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O ano era o de 1968 e o mês o de abril quando vários estudantes ocuparam o Hamilton Hall, uma das alas do campus da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Ali se trancaram e, durante uma semana, receberam visitas, comida e apoio. Estavam em protesto contra a construção de um novo ginásio, que diziam que serviria para segregar negros e brancos — e rapidamente renomearam a ala ocupada como “Faculdade de Libertação Malcolm X”. Não tardou, porém, a que o espírito do tempo se entranhasse: numa altura em que decorria a caótica Ofensiva do Tet, as reivindicações alastraram-se e o protesto ganhou maior dimensão quando passou a opor-se abertamente à guerra do Vietname. Mas tudo terminou na madrugada de 30 de abril, quando a polícia invadiu o Hamilton Hall e retirou os estudantes à força.
Exatamente 56 anos depois, a Universidade de Columbia, em Nova Iorque, foi lugar de uma nova vaga de protestos intensa por parte dos estudantes, que, simbolicamente, ocuparam uma vez mais o Hamilton Hall. “Vamos acabar o que eles começaram em 1968”, afirmou um dos estudantes, ouvido pela cadeia de televisão da NBC. Desta vez, a sombra que paira não é a de uma guerra como a do Vietname, mas sim a de um conflito que não envolve diretamente soldados norte-americanos: é a guerra de Israel contra o Hamas, na Faixa de Gaza.
Para a maioria dos estudantes em protesto, há uma linha que liga ambos os conflitos. Encaram o protesto de agora como semelhante ao de 1968: é, para eles, a denúncia de uma outra guerra também assente no imperialismo, colonialismo e opressão das minorias. Nas manifestações de abril, as palavras de ordem foram de alinhamento total com a causa palestiniana, atirando janela fora posições mais moderadas: “Não queremos dois Estados, queremos ‘48!”, era um dos gritos ouvidos, referindo-se ao ano da criação do Estado de Israel, como relatou a New Yorker no local. “Palestina livre, do rio até ao mar”, foi outra das frases invocadas repetidamente, em referência a um Estado da Palestina do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo — o que significa a não-existência do Estado de Israel.
Os ânimos têm estado exaltados ao longo dos últimos meses nas universidades norte-americanas. Há muitos relatos de alunos de origem judaica que se dizem intimidados e alvo de antissemitismo, bem como manifestantes pró-Palestina e alunos de origem árabe a serem apelidados de “terroristas” e agredidos. As administrações das universidades não sabem como reagir: Até onde tolerar a liberdade de expressão? Quando é que a defesa de um Estado palestiniano deixa de raiar o antissemitismo para se tornar num crime de ódio efetivo? Em Nova Iorque, perante o acampamento improvisado em Columbia, a solução foi a mesma de há mais de 50 anos: a polícia interveio e pôs fim ao protesto. Mas a onda alastrou-se a outras universidades por todo o país, com a UCLA de Los Angeles a montar mesmo outro acampamento, também ele mais tarde destruído pelas forças de segurança.
Independentemente das opiniões que se possa ter sobre a justiça das reivindicações dos estudantes e das suas formas de atuação, uma coisa é clara: os protestos universitários são um sintoma do descontentamento profundo de muitos jovens norte-americanos com a posição do Presidente Joe Biden relativamente a Israel. E os jovens não estão sós, como relembra ao Observador James Zogby, diretor do Instituto Árabe-Americano, que destaca o alinhamento com esta posição de muitos eleitores democratas “árabes, negros, latinos, asiáticos — e até judeus progressistas”. “Há analistas que querem acreditar que os protestos nos campus são irrelevantes; mas eu acho que eles são o ‘canário na mina’, o sinal de aviso de que há problemas adiante”, diz.
