Hazme un tape modo Spike
Yo la batí hasta que se montó
Segundo es chingarte, lo primero e’ Dios

Talvez seja aqui que senhoras e senhores de óculos na ponta do nariz, seríssimos, se vão escandalizar, franzir o sobrolho, fazer um rosto de nojo: como assim, “em primeiro lugar Deus”, em segundo, enfim, dar umas cambalhotas contigo?

Se por esta altura ainda desejar continuar a ouvir o disco, tem um estômago suficientemente forte para seguir e digerir a viagem. Uma jornada naquilo que a própria Rosalía descreveu, por sinal exemplarmente, como uma “montanha-russa”. A expressão, usou-a recentemente em entrevista ao jornal espanhol El País. Disse então Rosalía: “O álbum é como uma montanha-russa. Vai para cima e para baixo. É assim que me sinto, às vezes”.

Quando aqui escrevemos que “montanha-russa” é uma expressão exemplar para descrever Motomami, é porque tudo isto parece demasiado frenético, um álbum cheio de curvas e contra-curvas, passes e fintas de letra como logo a seguir carrinhos impetuosos, momentos (mais raros) de comover as pedras da calçada, outros (mais constantes) de levantar os ombros, abanar a cabeça e fingirmos que somos todos J Balvin por uns segundos. De mãos dadas: “alta” e “baixa” cultura, bom e mau gosto, emoção e canto de quem tem na voz um dom e um flirt com o reggaeton, o trap e os ritmos dançantes de ruas de má fama.

A capa do novo disco de Rosalía

Motomami soa a um cosmos completo, cheio de imperfeições, delírios de grandeza desconstruídos, ambições desmedidas ridicularizadas, sonhos cândidos narrados. É um mundo novo latino, que de retalhos do passado tenta, no presente, construir um futuro.

J Balvin, estrela do reggaeton que gravou com Rosalía o super-êxito pop “Con Altura”, resumiu bem o papel de Rosalía na nova tapeçaria da pop mundial, em declarações à Vice: “Tem um conhecimento extraordinário e único da história da música latina. E é capaz de, de forma consistente, pegar nos melhores elementos do passado e recontextualizá-los de modo a que pareçam futuristas, sem deixarem de honrar as raízes dessa música”. Seguimos viagem.

Aos 28 anos, Rosalía, nascida numa pequena cidade da Catalunha, é uma das estrelas da pop mundial

As pérolas (canção a canção), o TikTok e a América na mira

Para trás ficaram várias coisas. Desde logo, o mito: o talento prodigioso que, (reza a biografia) pelo mérito e não por amiguismos, irrompeu na indústria musical; a mulher que ainda criança, com apenas oito anos, abriu a goela, cantou pela primeira vez em público e deixou uns quantos familiares de olhos marejados em lágrimas.

Depois, foi-se a vontade de ter o consenso da crítica, os “alternativos” e os “clássicos” a seus pés. Primeiro com Los Ángeles, álbum em que reinterpretava o cancioneiro flamenco, depois em El Mal Querer, em que renovava esse legado e património musical espanhol colocando-o em diálogo com a pop do presente e com ritmos novos de quem procurava o futuro, Rosalía ainda não rompera inteiramente com um campo sonoro relativamente consensual.

Rosalía, a musa espanhola do flamenco 2.0

Tudo mudou depois de El Mal Querer: o mergulho e a submersão na estética do reggaeton e as colaborações com J Balvin, Travis Scott, Ozuna, Bad Bunny, The Weeknd e outras figuras planetárias da música latina, por um lado, e da pop anglófona e norte-americana, por outro, fizeram de Rosalía uma outra artista, maior, porventura menos consensual entre críticos mas com muito maior alcance mediático e muito mais ouvintes.

Não é por acaso que o novo disco, Motomami, será o primeiro de Rosalía editado na Columbia Records, divisão norte-americana do grupo Sony onde estão artistas como Beyoncé, Bruce Springsteen, Adele ou AC/DC. Também não será mero acaso a ligação cada vez mais estreita de Rosalía com a rede social TikTok, a ponto de esta sexta-feira estar previsto um concerto exclusivo de apresentação do álbum precisamente no TikTok – curiosamente à 1h da madrugada do seu país, Espanha (0h de Lisboa), mas em prime time nos fusos horários dos EUA e da América Latina.

Não se pode dizer que a vontade de conquistar o mundo seja nova. Num texto recente publicado pelo jornal digital El Diario, em que são citadas várias passagens do livro de ensaios “La Rosalía. Ensayos sobre el buen querer”, é contada uma história sobre os planos da cantora quando tinha acabado de vender meras 8 mil cópias com o disco Los Ángeles, o primeiro da sua discografia. À época, lê-se, um dos planos já era “fazer música de qualidade, mas comercial e capaz de se tornar num êxito global”.

