Plantas que reforçam a ligação temática ao Mosteiro dos Jerónimos, a transformação do relvado em espaço público, um aumento no número de árvores e um trabalho exaustivo no pavimento, com vista a uma melhor drenagem, além da inserção dos muito falados brasões em calçada portuguesa: em traços gerais, são estes os elementos que dão forma à recente requalificação do Jardim da Praça do Império, em Lisboa, inaugurado esta terça-feira, dia 14 de fevereiro, e devolvido, dessa forma, à cidade. O projeto esteve a cargo do atelier ACB – Arquitetura Paisagista e foi assinado pela arquiteta paisagista Cristina Castel-Branco, após ter sido declarado vencedor do concurso de ideias por um júri independente em 2016. Mas a história de renovação deste património, inaugurado em 1940, comporta mais significado e deu origem a um debate que, espera a arquiteta responsável, possa “finalmente ficar pacificado”.
É, no entanto, preciso recuar mais de oito décadas para se abordar o projeto inicial daquele que se tornaria conhecido como o Jardim da Praça do Império. Localizado entre o Mosteiro dos Jerónimos e o Centro Cultural de Belém, o jardim foi concebido pelo arquiteto José Cottinelli Telmo, para a Grande Exposição do Mundo Português de 1940, para a qual foi designado como arquiteto-chefe. Numa nota pertencente ao espólio do próprio arquiteto, aborda-se o conceito de um jardim “de grande simplicidade”, que pudesse “ter inteireza (…), grandes relvados, zonas de lajedo e de empedrado à portuguesa (…) e realisticamente de conservação pouco dispendiosa”. Em momento algum do seu desenho original, o jardim de Cottinelli Telmo integrava um conjunto de brasões florais, que estão na origem do debate e polémica em torno da mais recente reabilitação.
Adicionados em 1961, por ocasião das comemorações do quinto centenário da morte do Infante D. Henrique, numa iniciativa dos jardineiros da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e no âmbito da XI Exposição de Floricultura, desenvolveu-se nos relvados situados à volta da fonte luminosa, com carácter temporário, um minucioso trabalho de topiária de flores representando as armas e os brasões dos distritos de Portugal continental e insular, das províncias ultramarinas e ainda as cruzes de Cristo e de Avis. Até a altura de se abordar uma possível requalificação do jardim, esses mesmos brasões pareciam votados ao esquecimento. Aquando da abertura de concurso, em 2015, e ainda durante o mandato do anterior executivo em funções da Câmara Municipal de Lisboa (CML), levantaram-se vozes contra e a favor da reintegração dos brasões. O tema deu origem a uma petição, com cerca de 13 mil assinaturas, que pedia para que os mesmos não fossem omitidos e fossem – em sentido oposto –, devidamente, incluídos no projeto.
Face à situação causada, o projeto do atelier foi então remodelado. “Seguimos uma carta internacional de acordos, a Carta de Florença, de 1981, que fala dos restauros de jardins históricos, com um conjunto de princípios que foram aplicados aqui. Um deles diz que quando existe um mapa de origem – como é o caso – devemos tentar voltar a esse mapa. Voltámos ao Cottinelli Telmo, em tudo aquilo que já existia”. Dessa forma, voltaram-se a colocar árvores que, entretanto, tinham sido retiradas; o acesso à fonte, agora sem relvado, mas com pavimento de pedra; aumentou-se a capacidade de drenagem com um conjunto de pavimentos arenosos e acrescentaram-se escoamentos. Por fim, voltaram os brasões, primeiro construídos em flores e agora colocados em pavimento, em calçada portuguesa. “Para os manter em flores, como estavam, era preciso ir buscar novas flores a cada três meses e proceder a um novo processo de jardinagem”, explica a arquiteta ao Observador.
“No concurso aberto não existia nenhuma exigência de brasões, nem sequer era uma polémica. Nessa altura, considerámos que pelo facto de o projeto do Cottinelli Telmo não ter brasões, não precisávamos de os pôr. No entanto, face à petição pública que defendia que estes deviam estar, fomos chamados pela Câmara para se falar com os peticionários”, recorda. Com uma grande abrangência de figuras presentes na petição, “da direita à esquerda”, que defendiam que os brasões “não deviam ser apagados da memória”, o fator foi então considerado para se integrar no mais projeto. No seguimento, o desenhado apresentado pelo atelier vencedor, referia “a preocupação com a integração dos elementos históricos” e “a retoma do projeto inicial” de Cottinelli Telmo, bem como a valorização dos “brasões em pedra do lago central, através da possibilidade de aproximação ao mesmo”. A CML aprovou o relatório e em abril de 2019, a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) elaborou um parecer favorável, por entender que “salvaguarda os valores patrimoniais em presença”.
