Índice
Índice
É algo inédito num processo económico-financeiro com relevância nacional: um arguido, o alegado corruptor ativo de dois ex-presidentes de câmara, pede ao tribunal para prestar declarações no início do julgamento, corrobora a generalidade da acusação do Ministério Público e confirma uma parte relevante dos factos indiciários, nomeadamente a solicitação de 50 mil euros por parte de Joaquim Pinto Moreira (ex-líder da autarquia de Espinho entre 2009 e 2021 em nome do PSD) para favorecer a aprovação de projetos imobiliários e a entrega de 7.500 euros em numerário ao sucessor Miguel Reis (PS) com o mesmo fim.
Afinal, o que tem Francisco Pessegueiro, o alegado corruptor ativo, a beneficiar com esta confissão? Tem a ganhar uma de três coisas: a absolvição, a dispensa da pena ou uma condenação com pena suspensa. De todas elas, esta última é aquela que tem mais hipóteses de se concretizar.
Operação Vórtex. As incriminações, as escutas e “patos” na primeira sessão de julgamento
O Observador explica-lhe este caso em 8 perguntas e respostas.
É comum que um arguido apresente uma confissão, mesmo que seja parcial, no início de um julgamento?
Não é, de todo em todo, comum que o julgamento de um processo de crime económico-financeiro comece com uma confissão parcial de um arguido — e logo um dos principais arguidos do caso. Como o crime de corrupção costuma ter como ponto de partida um pacto de silêncio entre corruptor e corrompido, o acesso à prova direta é praticamente impossível. A não ser que algum dos intervenientes nesse pacto fale — o que é relativamente comum em processos relacionados com homicídios ou tráfico de droga, mas praticamente inexistente em casos de corrupção ou outros crimes económico-financeiros.
Por outro lado, o Código de Processo Penal (art. 344) prevê a confissão, sendo que a mesma pode assumir várias formas. No caso da confissão integral e sem reservas, que implica o reconhecimento de todos os factos indiciários que o Ministério Público imputa na acusação deduzida após inquérito, o arguido renuncia à produção de prova e o julgamento passa diretamente para as alegações finais, de forma a que o tribunal determine a sanção aplicável.
Contudo, se houver co-arguidos e não houver confissão integral, sem reservas e coerente de todos os arguidos, o julgamento prossegue. Foi precisamente isso que aconteceu no caso Vórtex.
Isto é, Francisco Pessegueiro não fez uma confissão integral e sem reservas. Reconheceu em audiência de julgamento que os factos indiciários da acusação estão genericamente corretos mas não confessou a prática de todos os crimes que lhe são imputados — e alguns penalistas contactados pelo Observador também têm dúvidas sobre se as declarações de Pessegueiro podem ser vistas como uma confissão.
Por outro lado, os restantes co-arguidos estão, para já, em silêncio e não há nenhum sinal de que venham a corroborar as palavras de Francisco Pessegueiro.
Se não há uma confissão integral, como podemos contextualizar a confissão do empreiteiro?
Não é unânime mas uma parte dos cinco juristas consultados pelo Observador (entre magistrados e advogados) classificam as declarações de Francisco Pessegueiro como uma confissão parcial. Francisco Pessegueiro começou por dizer que Joaquim Pinto Moreira lhe solicitou enquanto presidente de Câmara de Espinho o pagamento de contrapartidas (25 mil euros por cada favorecimento), mas recusa a entrega de qualquer montante — negando, assim, uma parte da imputação do MP.
Já no caso de Miguel Reis, o MP diz que Francisco Pessegueiro lhe entregou contrapartidas de cerca de 65 mil euros (50 mil euros em numerário) mas o empreiteiro apenas confirma a entrega de 7.500 euros. Enfatizando, contudo, que a entrega desses fundos nada têm a ver com o licenciamento de projetos urbanísticos — apesar, refira-se, de Reis já ser presidente da Câmara de Espinho no momento das entregas de fundos, a que se acrescentam a entrega de mais 2.500 euros a um amigo de Miguel Reis que serviu de intermediário.
Operação Vórtex. As comissões, o adiantamento e o início da relação entre Pessegueiro e Miguel Reis
Na sessão de sexta-feira, Francisco Pessegueiro fez ainda outra revelação: que o então líder da autarquia lhe solicitou 50 mil euros como contrapartida pela aprovação de três projetos imobiliários mas que não chegou a entregar-lhe tais fundos.
Resumindo e concluindo: Francisco Pessegueiro está a apresentar-se perante o tribunal como um arguido que está a colaborar na descoberta da verdade.
