** A propósito do alegado atentado deste sábado contra o Presidente da Venezuela, o Observador recupera esta reportagem sobre as condições económicas, de vida e a situação política da população do país sul-americano, publicada no passado mês de maio. **
O peso de Florencia começou a cair quando a inflação disparou. Pesava 74 quilos em novembro de 2017, o mês com maior aumento da taxa de inflação até à altura, num ano em que esta chegou aos 2400%. O dinheiro não lhe chegava para tudo (carne e peixe estavam fora de questão) mas ainda dava para comprar ovos, queijo, fiambre e mortadela.
Desde então passaram seis meses e a inflação para 2018 já é estimada pelo FMI nos 13000%. Assim, os 900 mil bolívares que recebe esta antiga professora de estudos sociais da escola primária deixaram de chegar para comprar as poucas proteínas que ainda estavam ao seu alcance. Agora, em maio de 2018, já só consegue comprar leguminosas, feijões mais baratos, mandioca, massa e arroz.
Meio ano depois, o número 56 já não corresponde apenas à sua idade. É também o peso desta mulher que, em seis meses, perdeu 18 quilos. “Nunca deixei de comer, mas agora já não como proteínas”, diz ao Observador numa entrevista por telefone, que concede na condição de não divulgarmos o seu nome verdadeiro. “Dantes ainda comprava proteínas, mas agora já não tenho dinheiro para nada disso. É muito, muito difícil.”
“Eu tenho 900 mil bolívares de reforma. E neste momento, para comprar comida digna, para fazer refeições como antigamente, era preciso ter 20 milhões de bolívares”, diz. Depois de comparar um número e o outro, ri-se às gargalhadas. “Não admira que tenha perdido tanto peso”, acrescenta, já sem sombra de riso na voz.
As dificuldades não ficam pelo pagamento da comida — também consegui-la é um esforço enorme. Além de fome, Florencia tem ansiedade, por isso já não passa horas intermináveis nas filas de supermercado para comprar o que houver. Porém, quando fala dessas noites em branco passadas na fila, é como se ainda lá estivesse.
“Chegava à 1h da manhã e saída de lá às 11h, às vezes sem comida nenhuma para levar para casa”, conta. Na Venezuela, cada cidadão tem um dia da semana para ir às compras, sendo que a entrada lhe é vedada nos restantes. Florencia ia às segundas-feiras — e, até o filho se encarregar desta tarefa por ela, segunda-feira era sinónimo de tensão para esta mulher de Caracas. “É muito arriscado ir para as filas dos supermercados. Há empurrões, há insultos, se dizemos alguma coisa há logo quem puxe de navalhas ou outras armas brancas e começam a ameaçar”, diz. “E, quando chegas lá, às vezes já não há nada para escolher.”
Com a mãe de 89 anos a cargo, Florencia não tem mãos a medir para fazer frente ao quotidiano. “Faço o impossível todos os dias”, desabafa.
Este impossível que Florencia testemunha é cada vez mais a norma na Venezuela. “Estamos todos a sofrer com isto”, sublinha ao Observador Marianella Herrera, médica e especialista em nutrição. É co-autora da Encuesta Nacional de Condiciones de Vida (ENCOVI), uma sondagem independente elaborada pelas três principais universidade da Venezuela e que, desde 2014, acompanha a degradação da qualidade de vida naquele país. No estudo relativo à alimentação no ano de 2017, o mais recente, determinou que em 89,4% dos lares venezuelanos o dinheiro não chegou para comprar toda a comida necessária. Além disso, em média, cada venezuelano adulto perdeu 11,2 quilos no ano passado.
Aqui, a receita é a mesma que levou Florencia a perder quase duas dezenas de quilos em apenas seis meses: os venezuelanos estão a comprar menos carnes vermelhas (apenas 39,9% das famílias as compram), menos carnes de aves (só 34,3% têm acesso a elas) e menos laticínios (19,2% das famílias, apenas); ao passo que entre 2014 e 2017 o consumo de tubérculos aumentou de 9% para 66,8%.
