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Em pleno torneio Roland Garros, depois de vencer uma partida, no último dia de maio, o tenista sérvio Novak Djokovic escreveu, numa das câmaras de televisão que cobriam o evento, a seguinte mensagem: “O Kosovo é o coração da Sérvia. Parem com a violência.” A inscrição não passou despercebida, criando um imbróglio diplomático. A ministra do Desporto francesa, Amélie Oudéa-Castéra, classificou o episódio como “inapropriado” e o comité olímpico kosovar pediu a abertura de um processo.
Na origem deste gesto de Djokovic está a tensão que se vive no Kosovo, um Estado com uma maioria de etnia albanesa que não é reconhecido de forma plena pela comunidade internacional. Enquanto a maior parte dos países do Ocidente — incluindo Portugal e os Estados Unidos — já reconheceram a sua independência, declarada em 2008, outros — como a China e a Rússia — ainda não o fizeram.
Ora, com um pai oriundo daquele região e que se identifica com a minoria sérvia, Novak Djokovic tem defendido as reivindicações daquela população. “É o mínimo que podia fazer. Senti a responsabilidade enquanto figura pública. Muitas pessoas não concordam, mas é o que penso”, justificou o tenista numa conferência de imprensa, garantindo que não vai comentar mais o assunto durante o torneio de ténis. Contudo, no terreno, a situação está longe de estar resolvida.
Serbian Novak Djokovic has defended writing “Kosovo is the heart of Serbia. Stop the violence” on a camera following his first round win at the French Open.https://t.co/aLg7sRbych pic.twitter.com/eVQMUuze96
— The Irish Times (@IrishTimes) May 31, 2023
Como começou a tensão?
As ruas de quatro municípios kosovares têm sido palco de violentos confrontos, que já duram há mais de uma semana. Em causa estão manifestações que começaram por conta de uma eleição no norte do Kosovo, uma região fronteiriça com a Sérvia e que tem uma maioria sérvia e não albanesa (contrariamente ao que acontece no resto do território).
Numa região com uma maioria da população que se identifica como sérvia, as autoridades do país, assumidamente albanesas kosovares, apresentaram listas com candidatos apenas da sua etnia, contrariando a vontade da população, que não ficou agradada. O desfecho? Um boicote nas eleições e uma taxa de participação de apenas 3%.
Contra a vontade da população local, as autoridades albanesas decidiram validar os resultados das eleições. Na passada sexta-feira, quando iam tomar posse, os sérvios kosovares não permitiram a entrada dos autarcas das localidades de Leposavic, Motrovica, Zubin Potoc e Zvecan, realizando protestos à porta dos edifícios governamentais.
Em resposta, o governo do Kosovo enviou polícia para o local para afastar os manifestantes. Como conta a agência EFE, as autoridades kosovares utilizaram gás lacrimogéneo e granadas de atordoamento para dispersar os manifestantes, que incendiaram um carro de polícia. Pelo menos dez pessoas ficaram feridas e tiveram de receber assistência hospitalar.
A Sérvia, que vê o Kosovo como parte integrante do seu território, colocou o Exército do país em alerta máximo, ordenando o reforço da presença das tropas do país perto da fronteira. O ministro da Defesa sérvio, Miloš Vučević, criticou as autoridades kosovares, assinalando que estavam a gerar o “terror” junto da população de etnia sérvia. A acusação não ficou sem resposta: Pristina disse que Belgrado estava a apoiar as “estruturas criminais ilegais no norte do Kosovo”.
A primeira reação internacional
Após estes atos de violência, a comunidade internacional condenou os episódios, apontando o dedo às autoridades kosovares. Até o Ocidente, um tradicional aliado da etnia albanesa no Kosovo, mostrou a sua insatisfação com o episódio. “Condenamos inequivocamente as ações do Governo do Kosovo que está a escalar tensões no norte e a aumentar a instabilidade”, escreveu o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, na sua conta pessoal do Twitter, apelando ao primeiro-ministro kosovar, Albin Kurti, para “parar imediatamente com medidas violentas”.
We strongly condemn the actions by the Government of Kosovo that are escalating tensions in the north and increasing instability. We call on Prime Minister @albinkurti to immediately halt these violent measures and refocus on the EU-facilitated Dialogue.
