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© JPP/HT Observador

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A vida antes de o sol se pôr no "reduto dos vícios"

Durante o dia, o Cais do Sodré é um bairro bem diferente do que é durante a noite. Os prédios abandonados revelam-se, os idosos escondem-se atrás das janelas. A renovação é possível - mas é lenta.

Reza a História que a primeira igreja que existiu no Largo de São Paulo, em Lisboa, estava de costas voltadas para o Cais do Sodré, bairro que na altura tinha o curioso nome de Cata Que Farás. De costas voltadas se manteve até ao terramoto, em 1755, quando desapareceu completamente. Só depois, na segunda vida, é que a igreja se virou ao contrário, com a porta para nascente, aberta ao bulício de um largo muito movimentado e de uma zona onde as dificuldades de quem por lá parava sempre foram muitas.

Claro que, nos 91 anos que já leva de vida, o padre Bernardo Xavier não se lembra da antiga igreja, mas ela serve como metáfora para o trabalho pastoral que ali desenvolve há quase 40 anos: Cais do Sodré e paróquia quase sempre estiveram de costas voltadas. E, diz o pároco, as coisas pioraram nos últimos anos, sobretudo desde que a Rua Nova do Carvalho ganhou a tonalidade rosa e novas multidões passaram a convergir para a área.

“Quem é que gosta de ver aquilo? Porque é que há de haver uma rua cor-de-rosa em Lisboa? Para quem? Para quê? Qual é a finalidade dessa rua?” As dúvidas do padre Xavier, que recebe o Observador precisamente no dia em que cumpre 37 anos à frente da paróquia, são acompanhadas de um ligeiro sorriso, o mesmo com que vai pontuando toda a conversa, e que denota a calma com que um homem da sua idade encara a vida.

O padre Bernardo Xavier é dado à poesia

© JPP/HT Observador

Bernardo Xavier é homem de outra época e de outros costumes. Nascido no meio das serras de Sernancelhe, distrito de Viseu, no ano em que a República era uma jovem de 14 anos, o atual pároco de São Paulo cresceu num ambiente religioso e pacato muito diferente do que viria a encontrar em Lisboa, anos depois, quando trocou o seminário de Resende pelo de Almada. “A profissão do padre é mais importante do que a do professor ou coisa parecida”, diz, sobretudo numa cidade onde grassa o “vício”, expressão que lhe sai da boca por diversas vezes.

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O Cais do Sodré, diz taxativo, “tem sido um reduto de vícios.” A situação não é nova, mas preocupa-o mais agora do que nunca. Foi a “rua cor-de-rosa maravilhosa”, ironiza, que trouxe “esta coisa toda”: prostituição, droga, lixo, barulho. “Há uma possibilidade de renovação que se vai fazendo pouco a pouco, com atrações que me parece a mim que não são boas”, comenta, limpando logo de seguida o pó às memórias para mostrar como a comparação entre o passado e o presente até faz sentido.

São Paulo “nunca foi uma grande paróquia, de grande movimento religioso, mas teve sempre muito movimento de jovens, crianças”. Chegou a haver perto de 80 miúdos na catequese. Hoje, “aparece uma ou outra criança de vez em quando”, já não há catequistas e é ele próprio que dá as lições. Um resultado direto das mudanças operadas no bairro, outrora movido pelo importante motor que era o Mercado da Ribeira, a praça central de Lisboa, onde toda a cidade acorria a comprar e onde muita província acorria a vender. “Dizia-se que havia aqui 100 tabernas à volta. Vinha gente de toda a parte. A cidade foi-se perdendo um bocadinho a pouco e pouco”.

A atual igreja de São Paulo está no largo com o mesmo nome desde o Terramoto de Lisboa

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Fermentar hoje o pão de amanhã (com a ajuda dos de ontem)

Aquela cidade de outros tempos foi-se perdendo, mas uma outra começou a nascer. Começou com os bares, trouxe uma vida sobretudo noturna, mas não só. E nem é preciso ir muito longe para descobrir uma faceta diurna da renovação do Cais. Nas traseiras da igreja, atrás de uma porta de metal verde que não deixa adivinhar o que ali se passa, funciona o centro social da paróquia, que é desde há uns meses a mais excitante atração para as pessoas com mais de 65 anos. E nesta zona, idosos é o que não falta.