Para isto, os venezuelanos arranjaram um nome logo em 2016, quando o problema não tinha ainda a dimensão de hoje: é a “dieta de Maduro”. O termo foi tão generalizado que até o próprio Presidente da Venezuela já o utilizou em jeito de piada, num comício onde perguntava a um correlegionário porque é que estava “tão magro”. Com gestos, este explicou-lhe que passou a dedicar-se à corrida. Mas, ao mesmo tempo, alguém gritou por cima: “É a dieta de Maduro!”. O ditador venezuelano riu-se e rematou com uma piada brejeira: “A dieta de Maduro põe-te… duro! Sem necessidade de Viagra!”.
https://www.youtube.com/watch?v=TgJuYztgAdk
Apesar de os estudos da ENCOVI existirem desde 2014, Marianella Herrera sublinha que até hoje não recebeu nenhuma reação por parte do governo de Nicolás Maduro, que sucedeu a Hugo Chávez no poder em 2013. “Talvez noutro país o governo diria: ‘Se isto é o resultado de um estudo científico, então como governo temos de intervir para melhorar a situação’”, imagina a especialista. “Mas para este governo é como se o problema não existisse.”
Não é a única a acusar o governo de Nicolás Maduro de ignorar os vários problemas que assolam o país. Ao Observador, o ex-ministro da Saúde José Felix Oletta fala de uma “emergência complexa, mais avançada do que uma crise humanitária”. Ao telefone, o homem que deteve a pasta da Saúde entre 1997 e 1999, no último governo antes de Hugo Chávez, explica que a crise é multidimensional.
“Uso o termo de emergência complexa porque se soma uma série de problemas simultâneos que afetam a sociedade de diferentes formas. Há uma desnutrição acentuada, um empobrecimento muito grave em que só o Haiti está pior em toda a América Latina e Caribe, uma emigração massiva, falta de empregos e falhas nos serviços básicos à população”, sublinha o ex-governante, que hoje lidera a Aliança Venezuelana para a Saúde, uma organização que analisa e divulga dados relativos à saúde que o governo de Nicolás Maduro guarda na gaveta.
Não é, pois, apenas a fome que afeta a saúde dos venezuelanos. “Há um retrocesso de décadas em vários indicadores”, sublinha José Felix Oletta.
Há o caso da difteria, doença que entre 1990 e 2015 teve apenas dois casos na Venezuela, mas que teve 324 em 2016 e subiu aos 608 em 2018. Ao todo, morreram 96 pessoas no ano passado com esta doença — sendo que, na região da América do Sul e Caribe, o pódio é composto pelo Haiti (17 mortes) e Brasil (1 morte).
Também há o sarampo. Entre a 25.ª semana de 2017 (que começou a 19 de junho) e a 4.ªsemana de 2018 (que foi até 28 de janeiro de 2018), houve 1122 casos de sarampo confirmados no continente americano. Destes, 952 foram na Venezuela — ou seja, 85%.
E há ainda a malária, que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), chegou aos 406 mil casos. José Felix Oletta e a Aliança Venezuelana para a Saúde avançam outro número: 800 mil casos, praticamente o dobro da estimativa da OMS. “A Venezuela foi o modelo a seguir nos anos 1950 e 1960 para o controle da malária, os nossos modelos foram tão eficazes que o mundo inteiro os copiou. Agora, temos 800 mil casos anuais. É um retrocesso de mais de 80 anos”, lamenta.
Como denominador comum de todas estas doenças, está a fome. “Um dos problemas mais sérios do país é desnutrição, porque tem impactos sérios na saúde. As doenças infecciosas resultam em problemas ainda mais grave quando há subnutrição. Não se admirem, pois, que haja doenças como a tuberculose, também. Nutrida, a pessoa até se pode curar sozinha. Mas se estiver subnutrida, fica tudo mais complicado”, sublinha José Felix Oletta.