As sondagens são claras: tradicionalmente mais próximos dos interesses de Israel, os norte-americanos já não têm a mesma posição unânime sobre o conflito israelo-palestiniano, com um aumento significativo de apoio à Palestina. Num estudo de fevereiro, metade dos eleitores ouvidos consideravam até que Israel está a ir “longe demais” na sua operação militar em Gaza. E essa opinião é ainda mais consensual entre os eleitores democratas com menos de 35 anos, ilustrando o afastamento dos jovens da política que tem sido seguida pelo Presidente Joe Biden.
Apesar disso, os números também mostram que Gaza não está, contudo, no topo das preocupações dos norte-americanos, ficando atrás de tópicos como a imigração e a inflação. Algo que não destoa do historial eleitoral do país, onde os temas de política externa não costumam tornar-se no principal assunto que decide eleições.
Mas desengane-se quem achar que esta guerra não tem um potencial desestabilizador para as presidenciais do próximo mês de novembro, avisa Russell Riley, historiador especialista em várias presidências norte-americanas, de Jimmy Carter a Ronald Reagan, passando por George H. W. Bush e Bill Clinton. “Neste país, a maioria dos temas de política externa não levam pessoas às ruas e por isso são facilmente esquecidos. Mas este é diferente, porque captou a atenção de vários segmentos da população, que se sentem muito motivados por ele”, garante o investigador do Miller Center ao Observador.
“Por um lado, temos a História única do povo judeu nos Estados Unidos, que provoca um ativismo significativo. E, é claro, agora temos também um ativismo movido por um sentimento de injustiça entre aqueles que são críticos da situação em Gaza”, afirma. A conclusão deste veterano das presidências é clara: “Este não é um conflito banal.” Tão pouco banal que, acreditam muitos, pode mesmo custar a reeleição a Joe Biden.
“Não Comprometido”. A diferença que meio milhão de votos de árabes-americanos podem fazer em estados cruciais
O primeiro sinal veio do Michigan.
“Olá, daqui é o Abdualraham, da campanha ‘Não Comprometido’ do Michigan. Estamos a telefonar-lhe a propósito de um cessar-fogo em Gaza. O senhor é eleitor no estado do Michigan?” Foi com este discurso que o oftalmologista Abdualrahman Hamad, de 38 anos, começou todas as suas chamadas telefónicas para promover a campanha “Não Comprometido” naquele estado, como revelou ao canal Al-Jazeera. O objetivo era simples: convencer os eleitores democratas do Michigan que defendiam um cessar-fogo em Gaza a não apoiarem Joe Biden nas primárias daquele estado, em fevereiro, escrevendo antes no boletim de voto “Não Comprometido”.
O Michigan não foi o ponto de partida desta campanha por acaso. Com 200 mil eleitores muçulmanos e mais de 300 mil pessoas de origem árabe, o estado é terreno fértil para eleitores que dão prioridade ao tema Gaza. E representa uma tendência nacional, como indicam as sondagens do Instituto Árabe-Americano de James Zogby: se em 2020 Biden reunia o apoio de 59% do eleitorado árabe do país, neste momento ele não irá além dos 17%. “A maioria daqueles que votaram em Biden em 2020 não tencionam voltar a fazê-lo em novembro”, alerta. “Isso não significa que vão votar em Trump; provavelmente ou não vão votar de todo ou apoiam um terceiro candidato.”
Os protestos já eram ruidosos há muito e contavam com alta participação de árabe-americanos. Desde o início da ofensiva em Gaza, Biden tem sido frequentemente recebido em público com gritos de “Joe Genocida” e até a pergunta “Quantos mataste hoje?” — uma referência às palavras de ordem que muitos manifestantes contra a guerra do Vietname gritavam ao Presidente Lyndon B. Johnson.
