O que mais custou a Nuno Rocha não foi ver o armazém a arder de alto a baixo. Pior ainda foi ter de virar costas a tudo aquilo, sabendo que já não havia nada a fazer. Já perto da meia-noite de domingo, o fogo tomou conta do interior da Recofrades, a empresa de recolha de resíduos, que fundou com o pai. As folhas de eucalipto que voaram até ao pavilhão foram suficientes para que todos os fardos de cartão e plástico, prontos a serem vendidos a empresas de reciclagem, ardessem até ao ponto de ficarem irreconhecíveis. Impotente, Nuno não pôde fazer frente àquilo. “Não vi bombeiros, não tinha água na boca de incêndio porque deixou de haver água da rede, não havia maneira de apagar aquilo”, recorda o empresário de 39 anos. Ainda usou os extintores, mas o pouco que eles fizeram não servia de nada. Meia hora depois do primeiro rastilho, foi-se embora.
Do outro lado da zona industrial, Pedro Silva tentava, com um sócio, salvar o que conseguia da sua fábrica. Fundaram a CMER, empresa de fabrico de cabos de eletricidade, há 14 anos, depois de terem perdido um emprego no mesmo ramo. “O patrão fugiu para o Brasil e nós tivemos de nos fazer à estrada”, recorda. Catorze anos e 3 milhões de euros em investimentos depois, o fogo entrou pelo armazém adentro. Pedro e o sócio chegaram à zona na fase inicial do incêndio e tiraram um carrinha e um camião. Depois, à volta, foram impedidos de avançar pela GNR. Voltaram atrás e pediram aos bombeiros que os levassem até lá. E assim foi: chegaram à frente da empresa a bordo de uma carrinha de transporte não urgente de doentes. Estiveram cinco minutos fora do portão, até que um bombeiro, sem água e mangueiras à mão, lhes disse: “Não há nada fazer”. E foram embora.
Ali perto, Tiago Ferreira fazia os possíveis para salvar o seu stand automóvel, o Bandeicar, que funciona no mesmo edifício que a oficina do sogro, a Magnoautorino. À medida que as chamas se aproximavam, Tiago preocupou-se em tirar os carros da parte de frente do stand, onde estão expostos ao ar livre, e levá-los para dentro da oficina. A prioridade foi para os mais valiosos, ao passo que os mais baratos ficaram na rua, mais próximo das chamas. Ao todo, levou cinco carros lá para dentro. Depois, saiu e virou costas à empresa. Só mais tarde viria a perceber que os carros do lado de fora iria ficar intactos e que, lá dentro, tudo viria a arder.
Foram poucas empresas da zona industrial de Oliveira de Frades que conseguiram escapar às chamas. Se ali tivesse caído uma bomba, talvez os estragos fossem menores. Aparte alguns milagres — há edifícios que nem chamuscados ficaram — à maior fatia das empresas não resta outra opção além de demolir tudo e recomeçar de novo, a partir do chão. Em declarações à Lusa, o presidente da Associação Empresarial de Lafões, Armando Bento, disse que após os incêndios de domingo, aquele concelho foi submetido a “uma regressão económica e social de cerca de 15 anos”. Além disso, dos cerca de 500 empregos que ali existiam, estima que “300 não serão recuperáveis, a não ser que haja uma ajuda financeira do Governo central e das autoridades locais”.
Não é fácil caminhar nos escombros de anos e anos de trabalho. É essa a certeza que fica da cara de Pedro, enquanto entra para o que resta da sua fábrica. As chapas do telhado cederam todas com o calor e só não caíram inteiramente no chão porque ficaram em cima das máquinas. “Ainda nem tive coragem de ir até àquela parte do fundo”, diz Pedro, enquanto avança para lá. A hesitação que leva na cara é como um pedido para que, por magia, ao menos não tenha ardido tudo por lá. Pedro avança no entulho, põe o pé em cima de uma chapa, que abate com o seu peso, e só não cai porque se apoia numa das máquinas. Quando, por fim, chega ao fundo, vê que também ali ardeu tudo. “Catorze anos de trabalho para nada”, desabafa. À frente, tem uma máquina que foi comprada na semana passada, por meio milhão de euros. Além de produzir o tubo, a máquina era também capaz de colocar logo por dentro o fio de eletricidade. “Era um Ferrari, que ali estava”, diz. “Era uma máquina capaz de fazer 33 metros num minuto”, acrescenta. Tinham até construído uma nova divisão para a fábrica, onde seria instalada aquela máquina. Agora, esta e todas as outras máquinas não passam de sucata — e as paredes terão de ser todas demolidas.
A empresa estava a crescer. Aliás, nunca parou de crescer desde que nasceu. Mesmo quando o setor da construção emperrava em todo o país, o negócio de Pedro e dos sócios crescia de ano para ano. Além de vários clientes em Portugal, exportavam para Angola, Moçambique, Cabo Verde e Argélia. “Quando os outros se queixavam da crise, nós estávamos sempre a faturar, para nós nunca houve problemas.”
