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Pouco passa das 10 da manhã. Sentado no seu gabinete, na sede da LeYa, em Alfragide, um cubículo soalheiro pejado de livros e pilhas tortas de manuscritos em folhas A4, o editor Zeferino Coelho, 76 anos, já leu os jornais do dia – Público, Diário de Notícias e i, todos em papel – e prepara-se para à tarde atacar duas propostas que lhe chegaram na véspera. Os dias têm sido mais agitados, com muitas entrevistas pelo meio, por causa do prémio que recebeu no início do ano, o Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural/2022. Se não, depois de pôr a correspondência em ordem, passaria o dia a ler.
Editor de oito Prémios Camões, incluindo o Nobel Saramago e a moçambicana Paulina Chiziane, distinguida há pouco mais de dois meses, mantém o entusiasmo na busca de novos autores. “Como quem se mete numa caravela e vai descobrir o mundo”, descreve. Surpreendente, só este prémio, assegura. Conhecia “algumas pessoas que já o tinham recebido” e pouco mais. Um deles, Rui Vilar, ex-presidente do Conselho de Administração da Gulbenkian, casado com Isabel Alçada, que assina com a sua mulher, Ana Maria Magalhães, a coleção Uma Aventura. “Tem graça porque elas continuam a trabalhar juntas”, sorri, bem-disposto. “E uma dizia, ‘Olha, o meu marido ganhou isto…’ E a outra, ‘agora foi o meu’”.
Este prémio distingue uma atividade de “mais de 50 anos como editor e ativo promotor da literatura e da cultura da língua portuguesa no mundo”. Passado todo este tempo, o que ainda o faz estar aqui a trabalhar, depois de ser operado a um olho, em plena pandemia?
Durante muitos anos, aspirei a chegar à idade da reforma. Pensava que podia ler o que me apetecesse, fazer o que me apetecesse. Até que a idade chegou e comecei a pensar que tinha de ligar a beltrano e a sicrano, a dizer que me ia embora. Não é uma conversa fácil.
Não conseguia despedir-se dos seus autores, é isso?
Isto é um trabalho tão íntimo que acaba por ganhar um lado pessoal significativo. Um livro não é a mesma coisa que um automóvel; o livro é toda a alma de um autor, como se fosse um filho. O editor compreende isso. Aquilo que ali está pode transformar-se num obstáculo ou num ponto de apoio para a vida da pessoa que o escreveu.
Como assim?
Há quem, depois do fracasso de um livro, tenha deixado de escrever. De alguma maneira, é o seu futuro que está em jogo.
Sente uma grande responsabilidade?
Para mim é mais um livro. Tenho sempre uma quantidade ao mesmo tempo.
Quantos neste momento?
Estou a publicar uns 20 por ano. Em mãos, tenho uns sete ou oito. Se um fracassar, para mim não é trágico. Para um autor, é tudo. Muitas vezes, as coisas correm mal por questões secundárias; por culpa do editor, por exemplo, que não mandou o livro para as pessoas certas. A crítica literária tornou-se muito escassa. Depois há a repercussão mediática, a que todos os autores aspiram. Se só houver silêncio… Está sempre a acontecer.
É pior a indiferença que uma má crítica?
É. E tem repercussões imediatas nas livrarias: um livro ao fim de um mês morre. Dou-lhe um exemplo concreto, a Paulina Chiziane…
Que ganhou agora o Prémio Camões.
Isso. Até à véspera da notícia, as vendas eram muito escassas.
O que são vendas escassas?
São vendas que não chegam aos 50 exemplares por ano. Tornam as reimpressões complicadas, porque não se consegue viabilizar em termos financeiros. Isto acontecia porque ela não era conhecida fora do meio académico e do meio restrito das pessoas atentas ao que vem de África. De repente, vem o Prémio Camões e milhares de pessoas interrogam-se sobre quem será. Reimprimimos os livros todos de imediato, continuamos a fazer novas edições e continua a vender.
Como chegou a ela?
