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Sandro Bernardo e Márcia Monteiro começam a ser julgados esta quarta-feira
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Sandro Bernardo e Márcia Monteiro começam a ser julgados esta quarta-feira

Sandro Bernardo e Márcia Monteiro começam a ser julgados esta quarta-feira

Valentina. Os vários sinais que não provocaram suspeitas

Testemunhas dizem que Valentina era tratada com distanciamento. E foi vista com nódoas negras e derrames nos olhos. Mas ninguém percebeu o que se passava. Julgamento começa esta quarta-feira.

Logo no primeiro dia de férias, a madrasta não deu comida a Valentina: ela não pedia, por isso também não lhe dava. A explicação que Márcia Monteiro deu à amiga apenas a deixou mais intrigada. Especialmente porque contrastava com a forma como tratava os outros dois filhos. Andreia Rodrigues acabou ela por fazer uma massa com salsichas, mais tarde, e dar à criança então com 8 anos: comeu tudo e ficou “agradada”. Os pais é que não gostaram que lhe tivesse dado comida sem a sua autorização — isso ficou evidente, na sua perceção.

Andreia e o marido tinham decidido, naquele verão de 2019, ir acampar com Márcia Monteiro e Sandro Bernardo, os dois filhos do casal e Valentina, filha apenas deste último. Só que as férias duraram apenas dois dias. O casal acabou por decidir interrompê-las antes do tempo e afastar-se mesmo da família: não aguentavam mais ver Valentina a ser tratada como uma verdadeira “gata borralheira”. Havia “uma relação muito estranha e de distanciamento” com ela. Por exemplo, ao contrário dos irmãos, que tinham cada um o seu fato de banho para ir à praia, a rapariga usava umas cuecas largas e velhas da madrasta — o que era suficiente, na perspetiva de Márcia. Depois, “passavam o tempo a ralhar” com ela “por tudo e por nada”, contrastando mais uma vez com a forma como tratavam os outros filhos, segundo consta no processo consultado pelo Observador.

Logo nesse primeiro dia de férias, à noite, Valentina ficou sozinha na sua tenda, afastada da família que estava reunida a ver televisão. Andreia foi encontrá-la a chorar e ficou ali a consolá-la, mostrando-lhe vídeos no telemóvel, numa tentativa de a acalmar — até Márcia aparecer e deixar claro que não gostava do que se estava ali a passar. Na manhã seguinte, deu o pequeno-almoço aos filhos, mas não a Valentina. Foi a gota de água para Andreia e o marido.

Inspetores da Polícia Judiciária acompanham a madrasta de Valentina Fonseca, a menina de 9 anos que desapareceu na quinta-feira em Peniche, e foi encontrada morta na manhã de domingo, à chegada ao Tribunal de Leiria onde serão presentes a um juiz de instrução para primeiro interrogatório judicial e para serem determinadas medidas de coação, em Leiria, 12 de maio de 2020. PAULO CUNHA/LUSA

A madrasta de Valentina no dia depois de ter sido detida por suspeitas do homicídio da enteada

Paulo Cunha/LUSA

Cerca de um ano depois destas férias, Andreia Rodrigues, funcionária de um supermercado na Atouguia da Baleia, em Peniche, contou estes episódios aos inspetores da Polícia Judiciária (PJ) que estavam a investigar o homicídio de Valentina. Contou-os a 14 de maio de 2020, uma semana depois de a menina ter sido alegadamente assassinada pelo pai e pela madrasta, que terão deixado o seu corpo numa floresta, em Serra d’El Rei— crimes pelos quais começam esta quarta-feira a ser julgados. Ainda assim, estava longe de imaginar que a história da criança que apelidara de “gata borralheira” teria um final destes.

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Oito minutos de convulsões, 13 horas de agonia e um “olhar de súplica”. Como Valentina terá sido morta pelo pai e pela madrasta

A queimadura das costas, a nódoa negra na cara e o derrame no olho. Madrasta dizia que Valentina era “a turista lá de casa”

Andreia também contou à PJ a primeira vez que viu Valentina. Foi no supermercado onde trabalhava. Márcia entrou com a enteada e “comentou que a menina tinha uma grande queimadura nas costas, do lado direito”, segundo consta no processo consultado pelo Observador. Teria sido provocada por gelo. É que, segundo a madrasta, Valentina “tinha-se queixado de dores e tinham posto gelo na zona afetada e, por descuido, veio a queimar-lhe a pele“. Comentou ainda que já tinha “gasto dinheiro com pomadas e nada”. À PJ, Andreia admitiu que achou “a situação estranha” já que se Valentina se “queimasse com o gelo e sentisse dor, seguramente já se queixava porque tinha 8 anos”. A suspeita intensificou-se quando, meses mais tarde, chegou a ver a mancha da queimadura: tinha uma “cor escura” e não lhe pareceu que tivesse sido provocada por gelo.