As primárias do Michigan foram o primeiro teste para compreender se o descontentamento se traduzia em ações concretas. E assim foi: mais de 100 mil eleitores (cerca de 13% de todos os que votaram nas primárias democratas do estado) escreveram no boletim de voto “Não Comprometido”. A professora Nazita Lajevardi, da Universidade Estatal do Michigan, explica as contas ao Observador: “Em 2020, o Presidente Biden venceu neste estado com uma diferença de 154 mil votos, com mais de 145 mil muçulmanos a irem às urnas”, nota. “Esta margem curta, aliada ao tamanho considerável da campanha ‘Não Comprometido’, deviam deixar a administração Biden nervosa. Se todos estes eleitores não forem votar ou votarem num terceiro candidato, Biden pode bem perder o estado.”
É certo que não há uma correspondência direta entre os 154 mil votos de diferença e todos os votos de eleitores muçulmanos. Mas “quando a margem é tão curta”, alerta a investigadora, “os eleitores que se preocupam muito com a situação em Gaza podem fazer a diferença num estado como o Michigan — que é crucial para vencer o colégio eleitoral”.
E as más notícias para Biden continuaram a acumular-se nos meses seguintes. A campanha “Não Comprometido” alastrou-se a outros estados que podem ser decisivos nas eleições, como o Minnesota, o Wisconsin e a Carolina do Norte. Ao todo, nota James Zogby, foram “meio milhão de eleitores” a optarem por esta solução nas primárias do partido. Os relatos que surgem da comunidade árabe em alguns destes estados são quase unânimes: embora a maioria destes eleitores não queiram votar em Donald Trump no próximo mês de novembro, estão dispostos a não apoiar Biden, mesmo que isso lhe custe a eleição. “Conseguirei viver com Trump, porque já sobrevivi a Trump, como meu inimigo”, dizia ao New York Times em fevereiro Nihad Awad, diretor do Conselho para as Relações Islâmico-Americanas. “Não consigo viver sob alguém que finge ser meu amigo.”
A campanha de Biden tem noção do risco que corre se perder estados como o Michigan por causa da reação da população de origem árabe à situação em Gaza. E, até agora, a estratégia tem sido só uma: dizer que com uma presidência Trump a vida será muito pior para estes eleitores. “Donald Trump impôs literalmente uma ‘Muslim ban’ [proibição de o país aceitar imigrantes vindos de alguns países de maioria muçulmana]. Quando falamos em quem é o melhor candidato para os árabe-americanos, o contraste é evidente”, dizia em novembro Jenn Ridder, que foi diretora da campanha de Biden em 2020 a nível estadual.
Resta saber se tal será suficiente para fazer mudar de ideias uma fatia do eleitorado que se sente pessoalmente ligada à situação em Gaza — onde já terão morrido mais de 30 mil civis desde o início desta guerra. James Zogby tem dúvidas: “A lógica de que, chegados a novembro, estes eleitores vão optar pelo ‘menor dos males’ é uma falta de respeito e é perigosa”, decreta. “É uma falta de respeito porque ignora quão profundo é este tema para eles; e é perigosa porque esquece que eles provavelmente vão optar por se abster ou votar num terceiro candidato.”
Black Lives Matter, igrejas e questões económicas. Como Gaza pode afetar o voto afro-americano
Outro sinal já tinha vindo da Carolina do Sul.
No início de janeiro, o Presidente Joe Biden foi até à Igreja Mãe Emanuel AME em Charleston, onde em 2015 houve um massacre com motivações racistas contra a congregação de maioria negra. À partida, era território favorável para o atual Presidente — os eleitores afro-americanos votam há décadas de forma esmagadora no Partido Democrata. Mas eis que, enquanto Biden discursava, três pessoas se levantaram dos bancos da igreja e gritaram “Cessar-fogo, já!”
O protesto foi engendrado pelas delegações locais das organizações Free Palestine e Black Lives Matter. “Como residentes e membros da comunidade de Charleston, sabemos que todas as lutas pela libertação estão interligadas”, justificaram os grupos em comunicado. “As atrocidades cometidas contra os negros nos Estados Unidos e contra os palestinianos em Gaza sempre fizeram parte do mesmo sistema de violência.”
