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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Vicente Alves do Ó: "Há muita gente a escrever cinema, mas muito pouca gente boa"

“Golpe de Sol” é o novo filme de Vicente Alves do Ó. Uma homenagem a vidas mal resolvidas no tempo em que "vai ficar tudo bem". Em entrevista, o realizador fala de cinema, política e amor.

Que atire a primeira pedra quem nunca teve uma história de amor mal resolvida. E mais: esta frase podia fazer parte tanto no novo filme de Vicente Alves do Ó, “Golpe de Sol” (que se estreia dia 13 de agosto, produzido pela Ukbar Filmes), como podia ser dita pelo próprio. O realizador português que se tem ocupado nos últimos anos a fazer biopics de grandes símbolos da cultura portuguesa — “Florbela”, “Al Berto”, “Amadeo” (este último ainda por estrear) — resolveu atirar-se para uma história metida na gaveta durante anos. Uma daquelas que surgiu num outro agosto, inspirada por longas conversas entre amigos à beira da água, regadas a copos e tabaco. Das que começam de forma leve e logo se tornam em grandes reflexões sobre a vida.

Neste filme, Francisco (Nuno Pardal), Joana (Oceana Basílio), Simão (Ricardo Barbosa) e Vasco (Ricardo Pereira) gozam uns dias de férias alentejanas em Grândola, em paz, pelo menos até serem interrompidas por um telefonema de David: um amante comum que está de regresso, mas que nunca se vê. Cai a mentira, volta o passado e a catarse nunca chega realmente a acontecer. Amor ferido em todo o lado. Um cenário, um incêndio lá ao fundo mas que nada interessa e conversa. Muita. Como nos filmes de Ingmar Bergman, de quem Alves do Ó é fã incondicional.

As portas nunca se fecham. O fim é aberto. Os heróis não se salvam. Regras cinematográficas que Vicente Alves do Ó quis desmontar para homenagear quem nunca consegue resolver os traumas. “O cinema tenta recompensar o herói por ter passado por tanta dificuldade. Aqui não”, conta nesta longa conversa com o Observador.

O realizador, que aos 27 anos foi de Sines para Lisboa com um guião comprado (que resultou no telefilme “Monsanto”), nunca mais parou de escrever. Alves do Ó sabia que, mesmo querendo estar atrás das câmaras, a escrita seria o primeiro passo — e ainda hoje é o seu principal ofício, o tal que, diz-nos, não tem sido bem estimado pelos guionistas portugueses.  “Há muita gente a escrever, mas pouca boa”, diz.

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Confessa que gostava de ser um “Woody Allen da vida”, de estar sempre a filmar, mas sabe que, por viver num país com um “sistema perverso” de financiamento público para o cinema, onde há pouco dinheiro para muitos, esse caminho é difícil. E, por vezes, até “venenoso”. Porque ter já uma carreira consolidada não quer dizer nada. Amanhã, pode nem ser possível ligar a câmara. “Fiz esses filmes todos e posso estar cinco anos sem filmar. Não quer dizer nada. As coisas não funcionam assim em Lisboa. Tenho filmado, contra muita gente, e, de vez em quando, tenho júris que me acham graça e dizem que o filme tem de ser feito. Há quem vá bater à porta do ICA perguntar como é que é possível eu ganhar. É muito feio”, afirma. É o que dá ser um “outsider”, com poucos amigos no meio, que não fez o Conservatório e é workaholic.

[o trailer de “Golpe de Sol”:]

Está a estrear um filme no meio de uma pandemia. Acredita que as pessoas vão ver?
As pessoas estão a ir muito pouco ao cinema. Isto especialmente para as salas não está a correr muito bem. Tem a ver com o medo de estar num espaço fechado, confinadas. Espero que façam a experiência, como fiz, que fui ao teatro e ao cinema, e senti-me mais seguro lá do que no supermercado. Não tenho toda a gente à volta a mexer em tudo, das arcas às portas dos congeladores ou nos multibancos. No cinema não, entro, sento-me, vejo o filme, posso comer pipocas, a saída é organizada. Mas acho que o espaço ainda perturba um bocadinho. E nós, no cinema, somos uma espécie de cavalaria avançada porque a produção norte-americana parou toda, os Estados Unidos são o país mais complicado do mundo no que toca à pandemia.