“O governo atribui isto a uma guerra económica que o próprio governo produz, atirando as responsabilidades para os outros. Mas quem tem os recursos para importações e quem não autoriza a sua compra, seja de alimentos ou medicamentos, é o Estado”, diz o ex-governante. “O Estado está a falhar nas suas funções mais básicas e prefere que a população sofra a reconhecer o problema.”
Na reportagem Parir e nascer na Venezuela da fome, do jornal Efecto Cocuyo, elaborada em conjunto com o Centro internacional para Jornalistas (ICFJ, na sigla inglesa) e pelo Projeto para a Reportagem sobre Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, idem), o diretor da Maternidade Concepción Palacions, uma das maiores de Caracas, aborda o problema como poucos se lembrariam de fazê-lo. “O venezuelano está hoje a comer melhor, porque agora sabe o que come”, disse. E, como exemplo, acrescentou: “Agora já não bebe refrigerantes”.
“Isso não é uma resposta, é uma fuga”, reage José Felix Oletta. “O problema é muito mais complexo do que bebidas açucaradas e gaseificadas. O tema aqui é a falta de acesso a questões básicas como a saúde, medicamentos e alimentação.”
Uma das soluções encontradas pelo regime de Nicolás Maduro surgiu em janeiro de 2017, com a criação das caixas CLAP (sigla para Comité Local de Abastecimento e Produção). Em teoria, este seria um programa de acesso a bens alimentares por parte das classes mais desfavorecidas, que teriam acesso à carnet de la patria (caderneta da pátria). Porém, logo em março, Nicolás Maduro e o seu governo permitiu que o cartão de militante do PSUV, o partido no poder, também pudesse ser utilizado para obter acesso às caixas CLAP. Estas, por sua vez, são geridas e distribuídas por militares e pelos colectivos, grupos paramilitares que se associam ao regime venezuelano.
Quem são os “colectivos” que defendem o regime de Maduro com armas?
“É um processo injusto, militarizado e discriminatório, onde na prática só quem está filiado no partido do governo tem acesso a comida”, diz Marianella Herrera
Durante a campanha eleitoral para as eleições deste domingo, os comícios do PSUV têm sido marcados por distribuição de comida grátis. Ao Observador, chegaram também relatos de pessoas nos bairros mais desfavorecidos a quem lhes foi tirado a carnet de la patria a título temporário. “Só a devolvem às pessoas se forem votar no Maduro”, disse uma fonte.
Nascer, crescer e viver com fome — os bebés que nascem subnutridos e as crianças que não conseguem ler
Na ausência de uma reação efetiva do governo de Nicolás Maduro ao problema de subnutrição na Venezuela, Marianella Herrera explica que o trabalho sobra todo para as ONG, como é o caso da Fundação Bengoa, da qual faz parte.
“Temos de trabalhar com o indivíduo, a nível micro. Enquanto não chegam as grandes mudanças de que verdadeiramente precisamos, como na economia, temos de fazer alterações a nível micro”, explica ao Observador.
Na Fundação Bengoa, a atuação incide em dois grupos de risco: as crianças e as grávidas. “Nos adultos há um emagrecimento geral, mas nas crianças as consequências são mais graves do que isso, tal como nas mulheres grávidas”, sublinha Marianella Herrera. “Entre o momento da conceção até ao fim dos primeiros dois anos de vida, a falta de nutrientes é um fator muito grave, porque afeta o desenvolvimento cerebral e dos órgãos. Se não se intervém adequadamente nesses primeiros mil dias de vida, há problemas”, diz.
