É provável que nunca tenha ouvido falar de Fran Lebowitz. É mais provável ainda que conheça algumas das suas palavras. Pelo menos as oito mais reproduzidas, regra geral em canecas, marcadores de livros e até alguns livros: “Think before you speak. Read before you think” (Pensa antes de falares. Lê antes de pensares). Ao fim dos sete episódios que compõem a mini-série de Martin Scorsese para a Netflix “Pretend It’s a City” apetece compilar um livro de citações. Um total de três horas e meia a ouvir a autora e humorista de 70 anos conversar com o realizador e a resistir ao impulso de sublinhar o ecrã ou cobri-lo de post-its.
Em inglês diz-se “wit”, três letrinhas apenas que designam o chamado humor inteligente. Dá sempre que pensar quando um termo não tem tradução direta para a nossa língua. Como a palavra “saudade”, que os portugueses gostam de reivindicar só para si. “Wit” é, por exemplo, a capacidade de relacionar coisas à primeira vista díspares de uma forma que ilumina e diverte. Como quando Lebowitz, que não tem telemóvel nem computador (“não sabia que toda a gente ia aderir a esta máquina”), explica a sua relação com a tecnologia. Ela sabe que a Internet existe. Tal como sabe que as Kardashians existem. E que estão relacionadas com a Internet.
[o trailer de “Pretend It’s a City”:]
É este tipo de humor que permite transformar uma seleção generosa de críticas e embirrações numa declaração de amor a uma cidade. Uma relação disfuncional, a tempos abusiva, que é, simultaneamente, a única que nos faz sentido. Ou, na versão de Lebowitz, porque não acredita que a aceitassem noutro lugar. No caso, Nova Iorque, o aglomerado de edifícios e pessoas que ela nos pede que tentemos, pelo menos, fingir que é uma cidade (“pretend it’s a city”) – só por uns instantes, para conseguirmos acompanhar o seu raciocínio. Depois podemos voltar a ser turistas e a achar que a metrópole é um parque temático. Façam de conta que é uma cidade, e pensem no mau funcionamento do metropolitano, na forma como evoluíram as relações entre as pessoas, em ter de viver sempre acima das nossas possibilidades – e em como, na cena de engate da década de 1970, o simples facto de alguém ter uma casa aquecida a tornava de repente “uma jovem Brigitte Bardot.”
Até é possível que, olhando para Lebowitz, sinta que a conhece de algum lado. É provável que sim. Tem a ver com a razão pela qual nunca terá ouvido falar no seu nome nem lido o que escreveu. Entre 2001 e 2007, ela desempenhou o papel de juíza na série “Lei e Ordem”, pele que vestiu de novo em 2013 em “O Lobo de Wall Street”, também de Scorsese. Complementos bem-vindos à sua principal fonte de rendimentos, os eventos de “public speaking”, um tipo de atividade também sem tradução direta para português com que substituiu aquilo que se antevia uma fulgurante carreira de autora. Razão? Depois de editar dois best-sellers, Lebowitz bloqueou. E está bloqueada desde 1981, exceção feita a um livro para crianças publicado há 27 anos.
O motivo residirá em dois exageros: a estima exagerada pela palavra escrita e o sentido de crítica exagerado. “A maior parte das pessoas que adoram escrever são péssimos escritores. Claro que adoram. Adoro cantar. Sou uma cantora horrível”, diz. “Podes fazer muitas coisas em que não és bom. Não há nada de mal em fazer as coisas de forma inepta, má ou horrível, mas guarda-as para ti. Não as partilhes.”
Frances Ann Lebowitz mudou-se de Nova Jérsia para Manhattan em 1969, aos 19 anos. Levava consigo seis chumbos a álgebra, duas expulsões de liceus, um prémio de “class wit” (“wit” da turma) e opiniões sem fim. Um currículo que lhe serviu para conseguir sustentar-se nos primeiros tempos como empregada de limpeza, taxista e redatora de livros pornográficos. Já com 21 anos, passa a vender publicidade na Changes, uma pequena revista dedicada à cultura e ao tipo de política a que em 1970 o jornalista Tom Wolfe chamou, “radical chic”. A dona é a quarta mulher do génio do jazz Charles Mingus, pianista e contrabaixista com quem Fran acaba por se dar e desavir, num vaivém que se adivinha crónico e com várias outras personalidades. Entretanto, já assina uma coluna de críticas a livros e filmes. Segue-se a icónica Interview, para onde é recrutada pelo fundador, Andy Warhol (“Nunca me dei bem com o Andy e ele nunca se deu bem comigo. Ele melhorou imenso desde que morreu”), e ainda a Mademoiselle, outra revista.