Isso pode dar uma oportunidade ao cinema europeu?
Acho que a produção norte-americano um dia há de voltar. Aqui o paradigma não é esse, é mais as plataformas digitais contra as salas de cinema. Por exemplo, a Netflix, pelo que li, em dois meses de confinamento, teve mais 13 milhões de assinaturas. Vamos ver se essas pessoas que ficam cada vez mais em casa a ver filmes e documentários nessas plataformas voltam às salas. E se as novas gerações, com tablets vão achar piada ver filmes nas salas de cinema e se vão fazer disso um hábito. Não sei se a pandemia não pode agravar mais esse fosso. De qualquer forma, agora vamos ter o outono, os americanos querem lançar uma série de coisas, mas tenho muitas dúvidas. Talvez lancem na Europa, vamos ver. Ainda há muita gente que gosta de ir ao cinema.

Sobre a Netflix, ainda há pouco tivemos um concurso em Portugal para guionistas. Enquanto realizador e também como argumentista, já está virado para essas plataformas?
Adorava fazer uma série para a Netflix. Acho que toda a gente adorava. Há é umas hipocrisias intelectuais… isso faz-me muita confusão. É fácil dizer que não se pensa nisso quando há alternativas viáveis muito fortes, do ponto de vista intelectual e criativo. No caso português, onde há orçamentos tão baixos para fazer televisão e cinema, imagine o que é um realizador português ter, de repente, uma ideia para uma série que custa 50 milhões, e há alguém que olha para si e diz: “Esta ideia é fantástica, faça”. Isto é o “dream come true”. Gosto de trabalhar com imaginação, ou seja, o desafio da possibilidade da Netflix é ela não ter o travão que, muitas vezes, nos frustra, em relação ao dinheiro que temos aqui e que existe para fazer cinema. Um exemplo: adorava filmar a história do Marquês de Pombal, misturar com o processo dos Távoras e o Terramoto de Lisboa. Vou fazer isso como, com 600 mil euros do ICA?

"Há uma vaidade política em ser ministro. Dizer que não existe é a mesma coisa que dizer que Portugal é perfeito. Isso faz-me confusão. Até admito que as pessoas são inteligentes e cultas. Mas sabem perfeitamente que esse dinheiro que está adjudicado não chega para fazer nada do que é realmente preciso fazer."

É impossível.
Não há dinheiro. Faço a cidade com lego? É melhor estar quieto. Portugal tem um manancial incrível de coisas que podia fazer. Acho que não fazemos porque não temos orçamento, nem dinheiro, vontade política nem vontade das televisões de fazer coisas caras porque vão ser caras. Para um português fazer uma coisa para a Netflix, mais do que estar  a vender-me a um sistema, é poder trabalhar uma vez na vida sem constrangimentos criativos. Poder fazer algo sem pensar no orçamento.

Que papel tem a atual política cultural neste aspeto?
Acho que a ministra [da Cultura] está a especializar-se em deixar recordações polémicas com a sua passagem pelo Ministério. Começou com as touradas, depois no México disse que não lia jornais. Na classe artística as pessoas guardam muito isso porque ficam magoadas. Confesso que não tenho prazer nenhum em atacar a ministra. Acho que está nas mãos do primeiro-ministro fazer da Cultura e daquele Ministério uma prioridade. Ou, pelo menos, dar-lhe um orçamento decente. Mas como não é essa a vontade política e já tivemos três ministros da Cultura, provavelmente vamos ter mais, se ganhar… O problema tem a ver com vaidade.

Política ou do setor?
Se o dr. António Costa me convidasse para ser ministro da Cultura, dizia que não. Para ser achincalhado? Não. Há uma vaidade política em ser ministro. Dizer que não existe é a mesma coisa que dizer que Portugal é perfeito. Isso faz-me confusão. Até admito que as pessoas são inteligentes e cultas. Mas sabem perfeitamente que esse dinheiro que está adjudicado não chega para fazer nada do que é realmente preciso fazer. E ficam muito chateadas quando a classe artística os ataca e vem para a imprensa dizer coisas. É como a velha história de ser secretaria de Estado ou Ministério. Essa questão nem se deveria colocar num país que vende ao mundo inteiro a sua cultura, até como chamariz turístico. Qualquer coisa, lá vai a cultura portuguesa fazer o brilharete. É muito irónico e ridículo ao mesmo tempo.