De algum modo, Motomami parece uma espécie de compromisso a meio caminho entre os singles pop de Rosalía que conquistaram o mundo nos anos mais recentes – a parceria com Ozuna “Yo x Ti, Tu x Mi”, o dueto com Travis Scott “TKN” e, acima de todos os outros na popularidade, o estrondo “Con Altura” com J. Balvin – e a ideia de uma artista popular mas divergente da pop mainstream, capaz de fazer discos coesos e com um fio condutor.

Desta vez, em vez do flamenco reinventado, são o reggaeton (sobretudo) e a bachata que dominam os andamentos rítmicos – ainda que se note espaço para algum diálogo com o flamengo, com o trap, com a pop industrial e com a soul eletrónica. Neste caldeirão, porém, Rosalía parece conseguir manter-se minimamente original e com intenções artísticas percetíveis: as batidas e os sons soam relativamente novos, dando a impressão de que já os ouvíramos noutros tons mas nunca exatamente assim, e o álbum (feito ao longo de três anos) não soa a mera coleção de singles dispersos.

É um disco nitidamente despudorado, que não pede licença a ninguém nos ritmos e palavras e que, inspirado na ideia da figura motomami (uma homenagem à mãe mas também à força feminina e à aceitação das dualidades entre luz e sombra, perversidade e inocência, fragilidade e força destrutiva), reflete sobre fama, dinheiro, sexo, mudanças, vida vivida a um ritmo vertiginoso, contradições.

É difícil prever a aceitação que o disco terá ou o consenso que conseguirá ou não lograr, mas é fácil prever que Rosalía será cada vez mais uma estrela pop mundial, que quer ombrear em mediatismo e popularidade com as grandes figuras da música cantada em inglês.

Não é bem certo desde quando é que brega passou a ser cool, ou desde quando é que a música latina passou a ter ambições de durar no tempo, de deixar de ser um fenómeno efémero (como o foi o poderíssimo êxito “Gasolina” de Daddy Yankee) e de deixar de recorrer ao inglês (como Shakira) e, sem vergonhas, conquistar pela diferença. O que se percebe é que na pop essa ousadia já tem descendentes (C. Tangana) mas continua a ter em Rosalía uma figura de proa.

Motomami, por sinal, tem curvas suficientes para agradar a públicos distintos. Mas tem, sobretudo, canções impactantes. Arranca logo com “Saoko”, canção sobre transformações (“Soy todas las cosas, yo me transformo”), Rosalía a cantar que “o Frank [Ocean]” lhe disse para “abrir o mundo como uma noz”, o ritmo a soar a boa festa de tunning manhosa antes da canção escangalhar-se nas suas voltas, ritmos e contra-ritmos, tons industriais e esquizóides, Rosalía com luvas de boxe:

Fuck el estilo
Fuck el stylist
Fuck el estilo

Entre a bachata insinuante “La Fama”, com o comparsa The Weeknd num diálogo sobre o mediatismo (“es mala amante la fama / y no va a quererte de verdade / es demasiado traicionera / y como ella viene se te va”), e a já referida “Chicken Teriyaki” (quinta faixa), ouvimos “Buleria”. Não era preciso escutarmos Rosalía a cantar flamenco para nos recordarmos que é uma espantosa vocalista, alguém capaz de cantar tudo e mais alguma coisa – mas é sempre bom regressar onde fomos felizes (El Mal Querer) e a esta nova-velha Espanha em que percussões a imitar palmas, vozes de fundo cheias de vida e palavras sobre “Versace” soam simultaneamente clássicas e modernas.

De “Hentai” já por aqui falámos, mas vale a pena desvendar mais um truque estupendo de uma grande canção: a forma como uma espécie de caos industrial, ruidoso, se abate sobre o tema na ponta final sem que Rosalía fique com um arranhão, sem que deixe de cantar impávida e serena — como se o mundo em seu redor não estivesse em convulsão (sonora).

Nas 11 faixas seguintes (são 16) também há pérolas por descobrir. Desde logo, a inclassificável “Bizcochito” (de onde veio isto?), a mais nebulosa, tensa e baladeira “Genis” (com que voz, Rosalía!) e a mais clássica e tradicional “Delirio de Grandeza”. Mas também a balada movida a autotune e tristeza “Como un G”, constatando a efemeridade das relações e a dureza da separação (“No me enamoro de nadie, jurao, como un G / ni escribo canciones de amor pero en esta me doblo por ti”) e a despedida “Sakura”, com a emoção na voz a ribombar, palavras a reter (“Ser una popstar / nunca te dura”) e com versos poéticos para a despedida:

Solo hay riesgo si hay algo que perder
Las llamas son bonitas porque no tienen orden
Y el fuego es bonito porque todo lo rompe

Com Motomami, Rosalía reinventa-se, transforma-se como a borboleta (“mariposa”) que escolheu como símbolo do disco, desvenda-se sem pudores e chama o mundo para o baile. Depois disto não podem sobrar dúvidas: a dança agora é definitivamente latina.

No Porto, Rosalía foi flamenco-pop, chunga-clássica, emergente-prodigiosa

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.