Quando, no final de 2016, Rodrigo Vaiapraia editou 1755 com as Rainhas do Baile, o mundo mudou. Ou melhor: devia ter mudado. Um objeto punk-rock-queer-desabafo, direitinho aos nossos corações e ao nosso “eu” mais retraído e secretamente revolucionário. De então para cá, tocou em muitas salas, diferentes palcos e foi carregado em ombros por seguranças de festivais. Disse-nos que isso de andarmos a ser outra coisa um dia teria que acabar. Provavelmente, não o ouvimos. Ou simplesmente não seguimos o seu conselho. Esperamos que nos possa perdoar e que agora nos encontremos, como “pêssegos fora da estação” (já explicamos mais à frente), num tempo em que tudo o que é fruta parece saída do Entroncamento.
As Rainhas do Baile seguiram outro caminho, embora ainda as consigamos ouvir. Vaiapraia continua, com outras pessoas, a seguir por ali, um sítio sempre em mutação. Pelo meio, uma edição que convém não ficar perdida na internet: o single de três temas chamado “Amor Duro”, que já fez 2018 coisa mais leve. E agora, através de uma quantificação do seu carisma, escala que nunca nos tinha passado pela cabeça, tenta fazer de 2020 um momento mais suportável.
Em 2019, participou em dois espectáculos de teatro — um para a Plataforma285 e outro para o Cão Solteiro – e continua a escrever para palco. Ou seja: está entre nós, no trabalho e nesta conversa que se segue, que começou por uma questão de identidade.
[“É Que À Noite”, do álbum “100% Carisma”:]
De onde vem este nome artístico?
A certa altura tinha que escolher um nome. A história não é muito apelativa, portanto, das duas uma, ou conto sempre a mesma história ou invento uma.
Qual vai ser esta?
Vou contar como foi. Estava no secundário e as músicas que fazia não eram muito animadas. Era a solo, só a minha voz e um teclado. Queria, por antítese, arranjar um nome que não me puxasse para baixo e que tivesse mais luz. Todos os dias chegava junto de uma amiga com um nome novo e quando cheguei com este, ela disse: “É giro, mas não vai ficar”. Bom, ficou. E acho que também se relaciona com o facto de imensas bandas que ouvia na altura terem nomes relacionados com o mar.
Mas gostas de ir à praia, pelo menos?
Sim.
Já experimentaste ir neste tempo pandémico?
Sim, pareceu a mesma coisa. Mas já ouvi histórias de drones da polícia nas praias, para que exista um certo controlo, mas não sei se é verdade. E a praia onde fui ainda não estava concessionada, estavam a pôr o passadiço de madeira, os toldos, por aí.
A pandemia influenciou muito este disco? Estava pensado para sair antes?
Estava pensado para sair nesta altura. Este período foi uma influência na medida em que houve atrasos na produção do disco e dos envios. Acho que o efeito da pandemia foi mais a nível pessoal, começamos a pensar na precariedade dos artistas e de qualquer trabalhador intermitente, sobretudo aqueles que dependem da presença de outras pessoas para cumprir o seu trabalho. É assustador. É preciso entender que há uma necessidade concreta de se criar um estatuto de intermitência, de existir uma carteira profissional séria. Acho que houve uma série de pessoas que nunca falaram umas com as outras dentro do setor da cultura que começaram a perceber que independentemente de estarem em antípodas no seu lugar estético, na forma como criam, nas suas prioridades, em termos laborais estavam todas no mesmo barco… claro que umas num barco mais confortável que outras. Sindicalizei-me durante esta pandemia e apelei às pessoas próximas para o fazerem.
Mas isso pode ter desvirtuado as coisas que dizes no disco? Ou continua a fazer sentido o que lá está dito?
Isso não mudou nada. Não quero ser presunçoso, mas acho que até acentua algumas coisas. A pertinência da atualidade tem um peso. A liberdade de fazer discos, ou pelo menos da maneira como eu os faço, é que sou eu que percebo o que é para mim relevante no momento. Isso é muito importante.
Dizias que o disco já estava feito. Quando é que começou a ser pensado?
Com outra formação lancei um disco em novembro de 2016 [1775]. Em termos de pensamento, ainda esse não tinha saído e já estava a pensar neste, ainda não sabia o que iria ser. Foi acontecendo. Ao longo de 2018 e 2019, a minha banda teve muitas mutações de formação e este disco acabou por ter a forma das várias pessoas que foram entrando e saindo. No verão de 2019, estivemos em ensaios e a ver os arranjos, eu, o Adriano Sintra e o Luís Severo, depois fomos gravar para o estúdio da Cuca Monga em Alvalade. Agosto, setembro, foi o período mais intenso, e depois foram-se ultimando coisas.
O single de 2018, o “Amor Duro”, ainda conta com as Rainhas do Baile. Depois a coisa perde-se, é isso?