Então não lhe dá grande esperança ter Nuno Artur Silva, ligado à área dos media, dentro desse Ministério?
Acho que o Nuno Artur Silva é um homem muito atento e conhece muito bem o meio, poderá fazer mais pelo meio do que aquilo que se tem feito. Não sei, estou a tentar perceber. É cedo para mim. Ainda a questão da lei das plataformas, onde se discute se o dinheiro deve ir para o ICA ou para os produtores e para a criação. Acho que deve ir para o segundo, porque não deve ser mais uma vez avaliada por júris. Voltaríamos ao mesmo esquema de sempre. Em última análise, no meio disto tudo, é que “it’s all about money”. Tem tudo a ver com dinheiro. As pessoas atacam-se, acusam-se, criam razões de gosto para uns merecerem e outros não. Não é sobre cinema que elas estão a discutir. É sobre poder e dinheiro. E sobre o dinheiro que está estipulado para o cinema que é uma miséria, quando o cinema é dos que mais viaja. O meu “Al Berto” foi vendido e esteve em mais de 50 países no mundo inteiro. Se isso não é vender bem a cultura portuguesa, não sei o que será. O ICA tem por volta de 20 milhões, com cada vez mais pessoas, andam todos à pancada. “Fui ao festival X, por isso, mereço mais do que tu, que não foste”.

Ricardo Pereira, Ricardo Barbosa, Nuno Pardal e Oceana Basílio são os protagonistas de "Golpe de Sol"

É perverso, o sistema?
Muito. Ninguém na literatura está a discutir quantas traduções é que existe de A, B ou C para dizer se é melhor ou pior escritor. Está-se continuamente à procura de validar as razões de uns ganharem e outros não. Quando a política, a existir, tem de ser pública e abranger toda a gente. Quando segrega, deixa de o ser e não faz serviço público. Por alguma razão todos os portugueses têm direito à saúde e à educação. Porque é que na cultura há artistas de primeira e de segunda, no que toca ao apoio público? Não pode haver.

Se lhe tivessem dito isto tudo quando começou a carreira, tinha dado um passo atrás?
Não. Estaria exatamente no mesmo sítio. Uma vez dei uma entrevista, já não sei onde, e encontrei uma pessoa na secção de poesia da FNAC e alguém veio falar comigo para me avisar.

Conhecido seu?
Uma pessoa que conheço de vista que me avisou que houve gente que leu a entrevista, pediu-me para ter mais calma quando falo com a imprensa. Isto existe em Lisboa.

Isso é quase pidesco.
É pidesco, completamente. Se disser alguma coisa fora do sítio, há malta que vai pegar nisso para usar contra mim.

E isso acontece mesmo depois de já ter feito uma mão cheia de filmes.
Isso não quer dizer absolutamente nada. Fiz esses filmes todos e posso estar cinco anos sem filmar. Não quer dizer nada. As coisas não funcionam assim em Lisboa. Tenho filmado, contra muita gente, e, de vez em quando, tenho júris que me acham graça e dizem que o filme tem de ser feito. E há quem vá bater à porta do ICA perguntar como é que é possível eu ganhar. É muito feio. Mas acho que isto existe porque, se houvesse 40 ou 50 milhões em vez de 20, e em vez de 10 filmes fossem 50, aquilo já seria para toda a gente. E muitos ficavam quietos. Mas há pessoas assim, como eu. Que não fizeram o percurso normal, não vêm de uma boa família de Lisboa, não fizeram o Conservatório nem fazia parte de uma tribo qualquer.

Não frequentava os mesmos meios.
Nada. Venho de Sines, saí com 27 anos para trabalhar em Lisboa. Nem tive tempo nem paciência para essas coisas. Sempre fui e ainda sou um outsider do meio.

Ainda se vê assim?
Completamente.

Porquê?
Porque… agora está um pouco melhor com uma fação. Houve uma altura em que a malta da arte e do ensaio achava que eu era mais da grupeta do comercial. E a malta do comercial, como fazia coisas de poetas, achava que era de ensaio. Portanto não me dava com ninguém [ri-se]. Estava ali no meio. Ainda fiz parte de uma associação de realizadores (APR), para a qual fui convidado, mas vim-me embora porque não me entendi com o que defendiam. Achava que havia muitas coisas importantes para tratar, até mesmo sobre o estatuto profissional de realizador, que eles não queriam saber para nada. Mas como vivo do meu trabalho, para mim era algo importante discutir. Demiti-me e vim-me embora. Nunca me entendi com as associações de realizadores, tenho poucos amigos do meio e sou muito workaholic. Vivo muito para escrever. O meu sonho seria ser o Woody Allen da vida, filmar todos os anos. E fazer filmes e metê-los nas salas de cinema.