O acontecimento certamente fez soar alarmes dentro do Partido Democrata: estará a situação em Gaza a contribuir para afastar de Biden não só os árabes-americanos, mas também os eleitores negros?
Christopher Shell, investigador do Carnegie Center especializado no impacto da política externa no eleitorado afro-americano, diz que não é exatamente assim. “A maioria dos americanos negros considera que a forma como Biden tem lidado com Gaza desde o 7 de Outubro não influenciou a forma como se sentem relativamente ao Presidente”, diz ao Observador este académico, com base nos estudos de opinião que tem levado a cabo. “Mas temos visto um aumento entre aqueles que dizem sentir-se ‘pior’ relativamente ao Presidente.” A grande maioria, diz, fazem parte de uma fatia muito concreta da comunidade: jovens entre os 18 e os 29 anos, mais politizados e ligados a movimentos sociais como o Black Lives Matter.
As sondagens refletem a tendência. Um estudo publicado esta segunda-feira pelo Washington Post dá conta de que, entre os afro-americanos com menos de 30 anos, Biden passou de 56% de taxa de aprovação para 55% de taxa de rejeição em apenas um ano.
E os números, garante Shell, mostram que a tendência está a começar a alastrar-se aos mais velhos: “Inicialmente, era apenas um grupo pequeno que se preocupava com o conflito israelo-palestiniano. Mas, à medida que a guerra avança, está a começar a chamar a atenção de outros que, em circunstâncias diferentes, não ligariam ao tema.” Em seis meses, o número de afro-americanos que dizem sentir-se próximo dos palestinianos subiu de 32% para 45%, segundo os estudos deste investigador. “E creio que o que está a alimentar isto é o papel que os líderes negros religiosos têm tido neste assunto”, sentencia.
Igrejas como a Mãe Emanuel AME de Charleston são essenciais para consolidar tendências de voto entre parte do eleitorado norte-americano. E, desde o 7 de Outubro, muitas têm começado a tomar posições públicas sobre o tema, exigindo acima de tudo um cessar-fogo em Gaza. Em novembro, 900 líderes religiosos ligados a igrejas negras publicaram um anúncio no New York Times a exigir isso mesmo. Barbara Williams-Skinner, co-fundadora da Rede Nacional de Clérigos Afro-Americanos, explicou ao mesmo jornal a tomada de posição: “O clero negro sempre considerou que a guerra, o militarismo, a pobreza e o racismo estão ligados”, afirmou. “A guerra de Israel em Gaza, ao contrário do Irão ou do Afeganistão, provocou uma angústia profunda entre os negros como não se via desde o movimento pelos Direitos Civis.”
Se em tempos a comunidade afro-americana chegou a ver pontos de contacto entre si e a minoria judaica, ao longo do tempo a proximidade com os palestinianos foi-se tornando maior. Um movimento que Christopher Shell explica por assentar numa ideia de internacionalização da mesma luta: “Podemos falar de Malcolm X, de W. E. B. Du Bois, até de Martin Luther King. Todos consideravam que, para combater o racismo nos Estados Unidos, era necessário ter em conta os outros povos oprimidos, quer fossem os vietnamitas ou os colonizados em África. E daí que não tenha demorado até os palestinianos passarem a ser vistos pela comunidade como um povo ameaçado, colonizado por uma outra nação opressora — Israel. Quer fosse no século XX, quer agora, a lógica é a mesma: a de que a libertação dos negros não acontece no vácuo, que a nossa luta está ligada à luta de outros.”
Com o crescimento de movimentos como o Black Lives Matter, associados às mortes de jovens negros por agentes brancos da polícia, os laços entre as comunidades negra e palestiniana estreitaram-se: basta pensar em como há um mural com o rosto de George Floyd (negro que morreu asfixiado às mãos de um polícia em 2020) na Cisjordânia ou como a delegação do Black Lives Matter de Chicago se associou inicialmente ao Hamas após o 7 de Outubro, partilhando uma imagem de um paraquedista como os que desceram sobre o festival Re’im e mataram dezenas (o grupo pediu posteriormente desculpa e apagou a publicação).