Sim. Houve três formações diferentes dentro das Rainhas do Baile e depois, para mim, deixou de fazer sentido, especialmente porque estava muito relacionado com as pessoas que foram deixando de pertencer às Rainhas do Baile. Se já nenhuma delas estava na banda, então pronto, sou eu agora e as pessoas que se quiserem juntar a mim nesta espécie de movimento.
[“100% Carisma” para ouvir na íntegra através do Spotify:]
Isso trouxe diferenças.
Trouxe, especialmente na ideia de que isto é um projeto colaborativo, mas que começou enquanto projeto a solo, e as pessoas que agora estão têm uma postura diferente. Nas Rainhas do Baile era tudo mais dividido, era uma coisa mais fechada entre nós, que tinha coisas positivas, uma vez que havia uma cena de amizade muito forte, que também há na banda atual, claro. Mas acho que há menos peso e tensão, mas também há mais abertura, é menos intenso e isso permitiu dar mais foco a outros aspetos. Anteriormente as coisas ocorriam de uma forma muito orgânica, eram desabafos que levávamos ao ponto de fazer deles canções. Agora é mais mais ponderado, há mais tempo.
Porque 100% Carisma?
Há uma canção em que digo isso, não é um método novo, queria usá-lo. O 1755 era como contar uma coisa ao ouvido para que depois fosse espalhada. Agora não. É diferente se queres contar algo de uma forma mais secretista ou mais aberta. Há coisas com as quais já me sinto mais confortável. E também acho que há uma coisa importante para fortalecer a ideia do 100% Carisma, que é o facto de ter tocado significativamente mais entre 2017 e 2019.
Entre um disco e o outro.
Sim, tocar ao vivo e em vários espaços diferentes, que é uma coisa importante para mim, fez-me pensar que é disso que gosto, ou seja, o disco é bom porque faz com que as pessoas que não podem ir aos concertos o oiçam, mas o importante é irem aos concertos porque é aí que ativo uma série de coisas que não consigo passar no disco. É uma espécie de equação: se ao vivo há coisas que não há no disco, no disco tem de haver coisas que não há ao vivo. Foi um bocado essa a conclusão, porque o 1755 tinha uma abordagem diferente, é cru, é isto, nem vamos gravar digital, vamos gravar em fita que gera este ruído e que faz com que algumas pessoas se afastem do disco. Agora não, vamos fazer uma coisa polida, bonita, e vamos tentar meter camadas.
Já te sentes à vontade para fazer música mais polida.
Isso sempre tive. Tem a ver com os temas e com as coisas de que falo, não tem a ver com estética, isso são fases, são decisões.
Mas, portanto, carisma é algo que tens?
Gostava de ter. Em cima do palco tenho muito mais do que na vida.
Este disco é mais bem-comportado?
Não. Acho que é outra coisa. Na verdade, há sempre imensa pressão para as pessoas inovarem e fazerem um desvio na carreira, se fizeram um disco de rock a seguir deviam fazer um disco de trap e depois de techno.
Isso é que seria uma carreira.
Neste novo disco há duas músicas que têm exatamente a mesma progressão de acordes em tempos diferentes, se estivesse muito preocupado em ser muito original não ia fazer isso. O mais importante é contar uma história e fazer com que uma pessoa saia do lugar onde está e pense nela.
Mas também há inúmeras referências gastronómicas. É meio aleatório?
Não, não. Começou a surgir de uma maneira aleatória, mas depois comecei a pensar porque é que acontece tanto, porque é que penso tanto nisso. Há um lado muito direto e instintivo que é: gosto de comer. Mas depois há um lado que ultrapassa isso que tem a ver com uma vontade de pensar em ideias como fome e apetite, uma questão em que penso muito: qual é a linha entre fome e apetite, o que é a gula? O que é comer de mais, o que é estar satisfeito, porque é que nunca estou satisfeito, perceber que como é que o sistema digestivo faz um paralelo tão preciso com a maneira como consumimos na sociedade. No início surgia só, até porque como muito e gosto de comer, coisas variadas. Mas também há uma questão de imagem, de me sentir desconfortável com o meu corpo, nunca soube o que é isso, de me sentir confortável com o meu corpo.
E a comida também serve a metáfora. Por isso pergunto: o que é ser um “pêssego fora da estação”, ideia que ouvimos no disco?
A ideia de um pêssego fora da estação é só sentirmo-nos deslocados, as pessoas quando falam da fruta fora da estação é a fruta que não querem comer, é uma fruta um bocado artificial ou que ainda não está boa. Sentir isso é sentir que não se é desejado, que não se é natural na ordem das coisas. E isso é uma coisa que está bastante presente.
[“Fogo Fera”:]
E que te persegue?
Não me persegue, mas acontece às vezes. E, de alguma maneira, mais ou menos, as pessoas no geral sentem isso.
Há algumas referências a festas e a drogas. Serve, como a gastronomia, essa possibilidade de metáfora, ou é algo mais literal?