"[no 'Golpe de Sol'] Quis construir uma emoção que provocasse um mal estar até no espectador. Porque, na verdade, não resolvemos tudo. Queria focar isso. Especialmente agora que vivemos na tirania da felicidade."

Ser fora do meio, permite-lhe ter uma relação diferente com os atores?
Acho que percebem que gosto muito deles e de escrever para eles. E raramente têm isso. É muito fácil chegar aos atores. E tento sempre descatalogá-los e dar-lhes coisas diferentes face ao que estão habituados a fazer. Também gosto de misturar pessoas que vêm de escolas diferentes. No “Al Berto” tive pessoas que vieram do teatro musical, da dança, outras que fizeram conservatório ou o Ballet Teatro no Porto. Não vinham todos do mesmo sítio. Gosto dessas misturas, porque, tal como a televisão, é um meio que tem uma certa entropia. Muito fechado, difícil de entrar ou dar acesso a pessoas novas. A minha relação com os atores é sempre privilegiada, acho que são todos malucos. E acho que também sou. Está tudo certo.

Há guionistas que gostam de ter mais controlo criativo, outros fazem menos questão. O Vicente, que sempre quis ser realizador, mas começou como argumentista, percebeu que preferia ser os dois?
Nascemos quando as pessoas nos conhecem. Se nos conhecem argumentista, partem do princípio que é o que sempre seremos. A escrita foi a minha porta de entrada para o que queria ser: realizador. Como não entrei no Conservatório nos anos 90, tinha de trabalhar, não tinha outra forma de furar o meio muito, muito, muito fechado, percebi que tinha uma mais valia que deveria explorar. Tinha a noção de que escrevia e que o fazia bem, fazendo também já algum teatro. Lembro-me que, no final dos anos 90, havia falta de argumentistas em Portugal, que eram sempre os mesmos, pouco interessante, havia essa conversa.

Acha que já mudou?
Há muita gente a escrever cinema, mas muito pouca gente boa. Pior é haver pessoas que acho que escrevem coisas más e haver quem diga que é bom. Não percebo porquê, mas estará relacionado com outras razões. Mas sabia que essa era uma mais valia minha e que me pôs em Lisboa, no centro do furacão. Escrevi um argumento, foi comprado na hora e a seguir estava a viver aqui, até hoje. Agora, levei oito anos para fazer a primeira longa. E a partir do primeiro ano em que vivi em Lisboa, todos os anos ia a concurso e perdia. Houve uma altura ridícula em que já tinha feito uma curta-metragem como realizador, já tinha escrito seis longas para outros realizadores que tinham ganho os apoios e eu perdia para um miúdo que, mesmo não tendo feito uma curta-metragem, tinha acabado o Conservatório. Com experiência de nada. Tinha um projeto nas primeiras obras e pontuava mais do que eu, que estava no meio já estabelecido, só porque tinha mais formação. E a certa altura diziam que tinha de realizar, porque daqui a pouco tinha 40 anos e ainda não tinha filmado nada. E depois dá a volta. Quando comecei a filmar perguntavam-me se não me importava de receber malta das escolas para assistir. Aceitava e ainda aceito, e é giro porque os miúdos que se sentavam ao pé de mim diziam: “Muito obrigado, aprendi mais consigo aqui do que em três meses de aulas”. Ouvia aquilo e pensava: “Sabes lá tu o que sofri por causa desses três meses de aula”.

Sente que há algum preconceito no meio, é isso?.
Muito, ainda hoje. Ainda há pouco tempo a Ana Rocha foi selecionada para ir  à secção Horizonte a Veneza com a sua primeira longa metragem, até escrevi no Facebook. Em 2014 foi achincalhada porque fazia parte de um sangue novo de júris do ICA para mudar a forma esquemática e tinha um percurso de atriz, passando pelos “Riscos” e pelos “Morangos com Açúcar”, mesmo tendo estudado cinema. Foi algo horrível. Como se não tivesse autoridade e know how para ler um argumento e capacidade para decidir se um filme deveria ser feito ou não. Graças a Deus que passou, se fosse uma pessoa de uma certa casta estava em todo o lado. Houve gente que até fez de conta que não aconteceu para não se sentir mal do que se disse na altura.

