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1927. Quirino e uma pasteleira
Primeiro é o Tour de França (1903). Depois o Giro de Itália (1909). E a Vuelta de Espanha? Só nasce em 1935. Antes, ligeiramente antes (1927), nasce a Volta a Portugal. A primeira edição arranca em Cacilhas, rumo a Setúbal. Ao todo, 40 quilómetros. A etapa de abertura é concluída ao fim de uma hora, 24 minutos e cinco segundos. Sem direito a sprint. É a concretização da fuga solitária de Quirino de Oliveira, corredor do Atlético de Campo de Ourique. Em segundo, Eduardo Santos (Benfica), a 20 segundos. António Augusto de Carvalho (Carcavelos) é o terceiro, a 25.
Também vencedor na 3.ª (Sines-Odemira), 4.ª (Odemira-Portimão), 5.ª (Portimão-Faro), 6.ª (Faro-Beja), 7.ª (Beja-Évora), 8.ª (Évora-Portalegre), 10.ª (Castelo Branco-Guarda) etapas, é de acreditar na vitória indiscutível de Quirino na Volta, certo? Errado. Embora vença oito das 18 etapas, Quirino é só o terceiro na geral, a 19 minutos e 16 segundos do vencedor António de Carvalho. Como assim? Pois é, o mundo do ciclismo tem destas coisas. Quirino atrapalha-se primeiro numa etapa em Moncorvo e depois atrasa-se definitivamente na ligação Braga-Porto. Nesse dia, Augusto de Carvalho corta a meta ao volante de uma pasteleira, gentilmente cedida por um popular, que o ajuda a resolver uma avaria cuja reparação acarretaria muuuito tempo.
Contas feitas, quando o pelotão chega a Lisboa, no dia 15 de Maio, António de Carvalho faz os 1958 quilómetros em 79 horas e oito minutos. Em segundo, Manuel Nunes de Abreu (Leixões), a 9’31’’. Em terceiro, o tal Quirino a 19’16’’.
1968. A estreia de Agostinho
Aos 26 anos de idade, Joaquim Agostinho corre a primeira Volta a Portugal assim como quem não quer a coisa e veste a camisola amarela por três dias, antes de a passar ao companheiro de equipa Leonel Miranda (Sporting).
Diz ele, naquele jeito muito próprio, depois de fazer um tempo formidável no contrarrelógio. “Há uns oito ou nove meses, ainda andava lá minha terra, ocupado com o trabalho do hortelão e nem sonhava vir a ser ciclista. De um momento para o outro…” De um momento para o outro, Agostinho faz-se profissional do ciclismo. Deu-me na cabeça comprar uma bicicleta para facilitar as viagens diárias entre a casa e o trabalho. Por brincadeira, entrei numa prova para populares. Estava lá o Roque, que é de Casalinhos de Alfaiate, ali na mesma freguesia de Silveira, do concelho de Torres Vedras. Sem esperar, estava no Sporting, ganhei o campeonato de amadores, passei a profissional e cá ando na Volta.”
Para ganhar?, pergunta-lhe um jornalista. “Ganhar a Volta, eu? Não, não penso nisso. Para ganhar uma prova como esta, não basta ter força. É preciso um pouco de manha e eu não tenho nada disso. Só quero chegar ao fim.” Pois, pois. Agostinho ganha três Voltas e é seis anos seguidos campeão nacional.
1969. A greve ao km 76
A indignação é grande. Enorme. Gigantesca. Os ciclistas acusam a organização de traçar uma Volta muito mais dura, com um total de 2750 km divididos por 29 etapas. “Não somos profissionais, continuamos amadores”. A organização nada faz em relação a isso e a Volta arranca claramente dividida entre a burguesia e o proletariado. Teme-se o pior.
No dia 18 Agosto, uma segunda-feira, a etapa entre Bragança e Vila Real acaba a meio. Ou antes até. Ao km 76, os ciclistas pura e simplesmente desistem de pedalar e amontoam-se no meio da estrada. Greve é greve e vice-versa. Os organizadores espumam da boca, os populares também. Quando os ciclistas retomam o andamento, a um ritmo pachorrento, há vaias e mais vaias. Chovem críticas. Os protagonistas nem se sentem minimamente incomodados e queixam-se da falta de apoio. O ciclista Pedro Moreira é um dos mais zangados. “Já furei cinco pneus. Cada um custa 180 escudos e, portanto, já gastei 900 escudos. Quem é paga tudo isto? Eu. Não devia ser assim. Se querem uma Volta só com profissionais, paguem alguma coisa.” Hubert Niel e João Pinhal cortam a meta ao mesmo tempo, de propósito. E posam juntos com o prémio da vitória. A organização multa todos os ciclistas em 500 escudos e anula a etapa.