O empreiteiro pode ser beneficiado por estar a colaborar?
Em termos teóricos, sim. O Código Penal (art. 374 – B, n.º 5) prevê que a pena pelos crimes de corrupção ativa possa ser “especialmente atenuada” se, “até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, o agente colaborar ativamente na descoberta da verdade, contribuindo de forma relevante para a prova dos factos”.
A dispensa de pena só poderia acontecer se Pessegueiro tivesse denunciado o crime antes da instauração do inquérito e, entre outros requisitos, tivesse retirado a promessa — o que não aconteceu.
Então Francisco Pessegueiro já pode contar com a atenuação especial da pena?
Não. Para já, é apenas uma hipótese, embora pareça claro aos olhos da maioria dos juristas consultados pelo Observador que esse é o principal objetivo da defesa do promotor imobiliário a cargo de equipa liderada pelo advogado João Medeiros.
E é uma hipótese porque a lei exige vários requisitos para que tal atenuação especial da pena ocorra. Por exemplo:
- As declarações de Francisco Pessegueiro têm de ser de alvo de contraditório por parte dos advogados de Miguel Reis e de Joaquim Pinto Moreira. Nas duas sessões diárias que já ocorreram, esse contraditório já começou a ser exercido;
- Mais importante do que isso, os três juízes que compõem o coletivo têm de encarar Francisco Pessegueiro como um colaborador — o que ainda não é certo que venha a acontecer.
Se esses requisitos se cumprirem, Pinto Moreira e Miguel Reis podem ser condenados pelas declarações de Pessegueiro?
Só pelas declarações do promotor imobiliário, não. Isto porque a lei portuguesa impõe que nenhum arguido possa ser condenado apenas e só com base em confissões de outros arguidos. Isto é, essas declarações têm de ser corroboradas por outras provas que existam nos autos ou que sejam produzidas em audiência de julgamento.
Para dar uma imagem simples: não basta um arguido chegar ao julgamento, pedir para falar, apontar ‘o dedo’ aos restantes co-arguidos para os incriminar na prática dos crimes e a condenação ser uma certeza absoluta. Tem de existir sempre outras provas que confirmem o que o arguido declara em audiência de julgamento.
Essas provas existem?
Sim. A acusação do MP refere um conjunto bastante extenso de escutas a Francisco Pessegueiro, Joaquim Pinto Moreira e Miguel Reis, sendo certo que durante os encontros mais importantes entre os diversos intervenientes, os três foram monitorizados e vigiados por inspetores da Polícia Judiciária (PJ) do Porto.
Por exemplo, a acusação do MP relata um encontro em 2020 num café em Espinho entre Joaquim Pinto Moreira, já na reta final do seu mandato como presidente da Câmara de Espinho, e Francisco Pessegueiro em que as escutas ambientais registaram o autarca a dizer o seguinte ao empreiteiro:
Por cada démarche que faça para cada empreendimento, eu quero 25.000 euros. Principalmente pelo 32 Nascente e do Lar (…) porque quanto ao Hotel [Sky Bay] não posso prometer nada…. Consoante o que desse, depois conversamos”
Ou seja, há uma solicitação de Pinto Moreira e a alegada adesão de Francisco Pessegueiro ao acordo — adesão essa que tem uma particularidade de que já falaremos mais à frente. E basta a solicitação e o acordo para o crime de corrupção se consumar.
Há igualmente outros contactos entre Francisco Pessegueiro, Paulo Malafaia (o parceiro de Pessegueiro na promoção imobiliária), Pinto Moreira, um arquiteto contratado por Pessegueiro (chamado João Rodrigues) e um diretor de urbanismo da Câmara de Espinho (chamado José Costa) que solidificam, na ótica do MP, a suspeita de que os projetos de Pessegueiro e Malafaia foram alegadamente favorecidos. E a prova documental que atesta o andamento rápido dos processos urbanísticos em causa.
Já o caso de Miguel Reis é um pouco diferente porque está mais assente em prova indireta — nomeadamente sobre a solicitação e o acordo — mas que ganha força com as declarações de Francisco Pessegueiro.
Também há escutas de conversas entre o empreiteiro e o autarca em que discutem os processos urbanísticos em causa e em que Pessegueiro pressiona Reis para aprová-los em troca de contrapartidas: “Garanto-lhe: compenso-o a sério”, diz.