"Optei por fazer com que as pessoas saíssem do cinema com a mesma frustração de alguém que passou dez anos à espera do outro. Porque na vida real às vezes as histórias não se resolvem"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Não podemos é fazer de conta que a Covid-19 não existe. Estes tempos obscuros dão-lhe mais ideias?
Li muito, vi muito cinema e escrevi muito. Não deu para ficar parado. O que fiz foi aproveitar para meter em papel ideias que tinha na cabeça há muito tempo e que ainda não tinha visto se funcionavam. E como houve uma série de concursos abertos do ICA e ainda haverá mais, continuei a escrever. Sei que não vou escrever sobre a pandemia, não tenho paciência. Até porque acho que só se torna interessante daqui a dez anos. Não percebo a necessidade de viver as coisas e pensar sobre elas no imediato. Acho que é preciso um tempo de digestão e também silêncio. Não entendo esses livros todos sobre a pandemia, toda a gente tem uma opinião muito formada sobre os vírus, o que se deve ou não fazer. Esta necessidade de estímulo, agarrados ao telemóvel… A imprensa obriga-se a produzir estímulos, quaisquer que sejam. Sabemos que precisam de encher o jornal, para andarmos ali no feed das redes à procura de coisas para clicar. Acho que é muito cedo ainda.

Portanto, o isolamento não foi um caos ou um período especialmente difícil.
Estes tempos não me tiraram absolutamente nada. Quando não estou a filmar, passo muito tempo em casa. Só senti a diferença social, de não estar com os amigos. Hoje saí para dar uma entrevista, se não tivesse, não tinha saído. Talvez para jantar ou beber um copo, mas nem isso vou, porque não se pode.

Em “Golpe de Sol”, num só cenário, com quatro atores, tenta criar uma narrativa e tensão, do início ao fim. Como é que se molda uma ideia com 10 anos, biográfica, para apenas quatro atores?
O filme começou por ser um exercício de escrita no verão de 2010. Não tinha dinheiro, fiquei em Lisboa, quando ainda ficava deserta. Tinha alguns amigos cá, íamos à praia ou à piscina de um amigo. Estava numa mudança de idade. Lembro-me de pensar que gostava muito de escrever algo geracional e que ainda não o tinha feito. Nessa altura, talvez por estarmos com pouco estímulo, as nossas idas à praia eram regadas a cigarros, jantar fora, beber uns copos e conversar muito. E as conversas mais giras foram à beira da água. Pensava nesse paradoxo de estarmos no verão, com um sol destes, cinco pessoas, com conversas que começavam muito leves e que depois entravam em assuntos mais sérios. Quem olhasse de fora, num dia tão bonito e tão feliz, perguntaria: “Porque razão estão a falar de coisas tão tristes?”.  E pensei que devia agarrar naquilo, mas não sabia como.

Como é que resolveu esse dilema?
Comecei a escrever avulso, porque queria relatar mais as conversas. Se criasse ação, ela perdia-se. Parávamos e falávamos. Ainda por cima sou um grande fã de Bergman e nos filmes dele nunca se calam, nos meus também raramente se calam. Estava em casa. O primeiro guião tinha quase 200 páginas. Depois veio a dramaturgia, um dispositivo que lhe arrancasse as coisas. Só por si não tem interesse. Criei o David e as relações. Foi tudo uma construção. Depois achei que o David não devia aparecer. Porque é que o deveria mostrar, se os Davides da nossa vida nunca aparecem? Porque é que vou enganar as pessoas quando forem ao cinema? Optei por não dar esse bombom, optei por fazer com que as pessoas saíssem do cinema com a mesma frustração de alguém que passou dez anos à espera do outro. Porque na vida real às vezes as histórias não se resolvem. O cinema tem essa tentação. Existe essas regras fantásticas: se o guarda chuva amarelo aparece no início, vai ter de aparecer até ao fim e ter uma função. Existem todas essas regras que a malta da escrita adora e eu uso-as. Aqui apeteceu-me furar, não responder ou resolver tudo. Quis construir uma emoção que provocasse um mal estar até no espectador. Porque, na verdade, não resolvemos tudo. Queria focar isso. Especialmente agora que vivemos na tirania da felicidade.