Quando começámos a publicar o Mia Couto, em 1987, passámos a prestar mais atenção ao que se fazia em África. Já não me lembro em que ano, a Prof. Inocência Mata, da Faculdade de Letras, que é santomense, diz-me, “Porque é que não publica a Paulinia Chiziane, que tem uma coisa interessantíssima chamada ‘Balada de Amor ao Vento’?” E começou assim.
Lembra-se do que achou do livro?
A prosa da Paulina Chiziane não é aquilo a que aqui na Europa estamos habituados; é muito pomposa, muito emotiva. Agora: aquilo tem uma enorme força. A Paulina escreve daquela maneira porque ela vive daquela maneira. Na altura até houve quem sugerisse que eu lhes desse “um jeito”. Não faço isso. Ou publico ou não publico.
Mas um editor mexe.
Eu mexo muito pouco, e apenas em coisas que obviamente estão mal. Se fosse editor do Camilo [Castelo Branco], dizia-lhe, “Olhe que este senhor a quem na página 100 chama ‘Joaquim’, na página 20 chamou-lhe ‘Manuel’.”
E sobre a estrutura, por exemplo, dá sugestões?
Se acho que um episódio está mal desenvolvido ou se há uma certa desproporção, digo. Mas não rescrevo, como é comum no mundo anglo-saxónico. O primeiro livro do Saramago que saiu nos EUA foi o Memorial do Convento e eles retraçaram-lhe aquilo tudo. Acrescentaram dois pontos, travessões…
Ou seja, mexeram na controversa pontuação do Saramago.
E não lhe disseram nada. Ele ficou furioso. Escreveu-lhes imediatamente. Disse-lhes que ou recolhiam de imediato o livro e o publicavam de acordo com o estilo original ou nunca mais publicavam nada dele. É preciso perceber o que é o estilo do autor
E como reagem os autores às suas sugestões?
De um modo geral, não aceitam. Já tive um autor que se foi embora.
Têm a perder com isso?
Eu acho que sim. Falo com eles na qualidade de leitor. Não sei como se escrevem livros, se não, não era editor, era autor.
Nunca lhe passou pela cabeça escrever?
Não, não.
O que tem um autor que um editor não tem?
Primeiro, tem paciência. Passar dias, meses, às vezes anos a escrever um livro. Depois, aquilo dá muito trabalho. Já para não falar no jeito e na criatividade literária. O [jornalista] moçambicano Nélson Saúte uma vez contou-me que, quando era colega do Mia Couto, às vezes iam os dois juntos pela rua até ao jornal. E que, pouco depois, o Mia lhe mandava uma coisa e dizia, “Vê lá se gostas disto”. Tinha criado uma ficção em torno de uma cena que ambos tinham visto, mas onde o outro não tinha visto nada.
Está a falar de uma certa forma de olhar.
O Saramago contava que uma vez em Sevilha ia a atravessar a rua em direção à Calle Sierpes, no casco histórico, quando ao longe leu numa revista num quiosque, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Depois, voltou ao quiosque em busca da revista e não encontrou nada. Era uma ideia que lhe tinha surgido. O Saramago tinha jeito para títulos. Há autores que não têm jeito nenhum. A gente tem de tentar dar a volta.
O que é um bom título?
É um título que a gente lê de uma vez só e diz qualquer coisa. A quantidade de coisas que passam pela nossa frente é gigantesca. Se não é uma coisa concreta, precisa, que vale como uma unidade perfeita, passa despercebido.
É o lado de publicitário do editor?
Também tem esse lado. O título é a primeira coisa que as pessoas veem.
Voltando ao início: quando lhe perguntei o que ainda lhe dava ânimo para continuar, começou por dizer que não tinha coragem de acabar a relação…
É isso. Depois, o trabalho de editor é muito variado. Há o sentido da descoberta de uma coisa nova. Isto aconteceu-me com o Saramago, com o Gonçalo M. Tavares, com o Mia Couto.
Nova no sentido de, “Isto não existia antes”?