Há coisas que têm a ver comigo e com a noção de dependência de algo, da mesma maneira como coloco a comida nesse sítio, a comida como um muleta emocional. Para outros seria uma droga, ou outra droga, ou o ambiente. Esse ambiente… e por mim falo, as pessoas por vezes ficam tão consumidas dessas dependências, que não conseguem estar lá umas para as outras. Não estou a dizer isto de forma moralista, estou só a dizer isto porque foram coisas que aconteceram. É preciso ter cuidado para não entrar num registo de “não às drogas”, porque também acho que isso não leva a lado nenhum, acho que os problemas não está nas drogas, está na forma como as pessoas as usam. E sim, acho que vem de experiências literais, de desencontros e ausências e saudades e pessoas que já não estão por causa disso. Vem daí, sim.
Recentemente fizeste alguns trabalhos em teatro. Na estreia do “Passevite” [espectáculo da Plataforma285, estreado em Junho de 2019 na Appleton – Associação Cultural] dizes algo como: “O público do teatro é muito aborrecido”.
Ah sim, isso estava fora do guião.
Claro que estava. Há uma diferença entre públicos da música e do teatro?
Há uma diferença grande. Muita gente vai parar a um concerto sem querer propriamente estar lá e acabam por acontecer encontros interessantes, há mais casualidade, tem essa dimensão inesperada. No teatro, há um público específico. Que vai variando, mas que não varia com a mesma facilidade. Não há públicos melhores, nem piores, e também não gosto de espectáculos interativos: “vai, agora tu fazes de Rei Mago”. O que senti é que quando estou em palco com a minha banda e digo uma piada qualquer que não tem piada nenhuma, as pessoas riem-se. E ali estava a esforçar-me imenso e ninguém se ria. O que é que se estava a passar? As pessoas têm pudor. E ninguém está a beber, é um fator importante. Está tudo mais sóbrio e inibido.
E relativamente ao espectáculo em si, já tinhas trabalhado com a Plataforma285?
Já tinha feito uma música para um outro espectáculo deles, o “You Need Heart To Play This Game” [Fevereiro de 2018, Teatro Municipal Maria Matos]. E depois eles chamaram-me para este projeto e foi muito intenso, a equipa — ou seja, os atores, mais a Raquel Bravo e a Beatriz Vasconcelos — fez tudo. Não tem nada a ver com a experiência que tive no Cão Solteiro. As tarefas de cada um estavam muito delineadas, como numa produção mais normal.
Havia dinheiro.
Exato, e apoio. Enquanto que com a Plataforma285 estávamos em modo “como é que fazemos isto?”. Era preciso ir buscar placas de piscina algures no Ribatejo, fomos a Setúbal buscar a carrinha da minha tia para fazer esse tipo de coisas DIY. Na verdade, não é nada de novo para mim, tocar em sítios meio estranhos, ter que fazer as coisas. Há dias, o Filipe Sambado partilhou uma foto de um concerto dele num bar em Setúbal, eu estava meio a organizar o concerto e não me lembrei que era preciso um suporte para o microfone, então estive o tempo todo sentado numa cadeira a segurar o microfone para ele conseguir tocar guitarra.
Ou seja, esse espírito também tem a sua graça.
Sim, até certa idade. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. É bom conseguir fazer as coisas sem ter os recursos, mas também é bom conseguir ser o mais independente possível, saber pescar, saber onde estão as coisas.
Encontraste um pouco isso com o Cão Solteiro, no “Could Be Worse: The Musical”. Como é que aparece o convite e como foi a experiência?
Foi o André Godinho.
Ele já te conhecia?
Sim, ele foi a alguns concertos, tanto ele, como a produtora, a Joana Dilão. Quem fez a música do espectáculo foi o PZ, mas eles queriam ter alguém que fizesse uma música com uma função específica, de romper um bocado as coisas, e esse convite foi feito. Mas, lá está, é um mundo diferente, foi feito dois anos antes de começarmos a ensaiar, achei que nunca ia acontecer. Muitas vezes pedem-me algo e a coisa depois não chega a avançar. Mas aqui foi para a frente e foi muito incrível, gostei muito de conhecer todo o elenco, trabalhar com a Paula Sá Nogueira e com a Mariana Sá Nogueira, a maneira como trabalham, as histórias que têm. Ali mesmo respiram-se ideias de entreajuda e o trabalho é mesmo horizontal. Temos um dizer sobre tudo. E foi importante para mim, não é que tenha muito texto.
E um espectáculo em nome próprio? Ou seja, os teus concertos têm um lado performativo importante, mas algo para lá de um concerto…
Já fiz uma espécie de um solo, mas foi numa festa da Xita Records. Também fiz umas leituras na festa da Plataforma. Mas sim, é uma coisa que gostava de fazer. Estou a escrever uma coisa que não é música e que mistura vários géneros literários.
Estás a escrever agora?
Sim, sim.
Ouviremos falar disso depois.
Esperemos que sim.
[“Comidas do Infinito”:]