Andreia admitiu que achou "a situação estranha" já que se Valentina se "queimasse com o gelo e sentisse dor, seguramente já se queixava porque tinha oito anos". A suspeita intensificou-se quando, meses mais tarde, chegou a ver a mancha da queimadura: tinha uma "cor escura" e não lhe pareceu que tivesse sido provocada por gelo.

Até nas idas mais banais ao supermercado, Andreia notava que Márcia se referia à enteada “de forma depreciativa”. “Dizia que era a turista lá de casa, como se fosse persona non grata“, explicou à PJ, segundo consta no processo. As declarações de Adriana Sousa, a dona do supermercado onde Andreia trabalhava, confirmaram a perceção da funcionária: “[Márcia] referia-se a Valentina como a turista, como se a menina fosse um fardo“.

As suspeitas levantadas por várias testemunhas à PJ não se ficaram pela forma como a criança era aparentemente tratada. Rui Martins, atualmente casado com a avó materna de Valentina, disse à PJ que chegou a ver a criança com uma “pequena nódoa negra na cara”. A mãe, Sónia Fonseca, disse-lhe que tinha batido num móvel em casa dela”.

Sandro, Sónia e Valentina. A história da família que nunca existiu

Também a ama, Ana Martins Pinto, contou que Valentina “apareceu com uma marca junto ao olho esquerdo e um derrame no interior”. A mãe “não quis levar a menina ao hospital” e pôs-lhe pomada. “Disse que se tinha magoado na casa do pai num baloiço”, contou a ama. Mais tarde, quando estava sozinha com Valentina, tentou falar com ela para tentar saber se havia algo mais. A criança “negou ser agredida”, mas ainda acrescentou que “também se tinha aleijado numa perna a andar de bicicleta na casa do pai”.

O pai de Valentina na reconstituição do crime feita pela PJ

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Valentina viria a morrer em maio de 2020, de acordo com a autópsia, por “asfixia associada a lesões cranianas”. Terá sido, segundo a acusação, violentamente agredida pelo pai, que lhe deixou “lesões profundas” e queimaduras no corpo, provocadas por água a ferver. Sandro disse à PJ que suspeitava que a filha estava a ser abusada sexualmente e que apenas lhe estava a tentar arrancar uma confissão à força — embora, mais recentemente, numa carta intercetada pelos serviços prisionais, aponte responsabilidades à mulher, Márcia Monteiro.

Um ano antes do crime, Valentina desapareceu de casa. Polícia ligou ao pai, mas não atendeu a chamada

De pijama, sozinha, junto a uma rotunda de Peniche, Valentina foi encontrada “a vaguear” por um polícia que andava a patrulhar a zona — aconteceu nem um ano antes de ter morrido. A criança, então com 8 anos, pediu ao agente da PSP para “lhe dar uma boleia até ao Bombarral à casa da sua mãe”, consta no processo consultado pelo Observador. Questionada pelo polícia, a criança explicou que o pai estava na sua casa em Peniche. O polícia acabou por levar a criança até à esquadra e, lá, tentou contactar Sandro Bernardo — mas ninguém atendeu a chamada. A polícia chegou mesmo a ir a sua casa procurá-lo, mas ninguém abriu a porta.

Às 18h45, depois de várias tentativas de encontrar o pai, a polícia acabou por contactar a mãe, que se deslocou à esquadra. Sensivelmente à mesma hora, também Sandro apareceu no posto para comunicar o desaparecimento da filha — que afinal já ali se encontrava. Garantiu à PSP que já estava à sua procura desde as 14h00. Já depois do homicídio, a sua mulher, Márcia Monteiro, disse à PJ que tudo aconteceu quando Sandro se deitou no sofá a descansar, já que trabalhava à noite, e disse à filha para ir brincar no quarto. “Acordou com barulho da porta a bater, procurou a filha e decidiu deslocar-se à PSP, tendo encontrado lá a Valentina”, contou à PJ.