Isto não existia e passou a existir. Como quem se mete numa caravela e vai descobrir o mundo. Menos perigoso, mas muito excitante. A gente está sempre na expectativa de que as decisões que toma encontrem o eco no público. Não é fácil deixar isto.
Até há pouco tempo, havia algum preconceito em relação à ideia de um livro ser para vender. Que importância tem, na sua opinião, o facto de um livro ser acolhido e procurado pelos leitores?
Além do aspeto de confirmação, o modo de distribuição dos produtos culturais é a venda. A única alternativa seria distribuí-los gratuitamente. A dimensão comercial pode é estar presente de maneira absoluta e, por exemplo, não se considerar publicar o que quer que seja abaixo dos 5000 exemplares. Aqui na Leya isso não acontece.
De quanto são as tiragens mais baixas, 500?
Dos tais livros que têm uma venda regular, mas pequena. Não vamos fazer uma tiragem que fique 20 anos no armazém. Há uns anos, a Leya foi muito atacada por fazer abates de livros. Todos os editores fazem isso. Chega a uma altura em que deixa de haver espaço e percebemos que aqueles livros não vão vender mais. Dar os livros sai caríssimo e, se dissermos às pessoas para os virem buscar, ninguém aparece. É terrível. Por isso é importante acertar no número.
“Não tinha livros nenhuns em casa. O meu pai era camponês. A minha mãe ajudava-o”
Como é que começou esta sua relação tão intensa com os livros? Houve algum momento-chave?
Houve vários. O primeiro, teria eu acabado de entrar na instrução primária, havia em casa do meu avô, em Paredes, uma edição ilustrada de Os Lusíadas. Lembro-me de estar sentado numa das pontas de uma mesa muito comprida a ver as ilustrações. Depois, tentei ler e pensei, “Isto certamente é uma coisa importante. Porque é que o homem não escreve de maneira que se perceba?”. O segundo foram as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, de que fui frequentador assíduo.
Porque não tinha muitos livros em casa?
Não tinha livros nenhuns. O meu pai era camponês. A minha mãe estava em casa e ajudava-o na terra.
Nesse contexto, o que é que o atraiu nos livros?
Não sei, mas lia muito, sempre por iniciativa própria. Até havia uma coisa que me parecia estranha: as pessoas que frequentavam a biblioteca itinerante eram sempre as mesmas e nenhuma fazia parte das minhas relações. Se eu gostava tanto daquilo, por que razão os meus amigos não apareciam também? De quinze em quinze dias, aí por volta das oito e tal da noite, já depois do jantar, a carrinha parava ali no centro, junto ao jardim público. Às vezes era desagradável porque estava a chover e tínhamos de esperar, mas no verão sentia-me tão bem. Acho que nunca li tanto como entre os meus 12 e os 15 anos. Tardes inteiras. Tanto podiam ser livros do Júlio Verne como o Guerra e Paz ou umas coisas estranhas sobre o futuro. O terceiro momento-chave foi quando fui para o Porto.
Estudar Filosofia na Universidade do Porto.
Vinha da província, não sabia nada, e fui dar com um ambiente altamente politizado e com gente que já tinha estado presa por atividade política. Gente que tinha a preocupação de se informar sobre tudo. Aí os livros eram coisas de esquerda e marxistas que nos chegavam sobretudo em francês: Marx, Engels, Lenine. E a gente discutia, passava a vida a discutir.
É o seu despertar político e intelectual?
Às vezes recordo um incidente caricato. Eu frequentava os cafés típicos dos estudantes, o Piolho e o Ceuta. E uma vez, estava a discutir-se a situação da Indonésia, e um diz qualquer coisa como, “E o filha da puta do Suharto!”, e eu fiquei, “Esta malta é bestial!” Aderi ao Partido Comunista em 1964 ou 1965.
É depois disso que entra no mundo editorial.