Para evitar esse problema, a Fundação Bengoa alimenta todos os dias úteis um grupo de 20 mulheres grávidas em Sucre, um município maioritariamente pobre na área metropolitana de Caracas. O Observador falou ao telefone com uma dessas grávidas. Carollain tem 17 anos e está grávida de um rapaz há oito meses — e o que está para vir assusta-a. Além das questões que preocupam qualquer estreante na maternidade, Carollain tem outras. “Não sei como é que vou criar o meu filho, não sei como é que lhe vou arranjar comida quando já não o puder amamentar”, diz ao telefone. “É muito difícil encontrar papas, quase que não há e são sempre muito caras. Não tenho dinheiro para comprar nada disso e também não tenho tempo para ir para as filas.”
Apesar de receber ajuda, a sua alimentação está longe do ideal. Come “duas a três vezes por dia”, por vezes nem isso quando o refeitório fecha. “É muito raro comer carne ou frango. O que mais como é lentilhas”, diz a jovem de 17 anos.
Só quando o filho de Carollain nascer é que se vai começar a perceber, afinal, se a fraca alimentação que a jovem de 17 anos tem tido acesso vai ter repercussões na saúde do bebé. Infelizmente, há já a certeza de que a tendência é para que haja cada vez mais bebés a nascer com baixo peso — ou seja, com 2,5 quilos ou menos.
Segundo números publicados pelo Efecto Cocuyo (que não são divulgados pelo governo de Nicolás Maduro mas que partem de dentro dos hospitais) 16,08% das crianças nascidas na Maternidade Concepción Palacios em 2016 tinham menos de 2,5 quilos — sendo que, no ano anterior, a percentagem foi de 11,58%. Na Maternidade Santa Ana, também em Caracas, a tendência também é de subida: 11,24% em 2015; 13,12% em 2016; 13,92% em 2017.
Para comparação, os números mais recentes apontam que a média dos países da OCDE é de 6,5%. Em Portugal, os mesmos dados apontavam para uma percentagem próxima dos 9%.
“Temos um problema enorme pela frente, porque isto põe em causa toda uma geração”, sublinha Marianella Herrera. A especialista em nutrição aponta problemas não só naqueles que estão para nascer, como também naqueles que já nasceram. Viu-os em primeira mão quando, há dois meses, deu um questionário sobre hábitos alimentares a crianças do 4.º e do 5.º ano.
“Tivemos de desistir desse questionário porque elas não estavam em condições de responder”, explica. “Não entendem o que lêem.” O problema aqui, explica, é que apesar de conseguirem ler as palavras que têm à frente, aquelas crianças não eram capazes de extrair um significado delas. “Primeiro aprendes a ler e depois lês para aprender. Eles passaram a primeira fase mas não conseguem chegar à segunda”, diz. E porquê? “Porque há um défice de ferro na sua alimentação”, diz. Os problemas voltam todos ao prato — e ao que falta nele.
“Maduro não quer saber se as pessoas comem do lixo”
Florencia recusa-se a votar nas eleições deste domingo. “São uma fraude”, diz a professora na reforma. “Já se sabe quem vai ganhar, a história já está escrita.”
É essa a sua convicção, depois dos dois plebiscitos que marcaram o ano de 2017 na Venezuela. Primeiro houve a votação de abril (promovida pela oposição e boicotada pelo governo) onde 99% dos participantes votou a favor da manutenção da Assembleia Nacional, que tinha então uma maioria da oposição e que Nicolás Maduro não reconheceu. Meses depois, em julho, houve as eleições constituintes (promovidas por Nicolás Maduro e boicotadas pela oposição) onde os políticos pró-regime conquistaram 545 dos 503 assentos parlamentares.
A política já não a motiva, o debate já não a interessa, mesmo que tenha sido a isso que habituou os seus alunos da primária, enquanto professora de estudos sociais. “Não vou votar porque há uma assembleia constituinte que é inconstitucional, ou seja, é um contra-senso. E não conheço a história dos outros candidatos”, diz, dos adversários da oposição, numas eleições presidenciais que a oposição boicota quase na totalidade.
“Isto não interessa a ninguém”, diz. “E nós não interessamos a Maduro”, acrescenta, de sopetão. “Maduro não quer saber se as pessoas comem do lixo, tanto lhe faz.”