Há quatro condições que assinalam à comunidade científica que uma nova variante do coronavírus é motivo de preocupação: ser mais transmissível do que as outras variantes; ter mais virulência e causar uma doença mais grave; a capacidade de fintar a imunidade desenvolvida após uma infeção natural (provocando casos de reinfeção); ou a possibilidade de escapar às medidas de saúde pública, como a vacinação, os tratamentos estabelecidos para a doença e o rastreio, por exemplo.
Não se tem a certeza ainda se a variante B.1.617, identificada originalmente a 5 de outubro do ano passado na Índia, obedece a algum destes parâmetros. E, por isso, não se sabe se é mesmo ela a responsável pela nova onda que está atingir o país — desde meados de fevereiro que o número de novos casos detetados diariamente pelas autoridades de saúde tem subido vertiginosamente, atingido pela primeira vez os 99.260 casos esta terça-feira. Mas tudo indica que sim e a situação no terreno é caótica o suficiente para fazer soar todos os alarmes.
É que a B.1.617 é uma “dupla mutante”: tem 13 mutações, mas há duas especialmente inquietantes — a E484Q e a L452R. Nenhuma delas é completamente desconhecida dos especialistas: a primeira, mais comum, é semelhante a uma mutação verificada nas variantes de Manaus e de África do Sul; a segunda já tinha sido observada na variante da Califórnia. Mas juntas nunca tinham sido detetadas. E “se uma já simbolizava um possível problema, as duas ao mesmo tempo indiciam um problema ainda maior”.
João Gonçalves, virologista da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, explicou ao Observador que ambas as mutações acontecem na proteína S, precisamente na região que o vírus utiliza para se unir ao recetor da célula e infetá-la. Mais do que isso, é possível que a variante indiana esteja mais apta a escapar aos anticorpos que o sistema imunitário produz após a administração das vacinas, sobretudo nas pessoas que já têm uma imunidade mais fragilizada, e que seja capaz de causar mais reinfeções. Mas é cedo para ter a certeza.
O diabo está nos detalhes. Como trocar duas peças basta para tornar a variante mais forte
Imagine que tem em cima da mesa duas mãos cheias de ímans, uns com cargas elétricas positivas, outros com cargas elétricas negativas e alguns com carga neutra. Se os largar ao acaso para formar um colar e deixar que se organizem sem intervenção, os ímans vão juntar-se de acordo com as suas características: aqueles que tiverem cargas elétricas iguais vão repelir-se e os que tiverem cargas elétricas diferentes vão unir-se. No entanto, se tirar um íman com carga positiva e colocar outro com carga negativa, o colar vai ter de se reorganizar.
É isto que acontece também com a estrutura do SARS-CoV-2 quando sofre uma mutação, compara Miguel Castanho, bioquímico do Instituto de Medicina Molecular. A mutação E484Q significa que o ácido glutâmico, o aminoácido (peças que compõem as proteínas) que existia na posição 484, foi substituído por outro composto — a glutamina. E no caso da mutação L452R, na posição 452, a leucina foi substituída por uma arginina. Isto podia não significar nada e resumir-se apenas a particularidades microscópicas do vírus. Mas não será esse o caso.
É que, como os novos aminoácidos têm cargas elétricas diferentes dos que lá estavam antes, toda a proteína S foi obrigada a reajustar-se para acomodar as novas peças — tal como o nosso colar de ímans tem de se reajustar se um deles for substituído por outro com carga diferente. O problema é que isso determinou que a proteína S da variante indiana tivesse configurações diferentes, e mais vantajosas para ele, em duas partes críticas: aquela que encaixa com o recetor das células, tornando-o mais infeccioso, e aquela a que os anticorpos contra o SARS-CoV-2 se unem, tornando-o mais resistente à resposta imunitária — tanto a induzida pela vacina, como a produzida após uma infeção natural.
Ou seja, mesmo não se sabendo com toda a certeza se a nova variante é a responsável pela onda de novos casos na Índia (outros fatores podem estar em jogo, como as fragilidades do serviço nacional de saúde ou o cumprimento das regras de saúde pública pela população), uma coisa parece certa para o bioquímico: a B1.617 “tem todas as condições para ser uma variante de preocupação”. “Parece uma variante comparável, em termos de efeito, com o que já se observou no Brasil e África do Sul”, concretizou Miguel Castanho.
Variante indiana pode ser mais resistente às vacinas, mas tem um calcanhar de Aquiles
O surgimento de variantes como a indiana preocupam os dois peritos entrevistados pelo Observador: por serem mais infecciosas, também têm uma maior capacidade de se multiplicarem no interior das células. Mais vírus em circulação significa uma maior probabilidade de surgirem novas mutações; e apesar de muitas delas serem inócuas para o vírus e de outras serem tão desvantajosas que condenam aquela nova linhagem ao desaparecimento, é possível que as alterações tragam pontos a favor do SARS-CoV-2.