Em 1969 participei nas eleições como candidato da CDE [Comissão Democrática Eleitoral] no Porto e tornei-me uma pessoa conhecida. No fim das eleições, no mesmo ano em que acabei o curso, o Cruz Santos perguntou-me se eu queria ir fazer um part-time na editora que ele tinha acabado de criar, a Inova. Fazia traduções, textos para as contra-capas, esse género de trabalho.
E percebeu que era aquilo que queria fazer para a vida?
A minha perspetiva era ser professor de filosofia num liceu. Entretanto, trabalhava na Companhia das Águas, a ler os contadores. Quando o trabalho na editora me apareceu, pareceu-me muito bem. Ainda para mais estava ali num estado civil muito particular, à espera que me chamassem para cumprir o serviço militar.
E como é que um militante do Partido Comunista lidava com essa perspectiva?
Quando acabei o curso, o Carlos Costa, que era o dirigente do PCP no norte do país, perguntou-me se admitia a hipótese de ir para a clandestinidade.
Ou seja, trabalhar ativa e clandestinamente para o PCP e por causa disso viver escondido.
Assumir uma identidade falsa, ter reuniões secretas, etc. Achei que ia ser uma chatice, mas que não havia alternativa – tinha de dar o meu contributo para acabar com o regime fascista em que vivíamos.
E o que envolvia essa clandestinidade?
Como estava à espera de ser chamado, deixámos ficar tudo como estava. Assim, teria mais mobilidade e seria mais útil. Continuei a trabalhar para a Companhia das Águas de manhã e para a editora à tarde. Ao mesmo tempo, tinha responsabilidades na chamada mobilização dos democratas: falar com eles, promover abaixo-assinados. Era aquilo a que se chamava uma atividade “semi-legal”.
Quando passa então à clandestinidade?
Em final de 1971, aparece o meu nome para me apresentar em Mafra a 2 de janeiro de 1972. É nessa altura. Não sabia ainda o que ia fazer. A decisão competia ao secretariado, que estava fora do país. Tudo isto demorava tempo. Os contactos eram todos pessoais. Os cuidados conspirativos levados muito a sério. Entretanto, tinha-me casado. A minha mulher da altura, colega da faculdade, também era do partido e concordou em ir comigo.
Então saíram daqui juntos.
Também não. Isto não era simples. No dia 1 de janeiro, saio de casa às seis da manhã com uma mala pequena e uns óculos novos. Tinha uns de massa preta e arranjei estes…
Esses mesmos que tem agora?
Às vezes avariam-se. Quando se partem, tenho de os levar ao ourives.
Têm mais de 50 anos.
Mais de 50 anos. E, portanto, depois de algumas voltas de táxi para me assegurar que não era seguido, encontrei-me com o Edgar Correia, pai do Fernando Medina, antigo presidente da Câmara de Lisboa, e comecei por ir ao apartamento de um militante do partido que não estaria lá, para pintar o cabelo e rapar a barba (já tinha esta barba na altura).
Nunca teve medo?
Medo a gente tem sempre. Depois, voltámos a encontrar-nos para eu ir de autocarro para uma terra chamada Santa Cruz da Trapa perto de São Pedro Sul. Passei lá três semanas, com o pretexto de ter tido uns problemas de saúde e precisar de ar puro, numa pensão tão fria e húmida que quando acordava os cobertores de lã estavam molhados por cima. Tive de sair à pressa porque uma vez apareceu no café um tipo que eu conhecia do Porto. Então, fui para casa de uns camaradas já velhotes que tinham uma moradia em Matosinhos. E aí foi uma maravilha. Não podia sair, mas tinha um jardinzinho bastante protegido e ótimos discos: Beethoven, Bach… Passado um mês voltei para o Porto, para a casa de um jovem casal de militantes em que ela era timorense e que tinham uma filha bebé. Aquilo era horrível, uma semi-cave minúscula, uma coisa muito apertada.
Ao todo, quanto tempo esteve à espera?
Aí em março passei a salto a fronteira, em Vilar Formoso.
Com mais algumas peripécias pelo meio.