— Secretary Antony Blinken (@SecBlinken) May 26, 2023
A ação policial por parte do Kosovo também foi criticada pela União Europeia. O porta-voz dos Serviços Europeus de Ação Exterior, Peter Stano, assegurou que Bruxelas “não vai aceitar mais ações unilaterais ou de provocação” por parte das autoridades kosovares. “Deve dar-se prioridade à preservação da paz e da segurança.”
Desempenhando um papel importante no Kosovo, a NATO, que tem tropas no terreno para evitar o aumento da escalada da violência, frisou que “Pristina e Belgrado se devem comprometer com o diálogo”, de modo a chegar à “paz” e à “normalização” da situação. “A Força Internacional da Segurança para o Kosovo da NATO continuará a ser um garante de segurança”, assinalou o secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, reforçando que as autoridades kosovares devem parar com a “escalada” e evitar “passos unilaterais e desestabilizadores”.
Não foi só o Ocidente a reagir ao episódio. Também a Rússia, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, mostrou preocupação com os mais recentes acontecimentos. “Está a gerar-se uma grande explosão no centro da Europa”, reagiu o chefe da diplomacia russa, que aproveitou para criticar o Ocidente por tentar “submeter todos aqueles que expressam de algum modo a sua opinião”.
Protestos continuaram e militares da NATO acabaram feridos
As manifestações não ocorreram apenas na sexta-feira, dia 26 de maio, tendo-se prolongado durante os dias que se seguiram. Na passada segunda-feira, dia 29, os sérvios do norte do Kosovo envolveram-se novamente em confrontos com a polícia, após os edifícios municipais terem sido ocupados pelos kosovares albaneses.
Os manifestantes de etnia sérvia tentaram entrar de “forma violenta” nos edifícios de Zvecan, Leposavic, Zubin Potok e Motrovic e foram impedidos não apenas pelas autoridades kosovares, como também pelas forças de manutenção da paz da NATO, que estão apenas autorizadas a intervir em situações de conflitos, caso se assista a uma escalada da violência.
As forças da NATO e a polícia kosovar lançaram gás lacrimogéneo e granadas de atordoamento, e os manifestantes sérvios responderam com o lançamento de pedras e objetos pesados contra as autoridades. Houve ainda trocas de tiros pelo meio e carros da polícia incendiados.
As ações violentas causaram pelo menos uma centena de feridos, 30 dos quais militares da NATO: 11 eram italianos e 19 eram húngaros. Em comunicado citado pela Associated Press, a Força Internacional da Segurança para o Kosovo da NATO detalhou que os soldados foram “sujeitos a ataques não provocados” e ficaram feridos com “fraturas e queimaduras”.
Devido à proporção que atingiram os desacatos, o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vučić, fez um discurso à nação e anunciou que ia passar a noite junto à fronteira kosovar. “As consequências são graves”, alertou o Chefe de Estado, acusando o primeiro-ministro do Kosovo de incentivar o caos. “Eu repito pela última vez e suplico à comunidade internacional para ver se consegue que Albin Kurti seja razoável. Se não, tenho medo de que seja demasiado tarde para todos.”
Do lado dos sérvios, Aleksandar Vučić deu ainda conta de que havia 52 feridos, três dos quais com gravidade. Por sua vez, em declarações aos meios de comunicações sociais locais, o diretor do hospital de Mitrovica, Zlatan Elek, referiu que mais de meia centena de pessoas precisaram de assistência médica. Uma estava mesmo em risco de vida.
A reunião urgente pedida por Borrell e a resistência das autoridades albanesas kosovares
Após os confrontos de segunda-feira, a comunidade internacional voltou a reprovar a violência nas ruas. A União Europeia instou “as autoridades do Kosovo e os manifestantes a desescalarem imediata e incondicionalmente a situação”. “Esperamos que as partes atuem com responsabilidade e encontrem uma solução política através do diálogo imediatamente”, frisou na passada terça-feira, dia 30, o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, adiantando que estava a preparar uma “reunião urgente” de “diálogo ao mais alto nível” para tentar evitar mais episódios violentos.