No primeiro andar do prédio, ultrapassando um labirinto de salas e corredores, damos de caras com uma sala diferente das outras: não tem aquele cheiro a centro de dia, um cheiro de metal misturado com álcool que denuncia a austeridade habitual destes locais. O cheiro desta sala – a haver um cheiro definido nesta sala – remete mais para um ambiente acolhedor, para a casa com lareira dos avós. Claro que a mesa estar cheia de novelos de lã e a Rádio Sim aos altos berros contribuem para esta imagem mental.

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Estão vinte velhinhas e um velhinho sentados à volta da mesa, todos muito compenetrados no que estão a fazer: uns tricotam, outros dobram lã, outros conversam. Maria Alice, 79 anos, quase nem espera pelas apresentações para meter conversa. Nortenha de Sandim, Vila Nova de Gaia, diz que já vem ao centro há 20 anos (apesar de isso não ser consensual entre as colegas) e nunca gostou tanto de aqui estar. “Jogávamos às cartas, o dominó, vinham pessoas de fora cantar o fado, fazíamos excursões”. Até parecia animado. E era, especialmente, quando havia aulas de música. Cantar “fazia bem à cabeça”.

Depois, as excursões acabaram, as aulas de música e os concertos de fado também. Ficou só o dominó e as cartas. “Cai-se numa rotina tão instituída que as pessoas dificilmente saem daquela cápsula”, comenta Ângelo, que juntamente com Susana, é o responsável por a mesa estar cheia de novelos de lã. Ele psicólogo, ela designer social (ou seja, faz design com impacto social), decidiram criar a Associação Fermenta há dois anos e, há pouco menos de um, levaram para São Paulo, com o apoio financeiro da Câmara Municipal de Lisboa, o projeto “A avó vem trabalhar”. A ideia é simples: pôr os idosos a tricotar, obrigá-los a sair de casa e a conviver.

Maria Alice desceu do Norte para desaguar à beira Tejo

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Maria Alice e as restantes pessoas da sala estão a preparar-se para a segunda coleção do projeto: almofadas. A primeira foi de luvas e a venda foi um sucesso que surpreendeu os próprios organizadores. A intenção agora é não circunscrever o projeto aos idosos. “Estes objetos que nós fazemos e esta questão do lavor doméstico é só um pretexto para a socialização de várias gerações”, explica Susana, a quem parece impossível ver um semblante carregado. De estilo rockabilly, não custa a crer que a designer consiga fazer pontes entre o novo e o antigo Cais do Sodré. “É um bairro que tem trazido alguma guerra. As pessoas que aqui moram há muito tempo foram um bocadinho esquecidas nesta onda moderna da noite; por outro lado, as novas pessoas que estão a vir para cá também são muito interessantes e interessam-se muito por estas questões”. Daí que, para breve, estejam previstos ateliês intergeracionais, abertos a todos, em parceria com os novos bares da rua cor-de-rosa.

“Quando [os idosos] experimentam outros patamares, vibram e gostam”, considera Ângelo, que tem ideia de que “quem cria um negócio aqui no Cais do Sodré nunca tem este pensamento de base que é ‘vamos tentar envolver a comunidade’. Não. É uma vertente muito sexy, muito candy, mas não é para o público que vive aqui.” Esse público aí está para falar. Maria Alice vive na Avenida 24 de Julho “há 60 e tal anos” e apesar de achar que o Cais está a mudar “para melhor”, há coisas que a incomodam. “Aquilo é uma pouca-vergonha, há muita falta de respeito pelas pessoas”, atira, meio a rir-se, quando fala das “moças tão novas espalhadas pelo chão” no fim de uma noite de diversão. “São coisas que não se viam antigamente”, desabafa, mas nostalgia é coisa que não se nota na sua voz.

Cantigas de escárnio e maldizer. Mas também de amor

O padre Xavier não tem problemas em assumir que tem saudades desse antigamente. Sim, problemas foi coisa que sempre houve, sobretudo prostituição e pessoas sem-abrigo que rondavam a igreja a pedir ajuda. “Não podia sair à rua que vinham logo [pedir]. E eu: ‘não, não posso contribuir para a vossa desgraça, que é tudo para o vinho’”. Depois, perante tantas recusas, deixaram de lhe bater à porta, mas uma nova ‘clientela’ surgiu. As muitas pessoas que, às oito e meia da manhã, hora da primeira missa, ainda não acabaram a noite. “Aparecem-me aqui ainda com as garrafas e os copos na mão. Às dez horas, nove horas, sobretudo ao domingo, andam aí com grupos a fazer barulho, de uma má educação tremenda, jovens de cabeça perdida”, comenta.