"Há quem me diga que tenho ser mais estratega. Tenho de meter os filmes em Cannes ou em Berlim, de estudar o que está a ser selecionado. Não consigo ser assim. Adorava ir a esses sítios todos. Só que não consigo fazer estratégia de algo que é tão emocional como fazer um filme."

A ideia do “vai ficar tudo bem”.
Sim, e os restaurantes giros e as praias giras, a comida maravilhosa, a fotografia com a luz certa. Tem de estar sempre tudo certo. Mas atrás disso tudo há toda uma balada do Tom Jobin muito triste.

Os demónios que vamos guardando.
Sim, como era um exercício tive essa liberdade. Depois escrevi tudo e enfiei numa gaveta e fui filmar o “Florbela”.

Mas porque poderia chatear alguém, de tão pessoal que era a história?
Não, não! Os meus amigos que viram adoraram, uns até se riram. Não há pessoas específicas em papéis específicos. Misturei-me a mim e aos meus amigos. Todas as personagens têm algo meu. Fui construindo com base nas coisas que nos tocam a todos. E falei disso com os meus amigos, percebemos que não somos assim tão diferentes. E há coisas que nem dou. Às vezes sou mais elíptico nas descrições para que oiças mais a história emocional.

Sim, porque, além daquilo que os une em relação ao David, pouco sabemos da vida destas personagens.
Sim. É como se fosse uma voz só. Podia ser um homem ou uma mulher que recebia a mensagem, mas estava sozinho à espera da outra pessoa. Foi o que me aconteceu a mim [ri-se]. Se fizesse um filme de alguém a falar sozinho, as pessoas iam achar um pouco estranho. Ou não. Talvez tenha de fazer um filme assim.

Colocar ou não o lado pessoal do artista no trabalho é um tema que será sempre discutido. Um realizador, quando o faz, o que diz isso sobre ele?
Os meus filmes são todos pessoais. Não consigo escrever nem filmar nada com o qual não estabeleça essa relação. Aproximam-se da minha vida ou da minha pessoa. Sei por que motivo fiz a “Florbela”, o “Amadeo” ou porque fiz uma comédia palerma como o “Quero-te Tanto”. Sei as razões todas. E com o tempo vou descobrindo outras que não percebi. O Julian Barnes é que está sempre a dizer isso: todos os livros são biográficos porque são sobre a vida. Acho que isso  não serve para as pessoas considerarem o filme melhor ou pior. Sou um pouco contra isso até porque sou contra a ideia de que quando se faz um filme sobre uma realidade social ele é automaticamente mais bem aceite. Digo sempre que não quer dizer absolutamente nada, porque pode ser mau à mesma. Não justifiquem os filmes pela sua pretensão, mas sim por aquilo que são.

Mas em Portugal, esse lado pessoal é mais ou menos evidente? É possível fazer essa caracterização?
Sim, em Portugal são muito secretos. Há uma distância social sobre o objeto. Não consigo ter essa distância. É muito direta, apaixonada e até zangada. O “Golpe de Sol” é fruto disso, como é também o “Amadeo” e o próximo filme que irei fazer. Até se fizer algo sobre Fernando Pessoa, sei o que é que está lá que é meu. A mim não me chateia falar nisto. Não me dá uma mais valia. Mas é uma forma de dizer que quando trabalho, trabalho sobre mim, sobre o que penso, conheço e sinto. A crítica odiou, disseram cobras e lagartos por ter feito uma comédia com a televisão, que me tinha vendido ao sistema por fazer algo com os atores da TVI. Vendi-me? Mas queria fazer isto há muitos anos. Queria fazer um filme completamente palerma, com o síndrome de Peter Pan que durou até muito tarde, com referências alentejanas, das minhas histórias de infância. Nada ali foi inventado com uma intenção malévola de vender bilhetes de cinema. Foi logo quando vim para Lisboa, esteve 18 anos na gaveta. Porque quando não estou a fazer nada, escrevo guiões. E no verão em que vim, estava sozinho, decidi escrever filmes. Há quem me diga que tenho ser mais estratega. Tenho de meter os filmes em Cannes ou em Berlim, de estudar o que está a ser selecionado. Não consigo ser assim. Adorava ir a esses sítios todos. Só que não consigo fazer estratégia de algo que é tão emocional como fazer um filme.