Havia uma coisa de que a gente falava, achando que era uma coisa extraordinária, o “aparelho de fronteira” do partido. Estava combinado que iria para Vilar Formoso apanhando um autocarro de Vila Nova de Gaia para Viseu. Em Viseu apanhava outro autocarro para a Guarda. E da Guarda apanhava um táxi para Vilar Formoso. “Quando chegares, na segunda rua à direita, o homem está lá à tua espera.”
E estava.
E estava. Já de noite, tudo escuro. Uma coisa fantástica. Eu já ia avisado de que ele iria querer beber um copo.
Ele sabia que vinha da parte do PCP?
Sabia. Quando chego, ele lá insiste ele para irmos beber um copo. Vamos para a parte de trás de um restaurante, uma espécie de tasco, onde me sinto observado por toda a gente. E de repente aparecem dois homens, um deles com uma farda que eu nunca tinha visto. Cumprimentam-se, o passador diz que eu venho de Leiria, tenho um negócio de recauchutagem e vou a Espanha a um leilão de pneus, uma coisa inventada na hora. Eu pago os copos. E quando voltamos à rua principal, ele diz-me, “estes aqui são da PIDE. A um deles ainda lhe devo um cabrito.”
Como é que uma pessoa se sente no meio disso tudo?
A gente tem de se aguentar. Tinha um passaporte falsificado…
Qual era o seu nome?
António Manuel Amaral de Almeida. Repeti aquilo milhares de vezes, para não me enganar. Lá atravessámos, a pé. Ainda houve uma série de peripécias até conseguir apanhar o comboio que ia de Madrid para San Sebastián e depois chegar a Paris, onde estava a minha mulher, que tinha ido de avião. Encontrei-me com o [Álvaro] Cunhal e estivemos à conversa num café. Nesta altura já sabia que ia para a Rádio Portugal Livre, mas achava que era em Praga. Ele pergunta-me, “Sabes onde é?” “Sei”, respondo, com toda a confiança. Na verdade, era em Bucareste. O PCP levava todos estes cuidados muito a sério.
Como foram os tempos em Bucareste?
Era uma vida muito pequeno-burguesa. Tínhamos um apartamento, íamos trabalhar, levávamos comida de casa. Ainda aprendi romeno, que não é difícil, e li muito em romeno. A mim calhou-me escrever peças sobre as lutas dos trabalhadores, greves, direitos sindicais. A rádio funcionava numa moradia que fazia parte do complexo de um palácio, cercado por um muro. Aqui há três ou quatro anos convenci a minha mulher a voltar lá com a contrapartida de irmos depois ao palácio do Drácula e percebi que se tinha transformado na sede de um partido que suponho que corresponda ao PSD.
E nessa altura o que achou da Roménia [sob domínio do ditador comunista Nicolae Ceausescu]?
Estávamos lá por solidariedade deles. Pagavam-nos um ordenado de jornalista e era um bom ordenado. Sobrava sempre imenso dinheiro. Vivíamos numa espécie de bolha. Muito do que víamos não gostávamos, até dizíamos em jeito de piada, “quando fizermos o socialismo no nosso país – que vamos fazer, sem dúvida – vamos fazer diferente”.
“É muito desagradável ser recusado por uma editora, ainda mais para um homem como o Saramago”
Entretanto dá-se o 25 de Abril, vem para Lisboa e em 1976 integra a Caminho. O objetivo da editora era ser um espécie de braço literário do partido?
A Editorial Caminho tinha sido criada em 1975, para publicar e distribuir um jornal, o Diário. E havia ali uns camaradas que queriam publicar livros. Eu entrei no final de 1976, depois de cumprir o serviço militar nos serviços psicotécnicos do exército, na Avenida de Berna. Para mim foi uma coisa muito boa porque eu detestava a atividade política. Ali o importante era a qualidade literária.
Era possível publicar autores de direita?
Não só fizemos isso, como procurámos fazê-lo. Por exemplo, as obras da Sophia [de Mello Breyner Andresen], em 1991. Não queríamos caracterizar-nos por sermos ou não comunistas. Houve situações em que não publicámos livro de camaradas e eles foram-se queixar ao PCP, sem sucesso nenhum. E, depois, tivemos sorte.