Agora que reabre ao público, Cristina Castel-Branco volta a destacar o conceito de place attachment, isto é, de ligação emocional à paisagem, que a própria abordou num texto da sua autoria publicado no jornal Público, em fevereiro de 2021: “Há muito que me interessa o tema do apego ou ligação ao lugar (place attachment) que muitas vezes se expressa nos jardins, quando o seu dono quer celebrar uma paisagem onde viveu, onde foi feliz ou quando um emigrante volta e constrói uma casa e um jardim e nele coloca os símbolos ou mesmo as peças que trouxe de longe”. Ao Observador, diz esperar que a questão se torne pacífica e que traga um outro olhar sobre a importância da calçada portuguesa, não deixando de ressalvar como os símbolos acabam por manter uma relevância afetiva.
“Somos um país que recebeu um milhão de retornados a seguir ao 25 de Abril, e essas pessoas têm um gosto e uma ligação por vários territórios que estão nestes brasões, e que temos de respeitar”, defende. “Não tem a ver com colónias, mas sim com o sentimento das pessoas.” A ligação emocional, explica, fazia com que fosse “sociologicamente inaceitável” retirar os brasões que representam as capitais de distrito de Portugal, as antigas províncias ultramarinas e os escudos da Ordem de Avis e da Ordem de Cristo. A procura pela “conciliação”, numa integração que foi pedida pelo antigo executivo autárquico, resultou na atual solução em calçada portuguesa, a que se junta ainda um trabalho escultórico em calcário – presente em cada um dos brasões –, realizado pela restauradora e escultora leiriense Esperança Matos.
Já na calçada portuguesa mantêm-se outros símbolos, nomeadamente os signos do zodíaco. “Como diz a Carta de Florença, as soluções de restauro de um jardim encontram-se lá dentro, basta olhar com atenção. Dentro desta lógica, a nossa solução foi a de tentar conciliar e tentar incluir todos os elementos que fazem parte da sua história. Fomos obrigados a pensar de que forma é que conseguíamos introduzir esta nova camada, trazida pelos brasões e não só, de simbologia e significado e de como é que a podíamos respeitar”, sublinha.
Uma maior ligação ao Mosteiro
Na requalificação que faz um retorno a Cottinelli Telmo, há outros elementos assinaláveis. No lado orientado para o Mosteiro dos Jerónimos, a requalificação do jardim apresenta agora um conjunto de espécies, identificadas pela equipa de trabalho, que toma a forma de horta plantada. Trata-se, na verdade, de uma homenagem ao mosteiro manuelino. Através de um trabalho de pesquisa anterior sobre as espécies representadas na pedra esculpida do monumento, foram escolhidas cerca de cem plantas para ornamentar o local. Nesses canteiros estão agora as plantas dos Jerónimos: alfaces, macieiras, cravos, marmeleiros, romãzeiras e vinha, lado a lado com papoilas, margaridas, lírios ou acantos. Com este acrescento, explica Cristina Castel-Branco, “reforça-se a ligação com os Jerónimos, numa ligação temática com os próprios elementos decorativos, que se torna num jardim de plantas presentes nas paredes do Mosteiro”.
Por outro lado, utilizou-se betão poroso em redor do lago e da fonte luminosa e mais uma série de árvores, como pinheiros mansos e oliveiras, mas também dezenas de bauínias, ou árvores-orquídeas. Uma forma de trazer mais harmonia e um ambiente mais fresco ao jardim, que estabelece um cenário de paisagem em linha com o estuário do rio Tejo. “Isto era um jardim de aparato, para os acontecimentos que tinham lugar no Mosteiro. Atualmente, com os turistas, funciona como ligação entre esse património mundial e a Torre de Belém, outro património mundial”, realça a arquiteta. Preparado para essa novidade e para aquilo que o momento atual pede relativamente às alterações climáticas, o jardim está agora aberto à passagem, sendo também convidativo para o descanso, através dos pequenos relvados e com cadeiras amovíveis, das quais as pessoas podem usufruir livremente.
Na visita ao novo jardim, e entre preparativos para a sua inauguração, João Paulo Fonseca, um dos responsáveis da obra, acredita que as “pessoas quando virem o espaço vão ficar agradecidas”. Apesar das controvérsias, o responsável pela obra que envolveu mais de uma centena de trabalhadores, sustenta que “se trata de uma mais valia para a cidade e para a zona mais visitada do país”. A opinião é corroborada por Michael Coelho, da empresa Decoverdi, responsável pela parte ajardinada, que diz que “mais do que os brasões, se deve olhar para o trabalho do calceteiro e da calçada portuguesa como expressão artística e que está numa possível de extinção”. Feitas as escolhas, também a arquiteta acredita que Lisboa “ganha de novo um jardim que faz parte da história da cidade e do país” e que, volvidos mais de 80 anos sobre o projeto inicial, valoriza um cuidado com a paisagem que não se deve descurar nos desafios de futuro das grandes cidades, acrescenta.