“O Golpe de Sol” também mostra que histórias mal resolvidas existem em qualquer cenário, com qualquer pessoa.
Podiam ser quatro homens à espera de uma mulher, dois casais à espera de um casal para fazerem uns swings. O que fosse. Escolhi aquela porque foi uma forma de falar no assunto sem falar. Porque o filme não é sobre isso. Por acaso são isto. O que discutem não tem nada a ver com a sua orientação. Achei graça porque em todas as entrevistas, houve quem não falasse no assunto. Quando estive em Itália, só uma pessoa me perguntou, porque disse o que estou a dizer agora.

Mas jornalistas de que países?
Do mundo inteiro.

É que fiz a pergunta por estarmos num país conservador.
Sim, sim, claro. Mas havia nórdicos, franceses, alemães, gente de todo o lado. Mas sim, é um país conservador. Tem um outro lado. Por exemplo, o secretário de Estado emocionou-se quando disse que não tinha morrido ninguém, numa daquelas conferências de imprensa diárias da DGS. De repente, sem saber, conectou-se com as pessoas. Toda a gente estava com ele. O que tento fazer é agarrar as pessoas pelo lado emocional. Há a história do Ricardo Pereira, que acho que é o único que se consegue salvar daquela “dança das bestas” em que aquilo está. O que quero mostrar é que há milhões de pessoas por esse mundo fora que pouco importa com quem vão para a cama porque, no fundo, têm dramas iguais aos de todos.

Também há a questão da meia idade, dos 40 anos como uma espécie de separador. Sobre o facto de, quando se chega lá, olhar-se mais para trás do que para a frente, eventualmente. Isso tinha de estar no filme?
Quando fiz o filme, tinha 38, agora tenho 39. De alguma forma, sempre fui mais velho do que a idade que tinha. E como gosto muito de discutir a psicologia humana, estando os 40 a chegar, era uma coisa que me interessava. O ano passado, curiosamente, a minha psicóloga disse-me que há a crise dos 47. Até há livros sobre isso. O que se percebe é que já passou mais tempo do que aquele que falta. É aí. E começamos a perceber que há coisas que já não vamos viver ou ser. Já temos histórias de amor suficientes para questionar se o amor da nossa vida passou e não percebemos. Será que a pessoa com quem estamos é a certa. É preciso viver um pouco, sim, para se ter essa bagagem. E o filme é um pouco sobre isso.

Então o filme pode não chegar às pessoas mais novas com o mesmo impacto.
Sei de pessoas mais novas que viram o filme e ficaram menos satisfeitas. Porque lhes dava o bombom do David. Mas não sabem lidar com a ideia de frustração, que só acontece nos 30. Esta geração está habituada a ter tudo. Por outro lado, é preciso ter tempo para perceber que dez anos não é nada. Que histórias foram interrompidas, ficam por viver, guardadas numa gaveta e que podem ser reavivadas. Tive alunos a perguntar-me isso, mas tinham 21 anos. Nem tinham dez anos de vida amorosa. Mas sim, é um filme geracional. O tempo é importante porque marca quando chegamos aos 47. É muito líquido e fugaz. Dou um exemplo: às vezes encontro um colega do secundário quando vou ao Alentejo, começamos a falar e a conversa flui logo. Não nos víamos há 30 anos. Porquê? Porque dentro de nós somos múltiplos. Quando ele aparece, a minha inteligência emocional foi ao cérebro, tirou uma versão do Vicente que melhor estaria equipado para comunicar com aquela pessoa. E é o que acontece no filme, porque vamos regredindo na idade, o tempo parece mais líquido.

Como numa cena na piscina, onde “disputam” o David quase como se fosse um troféu. Quem namorou mais tempo, quem teve a relação mais intensa. Acabam quase por ser infantis.
Eles vão voltando para trás, àquele tempo. Um comportamento quase adolescente. Vão ficando cada vez mais inseguros. Olham para o incêndio apáticos como se não fosse nada. O medo daquele reencontro ultrapassa qualquer perigo de vida. Parece que estavam à espera que aquilo acontecesse, mas não se resolve nada.