Isso pode ser especialmente alarmante agora que há cada vez mais pessoas vacinadas contra a Covid-19, nota João Gonçalves: se alguma variante for bem sucedida, à medida que mais e mais pessoas são vacinadas, isso simboliza que poderá conseguir fintar a imunidade . “Nesta altura, quanto mais variantes aparecem, pior é, se forem capazes de se espalhar, porque significa que têm mais capacidade de escapar à nossa imunidade”, resumiu.
Com a variante indiana, só o futuro o dirá. Mas é possível que tenha um calcanhar de Aquiles. Presente neste momento em 70% dos genomas enviados pela Índia para o GISAID — uma base de dados que condensa toda a leitura genómica dos vírus da gripe e agora do vírus da Covid-19 —, esta variante apareceu originalmente em Maharashtra (um estado do centro oeste) e em Bengala Ocidental. Só depois se espalhou por toda a Índia e daí para outros 21 países. No Reino Unido, por exemplo, a prevalência aumentou de 0,1% para 1% (10 vezes mais) em três semanas.
No entanto, o crescimento não foi exponencial em todos os estados da Índia, nem em todos os países onde ela foi identificada. Em algumas das regiões indianas inicialmente mais atingidas, a circulação da B1.617 começou mesmo a decrescer a partir de certa altura — algo que não se observou com as variantes do Reino Unido, de Manaus ou de África do Sul, por exemplo. Para o especialista, isso significa que deve haver fatores de risco que tornam certas pessoas mais propensas a serem infetadas e desenvolveram Covid-19 com esta variante.
“Partimos do principio que o grupo populacional mais afetado por esta variante é o dos indivíduos que têm pouca imunidade, como as pessoas com alguma comorbilidade que ainda não foram vacinadas, os idosos ou as que têm um sistema imunitário com uma capacidade mais baixa”, descreveu João Gonçalves. Ou seja, pode haver alguns fatores de risco que permitem à variante indiana disseminar-se mais facilmente, visto que o seu crescimento não é homogéneo. Mas essas condições fatores de risco estão por identificar.
Caos na Índia: o metal dos crematórios já está a derreter de tanto trabalharem
Nada disto descansa os indianos, nem a comunidade internacional, pelo menos por agora. A partir de sexta-feira, a Índia vai constar na lista vermelha do Reino Unido: quem entrar em território britânico terá de cumprir uma quarentena obrigatória de 10 dias num hotel indicado pelo governo, todos os viajantes serão testados e qualquer amostra positiva vai ser sequenciada. São poucos os casos de infetados com a B1.617 que estiveram na Índia, mas a maioria esteve em contacto com pessoas que tinham regressado de viagem dias antes.
O próprio primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, não vem ao Porto para a Cimeira União Europeia-Índia, que estava marcada para 8 de maio, precisamente por causa da situação epidemiológica que se vive no país — vai antes participar por vídeochamada. Em Nova Déli, o país entrou no início da semana num confinamento obrigatório que deve durar sete dias, na esperança de controlar a pressão que a pandemia está a exercer sobre os hospitais, onde o oxigénio já falta nas unidades de cuidados intensivos.
Em Gujarat, na região oeste da Índia, o metal que compõe os fornos crematórios está a derreter porque, na urgência de tratar o número crescente de vítimas mortais, as estruturas nunca chegam a arrefecer. As autoridades de saúde indicaram esta segunda-feira que mais 428 pessoas morreram de Covid-19 nas últimas 24 horas, mas só o número de cremações ultrapassa esses valores: a ordem é que toda a gente sob a mínima suspeita de estar infetada com o SARS-CoV-2, mesmo que esse não seja o motivo do óbito, seja tratado como um doente Covid-19.
Num crematório em Ahmedabad, a chaminé de um forno colapsou porque tem sido utilizada 20 horas por dia nas últimas duas semanas. Em Lucknow, num crematório que trata apenas corpos de pessoas infetadas, houve seis dias deste mês em que o número de cadáveres cremados foi o dobro das mortes por Covid-19 oficializadas para a cidade inteira, pondo em causa o rigor da contagem oficial. Em dois crematórios dessa cidade, as famílias recebem senhas de espera — uma espera que chega às 12 horas. O preço é 20 vezes superior ao praticado antes da pandemia e as famílias têm de levar a própria madeira.
E mesmo assim não chega: há relatos (e imagens, que têm enchido os telejornais na Índia) de cadáveres envoltos em lençóis, mantidos dentro dos carros fúnebres alinhados na rua enquanto os familiares esperam pela cremação. Numa reportagem da Agence France-Presse (AFP) em Nova Déli, os jornalistas testemunharam a presença de cadáveres à espera para serem enterrados nos cemitérios, que estão sem espaço para mais funerais. Nos crematórios já se fazem piras fora dos fornos para acelerar o número de cremações.