Está a referir-se ao Saramago?
Sim.
Ele aborda a Caminho com uma peça de teatro, depois de a ver recusada por outras editoras. O que o leva a dizer que sim?
Estávamos numa situação difícil: éramos tolerados [pelo partido], as vendas não eram significativas. Fui eu que atendi o telefonema do Saramago. Aquilo era uma peça chamada “A Noite” e passava-se na redação de um jornal. Estávamos em 1979, ele já tinha sido corrido do Diário de Notícias, vivia com dificuldades económicas. As pessoas queriam-no longe. Se poesia vende pouco, teatro não vende nada. Mas a peça tinha qualidade. E ele nesta altura já tinha editado um romance chamado Manual de Pintura e Caligrafia, que era uma coisa diferente e muito interessante. Pensámos que talvez fosse escrever mais e que, se lhe recusássemos a peça, ele nunca mais voltaria. E foi isso que aconteceu. No ano seguinte ele apareceu com o Levantado do Chão.
Mas não foram a primeira escolha.
Ainda tentou uma ou duas editoras.
Enquanto editor não deve ter sido muito agradável saber isso.
Só soube mais tarde, e porque ele mo contou. Ele foi à Caminho levar a peça porque a Caminho era dirigida por uns comunistas que talvez lha publicassem. E não quis levar o Levantado do Chão porque não queria que o seu livro, a que ele atribuía uma enorme importância, fosse conotado com o Partido Comunista e prejudicado por isso. Agora: é muito desagradável ser recusado por uma editora, ainda mais para um homem como o Saramago.
Porquê, “para um homem como o Saramago”?
Ele tinha uma personalidade muito forte e já tinha sido editor. Foi a um sítio, foi a outro, e ambos lhe disseram que não. Não lhe restou outra hipótese se não a Caminho.
E o que é que a Caminho viu no livro?
Fui eu quem leu o livro e fiquei muito impressionado. Nunca tinha visto nada assim. Um texto que é quase cantado. Que temos de o ler a nós próprios, se não é ilegível. E tive a felicidade de entrar imediatamente naquilo. Lembro-me de falar com o Vítor Branco, que tratava das coisas comerciais, e de lhe dizer, “Devemos fazer um esforço especial, porque isto pode ser um êxito.” E foi. De crítica e de vendas. Fizemos 4000 exemplares. Acharam que íamos dar cabo da editora. Um autor de 58 anos. Passados dois anos, surgiu o Memorial do Convento.
Que tipo de relação se criou entre os dois?
Ótima. Houve um primeiro embate por causa dos direitos de autor. Achávamos que não podíamos ir além dos 10% e o Saramago queria 15%, um valor bastante comum na época. Concordámos ficar a meio, nos 12,5%. E daí para a frente foi tudo claro. Tornámo-nos amigos.
E em relação aos tais reparos que um editor faz a um autor, o Saramago aceitava-os?
Não com muita facilidade. Mas ouvia. Ele era muito profissional. Entregava o livro dactilografado e limpo. Lembro-me de uma vez lhe ter dito que achava que A Jangada de Pedra estava escrito ao contrário, com o clímax no início, e de ele, mais tarde, em conversa, ter concordado. Sobre o Caim, disse-lhe que começava de uma maneira magnífica, mas que ele o acabava demasiado depressa, privando-se de fazer um grande romance. Ele não concordou. Acho que, a partir de dada altura, começou a ter pressa, com receio de não conseguir escrever tudo o que queria. Depois, isto são apenas opiniões. E ele exigia-mas. Mandava-me o livro num dia e no dia seguinte ligava a perguntar se já tinha lido.
Era obsessivo?
Era a ideia de que aquele livro é a coisa mais importante que existe. Todos os autores são assim. E se aquilo funciona mal, seja do ponto de vista comercial ou da crítica, sentem que o mundo inteiro os põe em causa. O Saramago era muito emotivo. Aconteceu-lhe chorar a escrever um livro.