No dia seguinte, sem grandes avanços na temática amador/profissional, volta-se à normalidade com a promessa de uma reunião nos dias seguintes para desbloquear o evidente descontentamento dos atores principais. Cabe realçar o fato de ter sido uma Volta até bastante emotiva, com a amarela a percorrer os três grandes (o sportinguista Emiliano Dionísio, o benfiquista Fernando Mendes e o portista José Azevedo) antes de ser arrebatada em definitivo por Joaquim Andrade (Sangalhos).
1971. Agostinho sempre de amarelo
Mais uma história de Joaquim Agostinho, num ano em que ganha oito das 25 etapas e veste a amarela do inicio ao fim, sem dar qualquer hipótese à concorrência (o segundo classificado é Antoine Sandy, da equipa Bic, a quase 11 minutos de distância).
Na antepenúltima etapa, entre Badajoz e Alcobaça, há uma curta passagem por Ponte de Sôr. A 200 metros de entrar na cidade, lê-se um letreiro convidativo: 100 escudos para o último. Na cabeça do pelotão, atrás do fugitivo José Maria Nunes (Tavira), o bom do Agostinho abranda de propósito e recua até mais não. Quando passa pelo letreiro, grita para o ar “100 paus já cá cantam” e volta a pedalar com determinação. Ganharia a última etapa, no Estádio José Alvalade, num domingo especial em que Elton John atua num palco rodeado de arame farpado, em Vilar de Mouros. A troco de 700 contos, o músico veste um calção de alças vermelho e meias às riscas como um menino da escola. Durante duas horas e pouco, canta e encanta um numeroso público, que paga 150 escudos para entrar no recinto – o mesmo preço do dia anterior, com os Manfred Mann.
1973. Chichi em cima do selim?
Só mais uma, vá. Joaquim Agostinho, sempre. É a sua maior proeza em Portugal, na etapa de Abrantes até à Figueira da Foz. Antes da etapa, todo o pelotão concorda em descansar, porque o percurso é difícil, servido por estradas e caminhos de baixíssima qualidade.
A meio da corrida, o camisola amarela com 13 segundos de avanço sobre o benfiquista Fernando Mendes, sente uma vontade incontrolável de urinar. Como é dos poucos que não consegue fazer chichi em cima do selim, tem de descer da bicicleta. Assim o faz. Quando volta ao pelotão, que continua em ritmo lento, Agostinho deteta a ausência de Fernando Mendes, que, entre curvas e contracurvas, lá fura o embargo.
É aí que começa uma etapa memorável, com o sportinguista a pedalar furiosamente. Só abranda quando apanha Fernando Mendes. Zangado, dispara: “Acompanha-me agora se és capaz…” Não é. Em corrida desenfreada, Agostinho ganha minutos atrás de minutos de avanço e nem os pedidos desesperados de outro Agostinho (o Artur, dono da Sonarte, a organizadora da Volta) para que abrande o demovem. Agostinho corta a meta na Figueira da Foz com 12 minutos de avanço e aquela Volta acaba-se ali mesmo. “É uma lição para todos. Quem me tenta fazer o ninho atrás da orelha trama-se”. Ei-lo, Agostinho.
1977. Chegada ao Restelo
Luís Teixeira, da Coelima, lidera a Volta quando o companheiro de equipa José Sá foge ao pelotão. Às tantas, vê-se o carro da Coelima a apertar com o fugitivo. Como? Isso mesmo. Por duas vezes, José Galdamez, ex-ciclista e então responsável pela Coelima, tenta abalroar o seu ciclista porque aquele ataque não fora combinado nem tem lógica.
Sem êxito, o encosto. Sem êxito, a fuga de José Sá. A vitória é de Abel Coelho (Lousã-Trinaranjus) e Luís Teixeira até acaba em terceiro, a dois minutos e um segundo. Calma, a amarela ainda é dele. Só deixará de ser no dia seguinte, por troca com Adelino Teixeira (Lousã-Trinaranjus).