The EU condemns today’s shocking violence in #Zvecan in the strongest possible terms.
The violent acts committed against @NATO_KFOR troops, media, civilians and police are absolutely unacceptable.
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— Josep Borrell Fontelles (@JosepBorrellF) May 29, 2023
Por sua vez, o Chefe de Estado da Sérvia apelava aos embaixadores dos Estados Unidos, da Alemanha, de Itália e do Reino Unido para que fizessem uso da sua influência junto do governo do Kosovo, no sentido de que persuadisse os autarcas dos quatro municípios a apresentarem a demissão. Lamentando que os militares da NATO tenham acabado feridos, Aleksandar Vučić lembrou que vários sérvios tinham também sido vítimas de violência.
Porém, o primeiro-ministro do Kosovo, Albin Kurti, mantinha uma posição intransigente. Num vídeo publicado no Facebook, o líder kosovar afirmou que os autarcas das quatro localidades continuavam a ter o apoio “contínuo, pleno e incondicional” do governo. O chefe do executivo sugeriu igualmente que a Rússia pode ter desempenhado “um papel” nestes desacatos, apontando que houve “graffitis com a letra Z” [símbolo de apoio às causas pró-russas] e que constatou a admiração que os manifestantes manifestaram pelo líder russo Vladimir Putin, a quem se referiu como um “déspota”.
Ao mesmo tempo, querendo evitar um cenário idêntico ao que aconteceu nos dias anteriores, a NATO reforçou a sua presença no Kosovo com mais 700 militares. Para além disso, as tropas de manutenção da paz da aliança transatlântica instalaram barreiras juntos aos edifícios governamentais para se protegerem dos ataques.
Mais confrontos, uma posição mais assertiva do Ocidente e o fim aparente do braço de ferro
Apesar das condenações e dos apelos, as manifestações continuaram na passada quarta e quinta-feira, mas estiveram longe de atingir as proporções dos dias anteriores. A polícia do Kosovo também chegou a enviar carros blindados para perto dos edifícios onde estão sediadas as autarquias, de modo a responder mais eficazmente aos protestos.
Tendo em consideração os atos de violência registados, os Estados Unidos decidiram cancelar a presença do Kosovo num exercício militar, uma decisão que o primeiro-ministro kosovar definiu como um “claro exagero”. Na cimeira europeia, que reuniu praticamente todos os líderes europeus na Moldávia no final desta semana, a questão foi um dos pontos da agenda. Após os pedidos de uma “reunião urgente” por Josep Borrell, o Presidente francês, Emmanuel Macron, o chanceler alemão, Olaf Scholz, o Chefe de Estado da Sérvia e a líder kosovar, Vjosa Osmani, tiveram uma reunião quadripartida.
A solução encontrada pelos quatro líderes passou pela realização de novas eleições “nos quatro municípios”, com o “compromisso” de que o Kosovo não interferiria no sufrágio. Ficou também assegurada “uma participação nestas eleições de forma clara por parte do lado sérvio”, detalhou Emmanuel Macron. Lamentando a “organização de eleições quando não foram dadas as garantias de um desfecho adequado”, o Chefe de Estado francês sublinhou que o ato eleitoral que esteve na origem das manifestações não tinha “legitimidade”.
Macron e Scholz pedem repetição de eleições autárquicas no Kosovo
Apesar da resistência inicial, a Presidente do Kosovo admitiu pela primeira vez, no final daquela reunião, que o país podia negociar a convocação de novas eleições. Por sua vez, Aleksandar Vučić assegurou que a Sérvia “vai dar o máximo” para que as coisas “regressem à normalidade”. “Se isso vai ocorrer ou não, o tango é dançado a dois, não depende apenas de nós.”
Esta sexta-feira, no quinto dia consecutivo de protestos em frente aos edifícios governamentais, Albin Kurti concedeu que se podia equacionar a realização de eleições nos quatros municípios, mas fez depender esse regresso às urnas da “retirada de grupos violentos dos edifícios municipais”. Por agora, as manifestações ainda continuam, mas já há — no horizonte — uma possibilidade de resolução desta tensão, entre duas etnias que nunca se conseguiram entender e que mantêm inúmeros diferendos.