Nesta altura já ela é uma celebridade entre uma certa franja de uma certa Nova Iorque, a mesma da East Village e do Studio 54, tanto pelas observações acutilantes e sardónicas como pelas botas de cowboy, a risca ao meio e os blazers da Anderson & Sheppard feitos à medida. Em 1978, editará Metropolitan Life, uma compilação de ensaios humorísticos. E, em 1981, Social Studies, no mesmo género. Hoje, qualquer um dos livros só se encontra em segunda mão, a preços que atingem as várias centenas de dólares. Em 1994 a Penguin reeditou-os num volume de capa anódina a que chamou The Fran Lebowitz Reader. Também está esgotado, mas encontra-se em alfarrabistas a preços mais acessíveis.
Todos temos a nossa imagem de Nova Iorque, mesmo que nunca tenhamos atravessado a ponte de Brooklyn, comprado uma sandes numa “deli” ou passeado pelo Central Park. Fomos buscá-la a séries como “Lei e Ordem” e aos filmes de Scorsese. Aos musicais da Broadway, aos combates mais famosos de Muhammad Ali e aos extraordinários “Concertos para Jovens” de Leonard Bernstein, que a RTP transmitiu durante anos. “Pretend It’s a City” é uma declaração de amor à Nova Iorque de Fran Lebowitz, que é feita de todas estas coisas e que à luz de 2021 provoca já uma estranha nostalgia, causada ao longo da última década pelo boom da Internet e agravada nos últimos meses pela pandemia. Ela própria tem noção disso, quando conta que jovens a abordam e dizem que adoravam ter vivido a cidade nos anos 1970 – para acrescentar que na sua juventude nunca se virou para as pessoas mais velhas e suspirou, “adorava ter vivido nos anos 30.”
A mini-série é também uma ode à mais ancestral de todas as artes, a arte de contar histórias. Na era da pirotecnia visual e dos impossíveis 3D, Scorsese mostra-nos duas pessoas sentadas e a conversar. Não é uma dialética socrática, porque o realizador pouco mais faz que rir-se, e muito, tal como nós. São monólogos. Ora nos tais eventos de “public speaking”, em que os dois trocam palavras perante um público, ora no bar do The Players, um conhecido clube privado fundado no século XIX. A intercalá-los, imagens de arquivo, cenas de filmes e Lebowitz a caminhar e observar Nova Iorque: a cidade real e uma maquete gigante criada por Robert Moses para a Exposição Mundial de 1964. É uma simplicidade aparente. A edição é um trabalho de ourives. E rever cada episódio é encontrar-lhe novos sentidos.
Quanto à humorista, é um espectáculo em si mesma. Noutra palavra, uma performer. Dos gestos e pausas com que acompanha as palavras, às palavras que escolhe para cada frase, às frases com que compõe as variadíssimas histórias – que são magníficas. Da estreia do musical “O Fantasma da Ópera” àquela vez em que Leonardo di Caprio lhe passou um cigarro eletrónico e ela resolveu fumá-lo num avião. Se o “storytelling” fosse um desporto, Lebowitz seria Michael Jordan. Se filmar duas pessoas a conversar desse um programa de televisão, Lebowitz seria a protagonista.
Ouvir a autora de Social Studies falar de temas tão diversos como a morte (“Sou demasiado velha para morrer jovem”), a incapacidade de se livrar de um livro (“São o mais próximo que existe de um ser humano. E há muitos mais seres humanos que preferia deitar fora”), o Facebook e o Instagram (“Não é por não saber o que são que não tenho nenhuma dessas coisas. É por saber”), e o movimento #metoo (“Ser mulher foi igual desde Eva até há oito meses”) levanta pelo menos duas questões:
Por que não existe uma tradição deste tipo de raciocínio em Portugal, de que o Miguel Esteves Cardoso das décadas de 1980 e 1990 será o melhor exemplo – nem, já agora, uma tradução direta para a palavra “wit”?
Em qualquer parte do mundo, seria possível hoje nascer uma Fran Lebowitz? Teria espaço nos média? A liberdade, a desfaçatez, a assunção descomplexada de todo o tipo de defeitos, de que a misantropia e a preguiça serão os menores, e que nos faz sentir tão mais acompanhados? A dada altura, ela fala sobre isso e diz que não lhe parece que existam pessoas como ela na geração mais jovem, habituada a partilhar tudo nas redes sociais. “Fazer distinções e julgar coisas é a minha profissão”, diz. “Não lhes seria permitido.”
Lebowitz não gosta de pessoas. Passa os dias a ler e a não conseguir escrever. As duas coisas, já vimos, estão relacionadas. Faz duas exceções. As pessoas mais velhas que ela, o que se vai tornando cada vez mais difícil, e as crianças. “São animais que falam”, explicou à revista Paris Review. “Não sabem nada, por isso têm de inventar. Têm uma visão fresca sobre as coisas.” Os jovens, contudo, sempre foram uma preocupação. Em 1978, quando a revista Newsweek lhe deu a honra de a convidar para escrever na última página, dedicou-lhes o texto. Dizia assim: “Pensa antes de falares. Lê antes de pensares. Isto vai dar-te alguma coisa em que pensar que não foste tu que inventaste – uma jogada sábia em qualquer idade, mas sobretudo aos 17 anos, quando corres o maior perigo de chegar a conclusões irritantes.”