Ficou surpreendido quando ele ganhou o Nobel?
Há anos que se falava disso.
Sentiu esse prémio um bocadinho como seu?
Senti-me imensamente feliz: era meu autor, meu amigo. Também sou português. Aliás, o Saramago disse, “crescemos todos uns centímetros”. É provável que ele no ano anterior já tivesse sido considerado de forma séria, mas em 1998 saiu nos EUA o Ensaio Sobre a Cegueira, que teve uma receção excelente. Isso deve ter pesado. O trabalho com o Saramago até ao Nobel e depois do Nobel foi uma espécie de cavalgada heroica. Cada etapa era uma coisa extraordinária.
Depois de todo este passado, em 2014, as herdeiras de Saramago trocam a Caminho pela Porto Editora. À distância de oito anos, ainda é uma coisa dolorosa?
É uma história que ainda me entristece, mas cada vez menos. Decidi fechar esse capítulo. Demiti-me da função de curador da Fundação José Saramago, porque de facto já não sou o editor do Saramago, mas agora estou envolvido nas comemorações do centenário.
Tem falado muito na importância da relação com os autores e neste trabalho como uma coisa pessoal, que mexe com as emoções. Isto que aconteceu pode ser comparado a um abandono, a um filho que se vai embora?
Pois, mas não foi ele. Ele já tinha morrido. Em relação à obra do Saramago também já não havia muito mais a fazer. Estava editada, revista por ele, exceto o princípio de um romance.
“Os autores são bastante carentes. Eu percebo: andam dois, três anos a trabalhar num livro”
Além do Saramago, editou muitos outros nomes importantes da literatura lusófona, incluindo sete Prémios Camões. Olhando para trás, que livros o enchem de orgulho?
Vou falar das coisas que ainda estão na Caminho, porque também há o lado dos que estão ativos mas abandonaram a editora.
Como é que se lida com isso?
Foi um período muito difícil. Coincidiu com a altura em que a Caminho foi comprada pela LeYa. Usaram argumentos, a meu ver, disparatados, mas que eram a convicção deles. Por exemplo, o Mário de Carvalho: tive pena que ele se fosse embora, gosto muito dele como escritor, e acho que fez mal.
Tinha a ver com a convicção de que a Caminho ia deixar de ser a Caminho para passar a fazer parte de uma força capitalista, era isso?
Exatamente. Que os tipos só pensavam em dinheiro.
Não é verdade?
Não.
A Caminho ainda é a Caminho?
É. Aliás, quando compraram a Caminho, disseram, “Queremos comprar a Caminho e queremos que você vá para lá, porque nós queremos essa editora tal como ela é.” Trabalho como trabalhava antes. O método é apenas, entre aspas, mais científico, mas vai dar ao mesmo sítio.
Então, falando nos autores que ainda estão na editora.
Gostei muito de publicar o Gonçalo M. Tavares, embora seja um autor difícil, porque é muito exigente e levanta muitas questões. Os livros que ele publicou aqui são extraordinários. É um exemplo. Autores que acho que vão ser grandes escritores, mas que ainda têm uma obra reduzida: a Patrícia Portela, a Joana Bértholo, o Sandro Junqueira. Também estou muito entusiasmado com a Alexandra Lucas Coelho e com grande expectativa em relação ao novo romance da Isabela Figueiredo, autora de A Gorda, um livro completamente diferente, muito bem conseguido e muito forte. Era preciso pôr aquela história na literatura. Depois os ultramarinos: o Ondjaki, o Mia Couto. Publiquei um livro extraordinário do João Paulo Borges Coelho, chamado Museu da Revolução, que parece um livro do século XIX. Muito bem escrito. Com intriga complexa que se vai desenrolando com toda a simplicidade e clareza. E que no fundo tem esta interrogação moçambicana e universal: o que é feito da Revolução tão bonita que fizemos? Está no museu.