Para além das ligações ideológicas de alguns, presentes sobretudo entre os negros mais jovens, outros membros deste eleitorado começam a afastar-se de Biden neste tema por razões diferentes: “Há um aspeto monetário”, nota Shell. “Financiamos Israel com 16 milhões de dólares e muitos afro-americanos sentem-se desiludidos, porque os seus problemas financeiros, como as dívidas de empréstimos para estudar, continuam a existir.”
Todas estas hesitações podem ser decisivas a 4 de novembro. Em 2020, Joe Biden contou com um apoio em massa dos negros americanos (92%), quase igualando o que Barack Obama obteve (93%) e superando o de Hillary Clinton (88%). Em alguns estados-chave, esses votos podem ter feito a diferença — e podem vir a fazê-lo se estes eleitores optarem por ficar em casa ou votarem num terceiro candidato.
Christopher Shell arrisca dizer que a campanha de Biden está atenta e já começou a posicionar-se — com este eleitorado, o cálculo é de que não chega aplicar a estratégia de invocar o “mal menor” por oposição a Trump, como tem sido feito com os árabes-americanos. Não terá sido por acaso, diz o investigador, que a vice-presidente Kamala Harris (também ela de ascendência afro-americana) se posicionou publicamente a favor de um cessar-fogo em Gaza, no mês de maio. “Ela fez essas declarações em Selma, uma localidade que é chão sagrado para o movimento dos Direitos Civis nos EUA. Juntar estes dois pontos parece-me claramente estratégico e uma resposta da administração àquilo que veem como um afrouxar do apoio [negro].”
A questão, acrescenta, é que essa posição “pode ter vindo tarde”. “Mas não creio que o Presidente esteja completamente alheado destes eleitores”, afirma o investigador. “Estamos a assistir a uma tentativa de recalibragem.”
Dos judeus moderados ao “Esquadrão” mais à esquerda, o Partido Democrata reposiciona-se
Muitos outros sinais têm vindo diretamente de dentro do Partido Democrata.
A exigência de um cessar-fogo em Gaza já não é feita apenas por movimentos inorgânicos de ativistas — é também defendida, por exemplo, por alguns sindicatos historicamente próximos dos democratas. A postura de aproximação de Biden a Israel está a ser criticada até por financiadores regulares do partido. E, ao longo dos últimos meses, têm sido vários os protestos e até demissões dentro do próprio governo contra a política da administração nesta matéria.
Apesar de o Partido Democrata contar com vários congressistas claramente alinhados com Israel, até entre os mais centristas (incluindo alguns de origem judaica) começam a surgir iniciativas para alertar a administração de que a situação em Gaza se pode tornar numa suscetibilidade, como foi o caso de uma carta a apelar a um cessar-fogo publicada por vários congressistas em fevereiro.
Figuras de relevo dentro do partido, como David Axelrod, começaram a deixar alertas a Biden em público: “O homicídio de sete heróicos trabalhadores da World Central Kitchen em Gaza deve ser uma clara linha vermelha”, avisou o antigo conselheiro de Barack Obama.
The murder of seven heroic World Central Kitchen workers in Gaza should be a bright red line. Israel has the right to defend itself against barbaric acts of terrorism, not to indiscriminately kill innocents or valiant men and women who are working to save them from starvation.
— David Axelrod (@davidaxelrod) April 3, 2024
Ao mesmo tempo, a ala mais à esquerda do partido enfrenta as suas próprias convulsões. Senadores tidos como mais radicais, como Bernie Sanders e Elizabeth Warren, enfrentaram rebeliões internas do seu staff (e, no caso de Sanders, até uma invasão do seu gabinete) por não exigirem claramente um cessar-fogo — ambos os congressistas já o fizeram entretanto.