Valentina foi encontrada "a vaguear" por um polícia que andava a patrulhar a zona — aconteceu nem um ano antes de ter morrido. A menina então com oito anos pediu ao agente da PSP para "lhe dar uma boleia até ao Bombarral à casa da sua mãe"

O episódio foi até averiguado pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) — logo nesse dia, uma técnica superior deslocou-se à esquadra, analisou a situação e falou com os progenitores. Valentina acabou por ser entregue ao pai, depois de ambos concordarem que seria o melhor. À data, a criança foi sinalizada e a conclusão a que a CPCJ chegou — de que fora um episódio isolado e que não havia sinais de maus tratos — levou a que o processo fosse arquivado um mês depois.

A madrasta garante que tentou perceber o que se tinha passado, mas a criança “nada esclareceu”. Também a mãe garantiu à PJ que nesse dia “estiveram várias horas às conversa com uma psicóloga e perguntaram à Valentina, muitas vezes, o porquê de ter fugido de casa”. Mas a criança, segundo Sónia Fonseca, nunca “soube dar nenhuma resposta e nunca esclareceu”. “A Valentina não se queixou nem do pai, nem da Márcia ou dos irmãos, apenas saiu de casa como se fosse algo natural”, contou. À PJ, Sónia disse ainda julgar que a filha só queria “chamar a atenção” e que, na altura, a psicóloga lhe terá dito que Valentina “fazia um jogo duplo com os pais” — dizendo “coisas diferentes em casa do pai e em casa da mãe”.

Valentina falou com a mãe pela última vez um dia depois das primeiras agressões. Estava “murcha” e não lhe apetecia brincar

Valentina estava há um mês e meio na casa do pai quando foi agredida pela primeira vez — e também quando falou com a mãe pela última vez. Tinha ido para lá passar uma temporada. A criança não tinha telemóvel e era a madrasta que ia mandando mensagens a Sónia a dizer como estava a filha. No Dia da Mãe, celebrado a 2 de maio, Márcia perguntou-lhe se queria falar com a mãe. “Pode ser”, respondeu. À PJ, a madrasta contou que, depois de ter falado com Sónia, Valentina terá ficado “um pouco murcha” — o que atribuiu ao facto de ter saudades. Raul Monteiro, o filho mais velho de Márcia, também contou que Valentina ficou “inativa” e “não lhe apetecia brincar”.

O crime terá acontecido no primeiro andar desta casa, na Atouguia da Baleia

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

O facto de ter sido agredida no dia anterior podia ser uma possível explicação. No dia 1 de maio, pela manhã, Sandro confrontou a filha com uns “papelinhos” que teria trocado com colegas de escola e que, segundo a acusação do MP, teriam um conteúdo de natureza sexual. Foi depois de Valentina ter admitido ao pai que tinha sido ela a escrever os tais “papelinhos” que a terá ameaçado com violência: “Colocou uma colher de pau em cima da mesa da cozinha disse à filha que batia com ela se a mesma não falasse”. Depois, deu-lhe “diversas palmadas, com muita força” nas pernas, segundo o MP. Sandro acabou por ir para o seu quarto, deixando Valentina a fazer os trabalhos da escola na cozinha, com a madrasta. Mas, logo depois, foi chamado de novo à cozinha pela companheira porque a filha “tinha algo mais para lhe dizer”.

Valentina terá contado, então, aos dois que o tal padrinho “lhe dava presentes” e que tinha práticas sexuais com ela, segundo é descrito na acusação. Seguiram-se novas agressões: Sandro deu várias palmadas à filha, nas pernas, “com muita força” e “bateu-lhe nas mãos com a colher de pau”, deixando-lhe marcas no corpo que acabariam por ser detetadas na autópsia, realizada semanas depois, detalha o MP.

No Dia da Mãe, Sónia perguntou à filha se queria que a fosse buscar, mas Valentina disse que não. Quando foi ouvida pela PJ, os inspetores quiseram saber por que razão, em quase dois meses, Sónia apenas falou com a filha uma vez ao telefone — o que ela “não soube explicar”. Disse apenas que Valentina não gostava de falar ao telefone e costumava sempre despachá-la.

Estas testemunhas vão voltar a ser ouvidas, desta vez no julgamento que arranca já esta quarta-feira, podendo assim contar estes episódios aos juízes. A primeira pessoa a falar — depois de Márcia e Sandro, se assim o desejarem — será Sónia, a mãe de Valentina.

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