A meta final é no Estádio do Restelo e é ver Luís Teixeira a perder os papéis. “Sabem que mais? Isto é tudo uma palhaçada. A prova foi extremamente dura, a Volta para amadores está completamente ultrapassada. Como é que a organização quer que a gente suba montanhas daquelas [Penhas da Saúde] se temos um trabalho fixo e só treinamos meio dia por semana?” Pormenor: Adelino Teixeira é carpinteiro de Setúbal. Amador, portanto.
1981. A surpresa de Zeferino
Marco Chagas, 41.º classificado no Tour 1980, assina pelo FC Porto-UBP e é naturalmente o favorito para ganhar a Volta 1981. Acontece que um rapazito chamado Manuel Zeferino ganha a segunda etapa com um avanço tal e nunca mais despe a amarela.
Recuemos no tempo. A primeira etapa é um contrarrelógio em Évora e é ganha pelo portista Belmiro Silva. No dia seguinte, a etapa vai de Évora e Vila Real de Santo António. Ao todo, 204 quilómetros. À saída do Alentejo, em São Matias, a jovem esperança portista Zeferino arranca decidido e foge ao pelotão durante pouco mais de 100 km até à meta. “O pelotão está a passo de caracol, a 20 km/hora, dá tudo o que tens e ganhas hoje a Volta”, segreda-lhe a plenos pulmões o treinador Luís Teixeira.
Ao km 182, o carro do jornal “Diário de Lisboa” passa por Zeferino e este faz duas perguntas ao jornalista Neves de Sousa. “Quanto falta? Pode dar-me água?” A máscara de esforço de Zeferino é um poema. Os quilómetros ainda vá, a água é que não. As regras da Volta são simples e, a partir de um determinado ponto, não há cá abastecimento para ninguém.
Zeferino cruza a meta em primeiro lugar e dá 7 minutos e 34 segundos de avanço ao segundo classificado, o também portista Alberto Fernandes. Até final, o ciclista natural de Navais de 21 anos segura a amarela sem problema e até acaba com 10 minutos de avanço sobre o segundo classificado, Vítor Fernandes, da Rodovil-Isuzu.
1985. RTP ajuda Volta
A etapa entre Manteigas e Peso da Régua é a mais polémica de todas. A chegada faz-se em pelotão, dividido em dois. Os juízes-cronometristas garantem a chegada de Fernando Carvalho (Bombarralense-Case) na segunda vaga e fazem a classificação final, só que a RTP, através das imagens e da voz de Jorge Simões e Rui Tovar, indicam o contrário. Os juízes voltam a ver as imagens e alteram, de fato, a classificação. Nada de mais, até porque Fernando Carvalho nem nada tem a ver com a camisola amarela (isso é assunto entre Venceslau Fernandes e Marco Chagas), só importa a verdade desportiva.
A Volta agradece à RTP, Fernando Carvalho idem idem, o resto do pelotão aspas aspas. É um dia histórico pelo uso inédito das imagens para definir uma classificação. Uma espécie de video-árbitro futurista. No dia seguinte, Chagas (Sporting-Raposeira) arrebata a amarela ao velho Lau (Ajacto-Morphy Richards) e é o campeão. Fernando Carvalho, o tal injustiçado, ganharia a volta em 1990. Sem ajuda da RTP.
1999. Plaza engana Gamito
Na intensa discussão dos três grandes no ciclismo, o FC Porto é rei e senhor de camisolas amarelas, com 13 ao todo. A última delas é já de 1983, por Marco Chagas. Curiosamente, também o último a dar alegrias ao Sporting, em 1986. Já o Benfica é mais pré-histórico e a derradeira vitória é dos anos 70, mais precisamente em 1976, por obra e graça de Firmino Bernardino.