O tema Gaza não perdoa e tem obrigado progressivamente muitos políticos democratas a reverem as suas posições. Até mesmo na ala dentro do partido que muitos consideram de extrema-esquerda, apelidada de “O Esquadrão”: Alexandra Ocasio-Cortez, que na sua primeira campanha evitou ao máximo pronunciar-se sobre o Médio Oriente, foi recentemente encurralada por manifestantes pró-Palestina na rua por não ter ainda usado a palavra “genocídio” para classificar a operação militar israelita em Gaza (desde então, já o fez em pleno Congresso).
Para muitos democratas pró-palestinianos, a posição de Ocasio-Cortez não é firme o suficiente como a de outras colegas do “Esquadrão”. É o caso de Rashida Tlaib, congressista de origem palestiniana que promoveu o movimento “Não Comprometido” e invoca slogans como “Palestina livre, do rio até ao mar”, ou de Ilhan Omar, congressista que apoiou o protesto da Universidade de Columbia (onde participou a sua filha), chegando a apelar à proteção de todos os estudantes judeus, mesmo que fossem “pró-genocídio”.
Posições radicais para muitos democratas mais moderados, mas que refletem cada vez mais o posicionamento de uma fatia do eleitorado do partido, como nota a professora Nazita Lajevardi: “Podem chamar-lhes de extrema-esquerda, mas estas congressistas estão mais alinhadas com grande parte do eleitorado democrata nesta matéria do que o resto do partido. As suas posições são incrivelmente mainstream”, diz, referindo-se sobretudo à questão do cessar-fogo, apoiado pela maioria dos norte-americanos segundo as sondagens.
Os ecos da convenção democrata de 1968. Será Gaza o Vietname de Biden?
O tema deixa cada vez mais nervosos muitos dos congressistas e operativos do Partido Democrata, que começam a rever posições e, nalguns casos, a radicalizá-las, para tentar responder aos anseios de parte do eleitorado. E, no meio de tudo, os avisos a Biden para que mude de curso repetem-se. No fim-de-semana passado, por exemplo, o senador Bernie Sanders dramatizou: “Este pode bem ser o Vietname de Biden”, disse, numa entrevista à CNN.
Bernie Sanders referia-se aos protestos nas universidades, o último sinal de que a situação em Gaza se está a tornar num verdadeiro problema eleitoral para Joe Biden. Por um lado, tem grandes franjas do seu eleitorado profundamente desiludidas ao ponto de possivelmente não votar nele; por outro, se for demasiado brando com as manifestações pode alienar parte do eleitorado mais centrista, desagradado com a perceção de algum antissemitismo e com pavor a cenários de caos.
“Um público irado não é um bom cenário para um incumbente que quer ser reeleito”, nota Russell Riley. “Qualquer combustível extra vai aumentar as chamas e é por isso que a questão de Gaza é, neste momento, tão aguda.” O desafio, diz o historiador veterano, é conseguir “baixar a temperatura” — e o cenário ideal para o Presidente seria o fim das hostilidades em Gaza, algo que parece estar longe de acontecer para já.
Em março, num grande trabalho publicado pelo seu biógrafo Evan Osnos na revista New Yorker, um dos conselheiros do Presidente resumia ao jornalista que o verdadeiro efeito da guerra na campanha dependerá da sua duração: “O que mais importa é perceber se isto é uma coisa de três ou quatro meses ou se está para durar.”
Dentro da equipa do atual Presidente, vão-se dando passos para tentar não perder por completo o eleitorado jovem, com foco nas redes sociais — “Tento falar com os meus familiares mais jovens e eles são criaturas de outro planeta. As pessoas vivem dentro de silos”, desabafava há poucos dias um voluntário da campanha ao Washington Post.
