Logo no primeiro dia de férias, a madrasta não deu comida a Valentina: ela não pedia, por isso também não lhe dava. A explicação que Márcia Monteiro deu à amiga apenas a deixou mais intrigada. Especialmente porque contrastava com a forma como tratava os outros dois filhos. Andreia Rodrigues acabou ela por fazer uma massa com salsichas, mais tarde, e dar à criança então com 8 anos: comeu tudo e ficou “agradada”. Os pais é que não gostaram que lhe tivesse dado comida sem a sua autorização — isso ficou evidente, na sua perceção.
Andreia e o marido tinham decidido, naquele verão de 2019, ir acampar com Márcia Monteiro e Sandro Bernardo, os dois filhos do casal e Valentina, filha apenas deste último. Só que as férias duraram apenas dois dias. O casal acabou por decidir interrompê-las antes do tempo e afastar-se mesmo da família: não aguentavam mais ver Valentina a ser tratada como uma verdadeira “gata borralheira”. Havia “uma relação muito estranha e de distanciamento” com ela. Por exemplo, ao contrário dos irmãos, que tinham cada um o seu fato de banho para ir à praia, a rapariga usava umas cuecas largas e velhas da madrasta — o que era suficiente, na perspetiva de Márcia. Depois, “passavam o tempo a ralhar” com ela “por tudo e por nada”, contrastando mais uma vez com a forma como tratavam os outros filhos, segundo consta no processo consultado pelo Observador.
Logo nesse primeiro dia de férias, à noite, Valentina ficou sozinha na sua tenda, afastada da família que estava reunida a ver televisão. Andreia foi encontrá-la a chorar e ficou ali a consolá-la, mostrando-lhe vídeos no telemóvel, numa tentativa de a acalmar — até Márcia aparecer e deixar claro que não gostava do que se estava ali a passar. Na manhã seguinte, deu o pequeno-almoço aos filhos, mas não a Valentina. Foi a gota de água para Andreia e o marido.
Cerca de um ano depois destas férias, Andreia Rodrigues, funcionária de um supermercado na Atouguia da Baleia, em Peniche, contou estes episódios aos inspetores da Polícia Judiciária (PJ) que estavam a investigar o homicídio de Valentina. Contou-os a 14 de maio de 2020, uma semana depois de a menina ter sido alegadamente assassinada pelo pai e pela madrasta, que terão deixado o seu corpo numa floresta, em Serra d’El Rei— crimes pelos quais começam esta quarta-feira a ser julgados. Ainda assim, estava longe de imaginar que a história da criança que apelidara de “gata borralheira” teria um final destes.
A queimadura das costas, a nódoa negra na cara e o derrame no olho. Madrasta dizia que Valentina era “a turista lá de casa”
Andreia também contou à PJ a primeira vez que viu Valentina. Foi no supermercado onde trabalhava. Márcia entrou com a enteada e “comentou que a menina tinha uma grande queimadura nas costas, do lado direito”, segundo consta no processo consultado pelo Observador. Teria sido provocada por gelo. É que, segundo a madrasta, Valentina “tinha-se queixado de dores e tinham posto gelo na zona afetada e, por descuido, veio a queimar-lhe a pele“. Comentou ainda que já tinha “gasto dinheiro com pomadas e nada”. À PJ, Andreia admitiu que achou “a situação estranha” já que se Valentina se “queimasse com o gelo e sentisse dor, seguramente já se queixava porque tinha 8 anos”. A suspeita intensificou-se quando, meses mais tarde, chegou a ver a mancha da queimadura: tinha uma “cor escura” e não lhe pareceu que tivesse sido provocada por gelo.
Até nas idas mais banais ao supermercado, Andreia notava que Márcia se referia à enteada “de forma depreciativa”. “Dizia que era a turista lá de casa, como se fosse persona non grata“, explicou à PJ, segundo consta no processo. As declarações de Adriana Sousa, a dona do supermercado onde Andreia trabalhava, confirmaram a perceção da funcionária: “[Márcia] referia-se a Valentina como a turista, como se a menina fosse um fardo“.
As suspeitas levantadas por várias testemunhas à PJ não se ficaram pela forma como a criança era aparentemente tratada. Rui Martins, atualmente casado com a avó materna de Valentina, disse à PJ que chegou a ver a criança com uma “pequena nódoa negra na cara”. A mãe, Sónia Fonseca, disse-lhe que tinha batido num móvel em casa dela”.
Sandro, Sónia e Valentina. A história da família que nunca existiu
Também a ama, Ana Martins Pinto, contou que Valentina “apareceu com uma marca junto ao olho esquerdo e um derrame no interior”. A mãe “não quis levar a menina ao hospital” e pôs-lhe pomada. “Disse que se tinha magoado na casa do pai num baloiço”, contou a ama. Mais tarde, quando estava sozinha com Valentina, tentou falar com ela para tentar saber se havia algo mais. A criança “negou ser agredida”, mas ainda acrescentou que “também se tinha aleijado numa perna a andar de bicicleta na casa do pai”.
Valentina viria a morrer em maio de 2020, de acordo com a autópsia, por “asfixia associada a lesões cranianas”. Terá sido, segundo a acusação, violentamente agredida pelo pai, que lhe deixou “lesões profundas” e queimaduras no corpo, provocadas por água a ferver. Sandro disse à PJ que suspeitava que a filha estava a ser abusada sexualmente e que apenas lhe estava a tentar arrancar uma confissão à força — embora, mais recentemente, numa carta intercetada pelos serviços prisionais, aponte responsabilidades à mulher, Márcia Monteiro.