Pois bem, em 1999, dá-se a Volta aos acontecimentos. Vítor Gamito (Porta Ravessa-Milaneza) é o líder durante uma semana e tudo se conjuga para a sua consagração em Matosinhos, a 8 Agosto. Na véspera, um contrarrelógio de 36,6 km em Cantanhede coroa David Plaza como camisola amarela num dia em que o Benfica ocupa todos os lugares do pódio, por esta ordem: Melchior Mauri (então o vice-campeão mundial de contrarrelógio), David Plaza e Rui Silva. À partida para a última etapa, Gamito dirige-se a Plaza e dá-lhe os parabéns. Então? A tradição ainda é o que era e nada de atacar no dia da consagração. É certo que a vantagem de nove segundos de avanço é recuperável, e até há 19 segundos de bonificações ao longo da etapa, só que Gamito é um senhor e evita manchar o que quer que seja. Posto isto, abraça Plaza e diz-lhe: “Parabéns. Só podia ganhar um e tu foste o mais forte. Na vida, ganha-se e perde-se.”
Plaza chega a Matosinhos como campeão e é a nona camisola amarela do Benfica, à frente do Sporting (oito) e ainda atrás do FC Porto (13). Ato contínuo, o presidente Vale e Azevedo promete mundos e fundos para continuar a apoiar a equipa de ciclismo. Esquece-se é de pagar o prémio de vitória a David Plaza e ainda se esquiva a três meses de salário. “Não posso continuar assim, com a indiferença da direção. Desde a Volta à Espanha que não recebi qualquer chamada telefónica do Benfica.” E Plaza rescinde o contrato unilateralmente. Hasta siempre.
2012. Blanco mais Blanco não há
Primeiro é Alves Barbosa, vencedor da Volta em 1951, 1956 e 1958. A seguir é Joaquim Agostinho, tricampeão em anos consecutivos, de 1970 a 1972. Depois, eis o aparecimento de Marco Chagas. Ganha em 1982, 1983, 1985 e 1986. É o rei da Volta, com quatro títulos. Ninguém o supera. Até chegar David Blanco, bem entendido. Camisola amarela em 2006, 2008, 2009 e 2010, o espanhol torna-se o maior vencedor da Volta em 2012, com Chagas a acompanhá-lo a par e passo como comentador da RTP. Entre um e outro, há diferenças. Descubra-as em seis pontos.
- A Volta-1986 começa a 24 Julho e acaba a 10 Agosto. Ao todo, 21 etapas em 18 dias. É isso, há duas etapas num dia: de manhã, 15 km de contra-relógio entre Seia e Gouveia. À tarde, 205 km no percurso Gouveia-Macedo de Cavaleiros. A Volta-2012 decorre entre 15 e 26 Agosto. Ao todo, dez etapas em 11 dias. São uns meninos é o que é.
- Não se mistura Volta com futebol –o seu a seu dono e não se fala mais disso. Para além de que é uma verdadeira Volta, do Norte ao Sul do país, de Ponte de Lima a Vila Real de Santo António. Sem passar por Lisboa. A Volta-2012 mistura-se com o campeonato nacional, sem pena nem glória. O pelotão acaba na capital, só que os ciclistas nem se atrevem a ir mais a sul que Lisboa. É o desnorte total.
- Há um total de 104 corredores, entre 88 portugueses, nove brasileiros, cinco franceses e dois ingleses. Dos 169 ciclistas, apenas 41 pertencem a Portugal. O que se segue é um festim de 13 nacionalidades, desde espanhóis (31) até um das Antilhas Holandesas.
- Há 12 equipas, duas estrangeiras (a francesa Fagor e a brasileira Pão de Açúcar Calói). Entre as portuguesas, diga alto e bom som Sporting Laranjina C, Sicasal-Torreense, Sangalhos Recer, Boavista-Zanussi e Lousã-Trinaranjus-Akai. Das 17 equipas, cinco portuguesas e só duas é que têm realmente o plantel nacional a cem por cento.
- Marco Chagas tira a amarela a Benedito Ferreira no penúltimo dia, durante o contra-relógio na Praia da Amorosa de 28 km. No dia seguinte, o homem do Sporting mantém os 15 segundos de avanço sobre o da Sicasal. David Blanco rouba a amarela a Hugo Sabido na antepenúltima etapa, a da Torre, e acaba com 22 segundos de avanço sobre o segundo classificado, precisamente o português da LA Alumínios.
- O inglês Cayn Theakston é o camisola amarela quando cai e abandona a Volta na etapa Castro Marim-Évora. O português Ricardo Mestre é o vencedor da edição 2011, só que cai pela quarta vez em seis dias, entre Gouveia e Sabugal. Naturalmente, abandona a Volta ao estilo de Cayn.