Existem também escutas telefónicas ao telefone de Francisco Pessegueiro que, segundo o MP, reforçam a suspeita de corrupção:
- Por um lado, Francisco Pessegueiro confessou ao telefone aos pais e às irmãs que tinha entregue dinheiro vivo a Miguel Reis, segundo a acusação do MP, apelidando tais pagamentos de “comissão de uma venda” e de “taxas de urgência”;
- Por outro lado, e antes de um encontro com Miguel Reis em 21 de dezembro de 2022, Francisco Pessegueiro foi escutado a solicitar à irmã Susana que retirasse 50 mil euros em notas da casa da família. “Os 50 que tínhamos aí no quarto ainda temos aí ou já depositámos?”, perguntou. Perante a resposta positiva da irmã, Pessegueiro respondeu: “Ótimo que eu vou precisar deles para o M. [Miguel Reis]”. Depois de a irmã lhe dar uma “pasta/bolsa com o numerário”, Pessegueiro encontrou-se com Reis no café 20 Intensus, em Espinho, e “entregou a Miguel Reis a quantia de 50 mil euros, que trazia acondicionada num saco de plástico, com os dizeres ‘Talhos Pessegueiro’, lê-se na acusação, com base na vigilância feita pelos inspetores da PJ do Porto;
- O MP diz que essa foi uma contrapartida pela aprovação do projeto de arquitetura do projeto imobiliário 32 Nascente — que foi conseguida “em tempo recorde”, como Pessegueiro enfatizou em mensagem enviada a Paulo Malafaia antes de se encontrar com Miguel Reis no dia 21 de dezembro de 2022 para alegadamente lhe entregar o dinheiro.
- Antes, em setembro de 2022, o Grupo Pessegueiro teve o projeto imobiliário The 22 embargado pela autarquia de Espinho. De acordo com a acusação do MP, Francisco Pessegueiro terá alegadamente pago 5.000 euros em numerário a Miguel Reis num outro encontro no café 20 Intensus para levantar esse embargo camarário. Antes do encontro, o empreiteiro solicitou a outra irmã, chamada Raquel, que recolhesse o dinheiro em numerário: “Tens de me dividir isso mesmo bem dividido, em montinhos direitinhos, ok?”. “Em envelopes separados?”, pergunta Raquel. Ao que Francisco responde: “Têm de ir agrafados, tal e qual como na última vez, percebeste? Os envelopes têm de ficar todos espalmados que é para não fazer volume, entendeste?”
Pessegueiro disse que Pinto Moreira lhe pediu 25 mil euros por cada processo aprovado e que entregou 7.500 euros a Miguel Reis. Está a corroborar outras provas do processo?
Sim. Francisco Pessegueiro corroborou na íntegra a conversa com Joaquim Pinto Moreira acima referida. Na prática, reforçou o valor probatório dessa escuta telefónica. As escutas são um meio de prova e o que é dito pode ser utilizado como prova, sendo certo que o testemunho em audiência de julgamento de um arguido a confirmar o que é dito numa escuta telefónica constitui uma nova prova.
Ou seja, como são declarações em audiência de julgamento, são uma prova testemunhal em julgamento — a ‘prova rainha’ para os juízes porque é produzida à sua frente, o que permite aos magistrados judiciais aferir in loco da credibilidade de quem está a prestar declarações.
No caso de Miguel Reis, Francisco Pessegueiro prestou declarações diferentes das imputações que são feitas pelo MP na acusação. Isto é, não confirmou a entrega de 50 mil euros em numerário ao então presidente da Câmara de Espinho mas que apenas pagou 7.500 euros a Reis — e num contexto que nada tinha a ver com os projetos imobiliários do Grupo Pessegueiro mas sim com projetos pessoais do próprio.
Francisco Pessegueiro disse que entregou 2.500 euros a Miguel Reis em maio de 2022 “numa carta grafada preta” a título de comissão pela compra de uma casa, tendo pago igual quantia a um arquiteto Miguel Couto — personagem que o MP acredita que era testa-de-ferro de Reis mas que não foi acusado. Está em causa a aquisição de uma casa para Francisco Pessegueiro que terá sido feita por Miguel Couto e contou com a ajuda de Miguel Reis.
Mais tarde, em setembro de 2022, Pessegueiro diz que entregou mais 5 mil euros a Miguel Reis a título de um alegado “adiantamento” por um licenciamento de uma alteração de uma casa de Pessegueiro”. “Foi um pedido feito por Miguel Reis no final de uma reunião de câmara no dia 31 de agosto [de 2022]. Ele pediu”, garantiu Francisco Pessegueiro.