Até hoje, grande parte do dinheiro que tinha entrado na empresa foi usado para fazê-la crescer. “Investíamos tudo, quase não tirávamos dinheiro para nós”, garante Pedro. “Queríamos ter um futuro de sustentabilidade, queríamos ter uma empresa que pagasse aos fornecedores a horas e que pudesse responder a todos os clientes, ao mesmo tempo que assegurava estabilidade aos funcionários.” A CMER, garante Pedro, “era uma empresa de futuro garantido”. Agora, já não é certo que assim continue a ser. Ao todo, trabalham ali nove pessoas, incluindo os sócios. Neste momento, procuram um escritório onde possam, aos poucos, restabelecer o contacto com clientes e fornecedores. “Temos de acalmá-los”, explica Pedro.
Sobre os funcionários e as capacidades de mantê-los com emprego naquela empresa, pede tempo. “Não sei, vamos ver, está tudo em aberto”, diz. E, depois, pede ajuda: “O Estado tem de fazer alguma coisa por nós”. Do lado de fora, o armazém ainda conserva grande parte do letreiro que ali foi deixado pela empresa que ali esteve até Pedro e os sócios terem comprado o espaço. “Construir, renovar, decorar”, lê-se, embora algumas letras tenham sucumbido ao fogo. Vai ser preciso mais do que esses três verbos para a levantar de novo.
Um cofre cheio de dinheiro em chamas
Nuno também não sabe como vai reerguer a sua empresa de recolha de resíduos. “Só sei que vamos ter de começar de novo, porque isto é a nossa vida”, diz, embora a convicção ainda lhe falte na voz. Para já, o tom cabisbaixo é o único que consegue guardar para falar da sua empresa, onde investiu mais de 300 mil euros com o pai e que emprega quatro pessoas, com eles os dois incluídos. Apesar da chuva forte que tinha caído, na noite anterior ainda havia chamas. “Já passou este tempo todo e ainda não veio aqui bombeiro nenhum”, queixa-se. Lá dentro, estão várias máquinas que arderam. Na rua, também dois camiões arderam.
Para já, o futuro passa por um armazém, mesmo ao lado daquele que ardeu, que já alugaram a uma empresa vizinha. Depois, conta seguir em frente, como lhe for possível. “A minha vida é isto, construí isto tudo com o meu pai, sozinho e sem ajudas do Estado, e agora foi tudo abaixo”, resume. “Construí uma vez e agora construo outra.”
Quem também tem essa certeza é Pedro Pinhão, dono da Toscca, empresa de construções de madeira e de mobiliário de jardim. Se ardeu tudo em 15 de outubro de 2017, será em 15 de outubro de 2018 que tudo renascerá das cinzas. “Já marquei a inauguração”, diz.
Começou em 1996, com um investimento de “500 contos”, duas pessoas e uma máquina de cortar madeira. Agora, tem 47 empregados e gera, de forma indireta, “outros tantos” empregos. Este ano, até setembro, tinham faturado 7 milhões de euros, dos quais conseguiram tirar sempre lucro. Agora, ardeu tudo. Além das paredes e do teto nem o chão se aproveita. Com o calor das chamas, até o betão ardeu.
E arderam ainda notas. Já depois do incêndio, quando tentavam recuperar o pouco que restou da fúria das chamas, um dos funcionários abriu o cofre onde era guardado dinheiro, cartões de crédito, cheques e documentação importante. Assim que abriu a porta, com a entrada de oxigénio, tudo o que estava lá dentro irrompeu em chamas. Foi assim que perderam cerca de 7500 euros em numerário. Os cartões de crédito ficaram colados uns aos outros, empilhados. Num deles, ainda se consegue ler o titular: “TOSCCA EQUIPAMENTOS MADEIRA, LDA”.
“Parecia que estava num filme de guerra”
Na segunda-feira de manhã, Maria Odete Tavares saiu de casa convencida de que ia trabalhar. Pegou no farnel, fechou a porta de casa e seguiu para a Carmo, empresa de estruturas de madeira, uma das maiores de Oliveira de Frades, onde trabalha há dez anos. Quando lá chegou, não queria acreditar no que via. “Parecia que estava num filme de guerra”, recorda. O pavilhão onde trabalhava, uma construção de madeira, simplesmente desaparecera. “Estava tudo no chão, já não havia nada, o lume levou tudo”, diz a operária de 55 anos.
Na noite do incêndio, não fazia ideia de que o fogo que lhe passou perto de casa também tinha chegado, e com muito mais força, à zona industrial de Oliveira de Frades. “Eu sabia lá o que se tinha passado… Não tinha telemóvel, porque não havia rede, a televisão também não dava porque acabou-se-nos a eletricidade. Eu fui para lá sem saber o que se tinha passado”, recorda.
Por agora, não tem solução. Ao início da tarde, os trabalhadores tiveram uma reunião com a administração da empresa, onde lhes foi dito que a intenção era de avançar. Porém, Maria Odete não ficou com a certeza de que o seu posto de trabalho vai ser mantido, nem sequer se vai receber enquanto a empresa estiver a ser reconstruída. “Essa parte ainda está por resolver”, diz a operária, que recebe o salário mínimo. “Se deixarem de me pagar, vou ter de me arranjar como os outros. Vou ter de arranjar emprego noutro sítio. Mas onde, se isto ardeu tudo?”