Não há um fecho. Até há uma arma mais no fim que não sabemos se será usada.
É do Chico, é a personagem mais psicótica. Os homens católicos são os mais violentos [ri-se]. Aquela arma, algures naquela noite, iria aparecer.

Isso já é o Vicente a meter-se com o espectador.
O público está muito habituado a ver uma personagem com um problema. O filme é sobre a resolução desse problema. O filme da minha vida é o “Vertigo”. Usa a artimanha de um homem que vence as suas vertigens. E, hoje em dia, o espectador está habituado a que, no processo de resolução do seu conflito, faça uma espécie de catarse e se resolva. A pessoa sai do cinema descansada, fica tudo encaixotado, vamos embora. O que faço é provocar uma emoção mais agreste: eles passaram por aquele dia, fazem a catarse toda, parece que a resolveram, põem música, está tudo bem, mas cada um, na sua intimidade, percebe que aquela catarse não levou a nada. E normalmente o cinema não filma isto. Vem desde os gregos, esta necessidade de conclusão. Há coisas que não se vão resolver. Traumatizam-nos de tal maneira que nunca nos vão abandonar, mesmo que se faça terapia, se arranje outra pessoa ou se viage. Ficam para sempre. O cinema tenta recompensar o herói por ter passado por tanta dificuldade. Aqui não.

Nem sabemos.
Sim. É uma homenagem às pessoas que não ultrapassam. Talvez para se sentirem representadas. Isto faz-me lembrar o programa “Alta Definição”, quando o Daniel Oliveira pergunta se alguém deve um pedido de desculpas ao convidado. As pessoas ficam perturbadas com aquilo, a maior parte mente. Se se fizesse essa pergunta àquelas quatro pessoas, diriam que sim. Se alguém lhes devia um pedido de desculpas? Muitos. Quem é que tem coragem de dizer isto? Não há. E se disser, alguém vai dizer “resolve-te”. É um filme sobre pessoas mal resolvidas. Acho até que o David é o pior deles todos. É um vírus. Vem contaminá-los. Se escrevesse uma segunda parte, seria um filme de terror.

"Ao longo da vida vamos percebendo que podemos viver vários amores verdadeiros. Pensei que havia um. A minha psicóloga diz o seguinte: quem tem sorte vive um, quem tem muita sorte vive dois, os privilegiados podem viver três. Pior são os que não vivem nem um."

Os atores devem ficar entusiasmados com essa ideia de representar tanto, em tão pouco espaço e tempo.
Sim, mas é difícil. Poucos dias, a carga emocional é muito grande. Não queria trazer tanto o peso do teatro, por isso é que me esforcei no trabalho de câmara, para que não se sentisse isso. Estava mais à procura de cinema. Estou sempre a montar e a desmontar a ideia de um registo demonstrativo.

Queria que o filme tivesse a sua própria personalidade.
Sim. A não resolução, por incrível que pareça… para os atores foi mais interessante não aparecer o David. Perceberam que, sendo protagonistas, a premissa não era correr para o confronto. Sentiram-se mais responsáveis porque, no fundo, o David tinha de estar neles e não noutro ator. Mas perguntavam-me sempre como é que acabava. Inventei sempre versões diferentes. Ou aparecia uma mulher, ou o David morria num incêndio…

Nunca fechar a porta.
Sim. Em homenagem à história que todos temos que nunca se resolveu e que, volta e meia, quando estamos na praia ou quase a adormecer, pensamos na vida e nos perguntamos se, em vez de viver esta história, tivéssemos ido por outro caminho com outra pessoa. O que é que teria acontecido? Começamos a desenhar essa vida paralela. Acho que nós, que não temos a genialidade do Pessoa, que fez essas vidas paralelas, as vamos vivendo na nossa cabeça. Mas temos muitos heterónimos dentro de nós.

Já, uma pergunta em jeito “Alta Definição”: no meio de uma história destas, que ao mesmo tempo tem tanto de pessoal, onde fica o amor verdadeiro?
Acho que existe. Ao longo da vida vamos percebendo que podemos viver vários amores verdadeiros. Pensei que havia um. A minha psicóloga diz o seguinte: quem tem sorte vive um, quem tem muita sorte vive dois, os privilegiados podem viver três. Pior são os que não vivem nem um. Há quem chegue a não ter noção do que é o amor. Existe sim. Mas é preciso ter muito cuidado com o coração.

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