E, para terminar, o empreiteiro revelou ainda ao tribunal que Miguel Reis lhe solicitou 50 mil euros pela aprovação de três projetos imobiliários mas que nunca chegou a entregar tal valor.
Na prática, Francisco Pessegueiro está a reforçar, e muito, a acusação do MP contra Joaquim Pinto Moreira e Miguel Reis.
Isso significa que os políticos estão em maus lençóis?
No mínimo, começam o julgamento numa posição muito desconfortável por duas razões:
- Pessegueiro já confirmou que Pinto Moreira terá praticado um crime. Porquê? Porque confirmou a escuta ambiental que apanhou a conversa em que o autarca solicitou “25 mil euros por cada démarche”. Ora, o crime de corrupção consuma-se com a solicitação e o acordo — é irrelevante se o dinheiro foi entregue ou não;
- Por outro lado, Pessegueiro também terá confessado o seu crime porque aderiu ao acordo mas a sua adesão terá sido feito sob coação. Foi uma parte das declarações que passaram despercebidas mas que são relevantes. O empreiteiro chegou a dizer que não tinha outra alternativa a não ser aceitar o pagamento. “Estava hierarquicamente inferior e precisava da câmara. A probabilidade de os meus projetos entrarem numa gaveta e não saírem mais era muito elevada (…) Estava num beco sem saída”, tendo mesmo chegado a fazer uma analogia com uma arma apontada à cabeça. Ou seja, Francisco Pessegueiro diz que aceitou a solicitação (aderiu ao acordo, na linguagem técnico-penal) mas assegurou ao tribunal que “nunca foi entregue ao dr. Pinto Moreira o que quer que seja”.
Faz diferença essa adesão ao acordo sob coação?
Se a defesa de Francisco Pessegueiro quiser ir por aí, pode fazer diferença. Os advogados de Francisco Pessegueiro podem alegar que o empreiteiro não aderiu ao acordo de livre vontade mas sim sob coação. Logo, tal acordo é nulo e não poder ser validado como prova. É uma espécie de aposta na absolvição no que diz respeito aos crimes de corrupção ativa que têm a ver com Pinto Moreira. É uma estratégia ousada, mas com pouca probabilidade de sucesso.
Que benefícios legais pode ter Francisco Pessegueiro?
A lei impõe a livre apreciação da prova produzida em audiência de julgamento por parte do coletivo de juízes. Neste caso concreto, é fundamental para a defesa de Francisco Pessegueiro que os magistrados judiciais que estão a fazer este julgamento olhem para o empreiteiro como alguém que está a colaborar na descoberta da verdade material deste caso.
Se os juízes derem credibilidade a Pessegueiro e acreditarem nas declarações dele — pelos menos, naquelas declarações que são corroboradas através do cruzamento com outras provas —, podem olhar para o arguido como colaborador e atribuir-lhe uma espécie de prémio.
Isto é, Francisco Pessegueiro deverá ser condenado mas poderá beneficiar de uma atenuação especial da pena até ao máximo de um terço da pena. Sendo um réu primário, essa atenuação poderá fazer com que a pena final seja abaixo dos cinco anos, o que faria com que o empreiteiro ficasse com uma pena suspensa de execução. Dito de outra forma: não iria para a prisão.
Qual é o principal risco da defesa de Francisco Pessegueiro?
O tribunal não lhe dar credibilidade e não valorar a sua confissão parcial. O pior cenário para Francisco Pessegueiro parte da possibilidade de os juízes do julgamento do caso Vórtex entenderem que existem provas que permitem condenar o empreiteiro pelos crimes que não confessou.
Um exemplo prático: os magistrados judiciais podem entender que existe prova de que foram efetivamente entregues 50 mil euros a Joaquim Pinto Moreira e outros 50 mil euros a Miguel Reis — o que contradiz as declarações de Francisco Pessegueiro. Se isso acontecesse, as declarações do empreiteiro poderiam ficar feridas na sua credibilidade aos olhos dos juízes.
Nesse pior cenário, Pessegueiro poderia ter pena de prisão efetiva.
Uma coisa é certa: não é possível que exista qualquer espécie de acordo entre os tribunais e os arguidos. Isto é, a estratégia de Francisco Pessegueiro tem uma componente de risco significativa porque os juízes são livres de apreciarem a prova como entenderem.
Veremos que novas surpresas nos reserva o depoimento de Francisco Pessegueiro — que ainda não terminou — e as restantes sessões do julgamento da Operação Vórtex, sendo certo que os restantes arguidos podem pedir para falar em qualquer altura.