Nada de novo, diz ao Observador o analista eleitoral Kyle Kondik, que relembra como Biden sempre teve dificuldades junto do eleitorado mais jovem. O que não significa, contudo, que o Presidente não esteja preocupado com o impacto dos protestos: “Biden e outros democratas já sugeriram que os protestos após a morte de George Floyd e especificamente o slogan ‘Retirar os fundos à polícia’ os podem ter prejudicado na eleição de 2020”, afirma o investigador da Universidade da Virgínia. “Tenho a certeza que estão preocupados com a possibilidade de estes protestos os prejudicarem agora em 2024 e estão a tentar responder.”
O problema é que, nota o académico, é um equilíbrio difícil de alcançar. “[Biden] tem tentado reunir o apoio à esquerda ao tentar distanciar-se de Benjamin Netanyahu e enfatizando políticas como o perdão das dívidas dos empréstimos escolares”, explica Kondik. “Mas Biden também tem de prestar atenção ao eleitorado centrista — daí talvez as suas declarações recentes a criticar os protestos universitários”. Em causa estão as afirmações do Presidente após o desmantelamento do acampamento na UCLA: “O vandalismo, a violação de propriedade privada, o partir janelas, o fechar os campus, o obrigar a cancelar aulas… Nada disso é um protesto pacífico”, afirmou, naquelas que foram as suas primeiras palavras mais duras sobre o tema.
Do outro lado, o Partido Republicano está à espreita e pronto para retirar dividendos de uma possível perceção de fraqueza do Presidente. Trump já se pronunciou, declarando a limpeza do acampamento de Columbia como “uma coisa linda de se ver” e questionando se estes manifestantes irão receber “o mesmo tratamento” que foi dado aos invasores do Capitólio a 6 de janeiro.
Rich Lowry, diretor da revista conservadora National Review, deixou um aviso ao Presidente, invocando uma vez mais a comparação com a guerra do Vietname: na sequência dos protestos de 1968, lembrou o jornalista, a guerra do Vietname tornou-se a principal prioridade para os eleitores nas sondagens, mas era imediatamente seguida pelo crime e insegurança. “A escolha simples entre um candidato visto como forte e que enfatiza a ideia da ordem e um Presidente visto como fraco e que liderou com desordem — dentro e fora de portas — joga a favor de Trump”, notou.
Se o protesto da Universidade de Columbia tem ecos do ano de 1968, o verão que aí vem também pode vir a tê-los. Em agosto, a convenção do Partido Democrata que deverá entronizar Joe Biden como candidato à presidência terá lugar em Chicago. Há 56 anos, a convenção do partido aconteceu precisamente na mesma cidade e ficou profundamente marcada pelos protestos nas ruas contra a guerra do Vietname, que terminaram em violência.
Por essa altura, marcado pelo desastre em curso no Vietname, o Presidente Lyndon B. Johnson já tinha anunciado que não se candidataria. Mas o seu escolhido sucessor, Hubert Humphrey, acabou por também não conseguir ser eleito, depois de a convenção de Chicago ter sido o rosto do caos e da desordem nas ruas — beneficiando o adversário, Richard Nixon, que acabaria eleito. “Foi uma catástrofe”, reconheceu o candidato democrata. “Senti que tínhamos estado num naufrágio.”
Irá a História repetir-se? E, poeticamente, logo na mesma cidade? Tudo não passa provavelmente de “um exagero”, dizem alguns dos analistas ouvidos pelo Observador. “Em 1968, os jovens americanos estavam a ser recrutados para lutar no Vietname. Era uma situação de vida ou morte”, resume Kyle Kondik.
Russel Riley concorda e relembra outros acontecimentos marcantes e violentos da primeira metade desse ano, “que abriram caminho para Chicago”, como os homicídios de Martin Luther King e Robert Kennedy, bem como os vários motins por todo o país ligados às desigualdades raciais. “Não estamos, de todo, perto das divisões de 1968”, assegura o especialista nas presidências norte-americanas. “Mas esse é um parco conforto hoje em dia, numa altura em que — por razões que os historiadores ainda terão de apurar — os americanos parecem estar prontos a atirarem-se às gargantas uns dos outros, fazendo recordar esse período.”