O que ainda vai valendo ao padre Xavier é a poesia. É com ela que se entretém e nela expurga os pensamentos negativos que lhe traz a realidade que vê. Não se pense que é coisa fácil escrever um soneto, diz o homem que já tem 70 anos de experiência com este tipo de poemas. “Fazer um soneto não se faz numa hora, nem duas, nem três, nem quatro, nem cinco, nem seis, nem sete, nem oito, nem nove, nem dez”, afirma autoritário. Aprendamos então. A escrita de um soneto requer muita reflexão e ponderação: há que ter em conta o tema, as palavras a usar, as rimas a fazer, o ritmo e a métrica. Tudo cozinhado convenientemente, sai poesia. Eis um exemplo que o padre Xavier tem à mão e lê para o Observador: Encanto Atroz.

O encanto atroz e suas variantes são temas muito presentes na poesia do pároco, que vê nos sonetos uma outra forma de evangelizar. Apesar da negatividade de muitos dos versos que escreve, o livro que conta editar em maio poderá ter o confiante título “Sementes de Esperança”. Mas ainda não está decidido. Pode ser que o Rio da Vida, título de outro soneto, o leve a outras margens.

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Carlos Martins sabe bem como o rio da vida pode ser sinuoso e levar a margens indesejáveis. O informático, de 53 anos, vestido de fato e gravata, não parece ter nada em comum com os restantes frequentadores do Centro de Atendimento ao Sem-Abrigo que abriu recentemente no Cais do Sodré, mesmo junto à margem do Tejo. Carlos tinha uma vida relativamente pacata e bem organizada em Moçambique, mas a vida pôs-lhe uma barragem no caminho. “Há um ano, começaram a assassinar empresários na Beira. Um deles era o que me estava a dar trabalho, tive de vir para Portugal.”

No dia em que o Observador foi parar ao centro, este tinha acabado de abrir. Poucas horas antes, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, e o provedor da Santa Casa, Pedro Santana Lopes, tinham ali estado a inaugurar o espaço. Ao fim da tarde, ainda se faziam as últimas limpezas e era pendurado um estandarte no exterior. Mas já se via alguma movimentação de utentes. Carlos era um deles, foi até ali pedir uma receita médica. “Este é um serviço de facto espetacular, os técnicos são extraordinários, fazem um trabalho de excelência”, diz, visivelmente grato, quase a emocionar-se, lembrando que foi na Santa Casa que encontrou apoio quando chegou a Lisboa de mãos a abanar. Deram-lhe um quarto, ajudaram-no a tirar o cartão do cidadão e a obter um subsídio enquanto procura emprego.

“Este espaço é bonito, está bem construído, tem bons gabinetes, nunca o tornem uma repartição, nunca o tornem serviço administrativo. (…) Que seja sempre vivido com vida, com sentimento, com emoção”, disse, na inauguração, Santana Lopes. O sentimento de que fala o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi o que levou 16 entidades a juntarem-se neste centro, situado numa zona onde a pobreza abunda (escondida, muitas vezes) e onde também são dezenas (centenas?) as pessoas sem-abrigo. Das margens do Tejo para as colinas de toda a cidade, a ideia desta unidade é dar resposta a todos aqueles que ainda não têm um teto sob o qual possam dormir.

A vida diurna no Cais do Sodré revela uma realidade impenetrável durante a noite. São muitas as casas vazias e os prédios devolutos. São muitos os idosos escondidos atrás da cortina das janelas, são muitos os problemas. Mas a esperança, a tal semente que o padre Xavier quer deitar à terra, parece ser mesmo a última coisa a morrer, e as possibilidades de renovação de um bairro hoje feio e sujo parecem multiplicar-se a cada dia. Mesmo para um homem pessimista, como o padre Xavier, o futuro é mais colorido do que negro. “A fotografia não é tão bela como parecia, mas também não é tão má como se julga às vezes”, remata, com o sorriso que lhe é característico.

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