Também Teresa Pinto não guarda certezas, apenas promessas. Aos 37 anos, leva 18 como operária na Iberoperfil, uma empresa de móveis de cozinha. “O patrão disse que quer aquilo a trabalhar no prazo de dois meses”, diz, com um otimismo inabalável. “Acredito que ele faça isso, ele estava lá com os meus colegas e garantiu-lhes que ia ser assim.”
Teresa não foi à reunião. Está de baixa desde maio, mês em que foi operada à mão direita. E, na sexta-feira, chegou a vez de operar a mão esquerda. “São lesões de desgaste, é um trabalho muito duro”, diz a operária, que se gaba de ser a única mulher que naquela empresa faz aquilo que descreve como “trabalho de homem”.
É também ali que trabalham o seu namorado e o ex-marido, com quem tem a guarda partilhada dos filhos. Assim, dos quatro adultos que sustentam as duas crianças — uma rapariga de 7 anos e um rapaz de 14 —, três dependem da Iberoperfil para pagar as contas e pôr comida na mesa. Para já, Teresa agarra-se a outra promessa do patrão: “Ele disse que não ia despedir ninguém”. E, mesmo que “só um ou dois se salvem”, acredita que será o “suficiente para apaziguar as coisas”.
A calma com que fala não condiz em nada com a reação que teve quando viu a fábrica na segunda-feira de manhã. Do incêndio, soube apenas que tinha sido grave. O namorado saiu de casa à pressa, para tentar salvar a casa dos pais, ao passo que ela ficou sozinha com os filhos e uma prima no seu apartamento. Daquele terceiro andar, podiam ver todas as chamas. Para não ver nada, fechou os estores e esperou pelo melhor.
Quando chegou à fábrica, com os filhos ao lado, começou a chorar. “Pensei que nunca mais ia trabalhar ali”, recorda. Os engenheiros da empresa mandaram-na ir para casa. “Quando cheguei, só pensava naquilo, não conseguia tirar a fábrica da cabeça.” Teresa gosta do trabalho que faz e da empresa onde trabalha. Mesmo que ganhe pouco mais do que o salário mínimo e por vezes saia já depois da meia-noite para fazer frente às encomendas, a Iberoperfil é a sua segunda casa. “Gosto muito de estar lá, adoro os meus colegas e tenho um chefe que é cinco estrelas”, diz. “Somos uma família. Mas agora só vamos conseguir levantar aquilo se as pessoas que têm o dinheiro se chegarem à frente.”
O autarca que vai pegar nisto tudo
Paulo Ferreira ainda não é presidente a Câmara Municipal de Oliveira de Frades, mas pouco falta. Nestas eleições autárquicas, sob a bandeira do movimento Nós, Cidadãos!, pôs fim ao reinado do PSD na autarquia, que nunca tinha tido outra força política ao leme. Agora, as pessoas abordam-no quando passam por ele. “Boa tarde, senhor presi…”, dizem, muitas vezes sem terminar a frase. Para já, é só presidente eleito. A tomada de posse está marcada para sábado, dia 21, às 9h00.
Ainda assim, Paulo Ferreira já age como tal. Não tem poder decisório, mas está neste momento a tentar acudir à população da maneira que lhe é possível. “Mesmo não sendo presidente, já estou a tentar preparar tudo com antecedência para garantir que sei tudo o que se passa já na segunda-feira”, diz.
Desde domingo, só dormiu uma hora. “Tenho passado os dias todos nisto, só paro para fazer a minha caminhada matinal, às 6h30. É aquilo que me equilibra. Antes, acordava todos os dias perto dessa hora para fazer a caminhada. Agora já não é preciso acordar, porque estou sempre a pé.”
Grande parte do sono que perde deve-se à zona industrial. É ali, na parte mais alta da vila, que está um dos maiores desafios do concelho. Porém, Paulo Ferreira sublinha que ali não está apenas uma crise económica em potência, mas também uma crise social que pode rebentar no concelho se nada for feito. “Uma coisa está ligada à outra e nós só podemos resolver este problema se não esquecermos isso”, garante.
Segundo o presidente eleito, o futuro terá de passar por “sinergias” que liguem o poder local aos empresários, para que depois estes se possam apresentar ao Estado central com a força que a ocasião requer. “Nós temos de fazer essa pressão ao Governo, temos de conseguir ter peso sobre as ações governamentais que surjam depois disto”, diz. “Sem essa ajuda, não conseguimos avançar. Há uma cadeia de ações que não podemos ignorar e o nosso poder de decisão própria não chega para resolver isto.”
Enquanto fala ao Observador, o autarca está prestes a entrar para uma reunião com empresários do concelho. O encontro está marcado para uma das salas da câmara municipal. À entrada, desfaz-se em apertos de mãos e beijinhos, que troca com aqueles que passam por ele. “Precisamos muito de ajuda”, dizem-lhe algumas das pessoas, que ali foram reportar danos causados pelos incêndios. A resposta sai-lhe rápida: “Vamos conseguir, com a força de todos”.