Um ano antes do crime, Valentina desapareceu de casa. Polícia ligou ao pai, mas não atendeu a chamada
De pijama, sozinha, junto a uma rotunda de Peniche, Valentina foi encontrada “a vaguear” por um polícia que andava a patrulhar a zona — aconteceu nem um ano antes de ter morrido. A criança, então com 8 anos, pediu ao agente da PSP para “lhe dar uma boleia até ao Bombarral à casa da sua mãe”, consta no processo consultado pelo Observador. Questionada pelo polícia, a criança explicou que o pai estava na sua casa em Peniche. O polícia acabou por levar a criança até à esquadra e, lá, tentou contactar Sandro Bernardo — mas ninguém atendeu a chamada. A polícia chegou mesmo a ir a sua casa procurá-lo, mas ninguém abriu a porta.
Às 18h45, depois de várias tentativas de encontrar o pai, a polícia acabou por contactar a mãe, que se deslocou à esquadra. Sensivelmente à mesma hora, também Sandro apareceu no posto para comunicar o desaparecimento da filha — que afinal já ali se encontrava. Garantiu à PSP que já estava à sua procura desde as 14h00. Já depois do homicídio, a sua mulher, Márcia Monteiro, disse à PJ que tudo aconteceu quando Sandro se deitou no sofá a descansar, já que trabalhava à noite, e disse à filha para ir brincar no quarto. “Acordou com barulho da porta a bater, procurou a filha e decidiu deslocar-se à PSP, tendo encontrado lá a Valentina”, contou à PJ.
O episódio foi até averiguado pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) — logo nesse dia, uma técnica superior deslocou-se à esquadra, analisou a situação e falou com os progenitores. Valentina acabou por ser entregue ao pai, depois de ambos concordarem que seria o melhor. À data, a criança foi sinalizada e a conclusão a que a CPCJ chegou — de que fora um episódio isolado e que não havia sinais de maus tratos — levou a que o processo fosse arquivado um mês depois.
A madrasta garante que tentou perceber o que se tinha passado, mas a criança “nada esclareceu”. Também a mãe garantiu à PJ que nesse dia “estiveram várias horas às conversa com uma psicóloga e perguntaram à Valentina, muitas vezes, o porquê de ter fugido de casa”. Mas a criança, segundo Sónia Fonseca, nunca “soube dar nenhuma resposta e nunca esclareceu”. “A Valentina não se queixou nem do pai, nem da Márcia ou dos irmãos, apenas saiu de casa como se fosse algo natural”, contou. À PJ, Sónia disse ainda julgar que a filha só queria “chamar a atenção” e que, na altura, a psicóloga lhe terá dito que Valentina “fazia um jogo duplo com os pais” — dizendo “coisas diferentes em casa do pai e em casa da mãe”.
Valentina falou com a mãe pela última vez um dia depois das primeiras agressões. Estava “murcha” e não lhe apetecia brincar
Valentina estava há um mês e meio na casa do pai quando foi agredida pela primeira vez — e também quando falou com a mãe pela última vez. Tinha ido para lá passar uma temporada. A criança não tinha telemóvel e era a madrasta que ia mandando mensagens a Sónia a dizer como estava a filha. No Dia da Mãe, celebrado a 2 de maio, Márcia perguntou-lhe se queria falar com a mãe. “Pode ser”, respondeu. À PJ, a madrasta contou que, depois de ter falado com Sónia, Valentina terá ficado “um pouco murcha” — o que atribuiu ao facto de ter saudades. Raul Monteiro, o filho mais velho de Márcia, também contou que Valentina ficou “inativa” e “não lhe apetecia brincar”.
O facto de ter sido agredida no dia anterior podia ser uma possível explicação. No dia 1 de maio, pela manhã, Sandro confrontou a filha com uns “papelinhos” que teria trocado com colegas de escola e que, segundo a acusação do MP, teriam um conteúdo de natureza sexual. Foi depois de Valentina ter admitido ao pai que tinha sido ela a escrever os tais “papelinhos” que a terá ameaçado com violência: “Colocou uma colher de pau em cima da mesa da cozinha disse à filha que batia com ela se a mesma não falasse”. Depois, deu-lhe “diversas palmadas, com muita força” nas pernas, segundo o MP. Sandro acabou por ir para o seu quarto, deixando Valentina a fazer os trabalhos da escola na cozinha, com a madrasta. Mas, logo depois, foi chamado de novo à cozinha pela companheira porque a filha “tinha algo mais para lhe dizer”.
Valentina terá contado, então, aos dois que o tal padrinho “lhe dava presentes” e que tinha práticas sexuais com ela, segundo é descrito na acusação. Seguiram-se novas agressões: Sandro deu várias palmadas à filha, nas pernas, “com muita força” e “bateu-lhe nas mãos com a colher de pau”, deixando-lhe marcas no corpo que acabariam por ser detetadas na autópsia, realizada semanas depois, detalha o MP.
No Dia da Mãe, Sónia perguntou à filha se queria que a fosse buscar, mas Valentina disse que não. Quando foi ouvida pela PJ, os inspetores quiseram saber por que razão, em quase dois meses, Sónia apenas falou com a filha uma vez ao telefone — o que ela “não soube explicar”. Disse apenas que Valentina não gostava de falar ao telefone e costumava sempre despachá-la.
Estas testemunhas vão voltar a ser ouvidas, desta vez no julgamento que arranca já esta quarta-feira, podendo assim contar estes episódios aos juízes. A primeira pessoa a falar — depois de Márcia e Sandro, se assim o desejarem — será Sónia, a mãe de Valentina.