Editou também a Alice Vieira e a coleção Uma Aventura. Um editor dedica-se da mesma maneira ao Memorial do Convento e a Uma Aventura na Escola?
Da mesma maneira. O caso da Alice Vieira aconteceu porque andávamos desesperados à procura de autores infantis e decidimos aproveitar a deixa da ONU, que tinha considerado 1985 o Ano Internacional da Juventude, para criar um concurso. Lembro-me de ler o Rosa Minha Irmã Rosa e achar logo que era uma coisa muito bem escrita. Um dos membros do júri achava que não era um livro para jovens, mas eu insisti. E, tal como com o Saramago e o Levantado do Chão, aquilo foi por ali fora. Com a coleção Uma Aventura, duas senhoras de quem eu nunca tinha ouvido falar, levaram o manuscrito à editora, aliás por intermédio do Saramago.
Como assim?
A Ana [Maria Magalhães] era sobrinha da Isabel da Nóbrega, com quem o Saramago vivia. Num domingo a seguir ao almoço, comecei a ler com grande relutância, na expectativa de ao fim de 10 minutos já ter tomado uma decisão. Passou uma hora e tinha chegado ao fim. “Mas isto não tem uma falha de construção?” Voltei a lê-lo. Nada. Como um filme policial bem feito, em que a gente começa a ver e não descola.
E depois casou-se com uma das autoras, a Ana Maria Magalhães. Como é que isso acontece?
Como acontece com toda a gente. Há um dia em que a gente acorda e já está noutra situação. Há só que efetivá-la. Embora o editor não deva ter relações com os seus autores.
Como é que isso se resolve?
Não é fácil separar. Em casa a gente não discute. Se houver alguma coisa que possa levar a uma discussão, a gente não fala.
Nunca pensou passar a pasta a outra pessoa?
Não, nem elas aceitariam. Que relação é que iam ter com outra pessoa?
Voltamos à relação. É o mais importante?
Se não se tem uma boa relação com os autores, não vale a pena ser editor. Os autores perguntam sempre, “Então o que é que acha?”
São muito carentes?
Bastante. Eu percebo: andam dois, três anos a trabalhar num livro. E depois ficam inseguros. Há um autor que estou a publicar agora que dia sim, dia não, me envia uma nova capa, embora já tenhamos uma capa aprovada e o livro esteja na gráfica.
Fora o trabalho, ainda consegue ter prazer na leitura?
Tenho imensa vontade, mas pouco tempo. O que faço é escolher coisas que se pode ler aos bocados. Agora que tenho ido para o hospital por causa do olho, levo sempre os diários do Stefan Zweig.
Uma grande estrela do seu tempo.
E que está a ser redescoberto, porque viveu os últimos anos do império austro-húngaro, a I Guerra Mundial, a II Guerra Mundial.
É verdade que tem uma grande coleção de autobiografias?
Não é grande. Entre coisas portuguesas e de africanos de expressão portuguesa, estamos a falar de uns 1500 títulos.
Coisa pouca.
Também há algumas correspondências.
O que o atrai na autobiografia?
Interessa-me aquilo que a pessoa diz de si própria. A maior parte das coisas que estão a sair agora têm pouca qualidade.
Assim uma grande autobiografia de que se lembre?
Olhe, uma coisa do João Sarmento Pimentel chamada Memórias do Capitão, que ele escreveu exilado no Brasil. Ele era um militar que nasceu no final do século XIX e participou na Revolução Republicana. Ainda esteve no Norte quando foram as incursões monárquicas. Deixou Portugal depois do 28 de maio e só voltou depois do 25 de Abril. Morreu quase com 100 anos. Quando estava na Inova, o livro estava proibido em Portugal, mas ainda o publiquei. É uma coisa extraordinária, estilo camiliana.
E fora dos livros, há alguma coisa que o entusiasme?
A música. Só que tenho um problema: com música não consigo ler e se eu quiser ouvir os Concertos de Brandenburgo do Bach aquilo é uma hora que não leio.
Quantas horas lê por dia?
Muitas. Começo pelos jornais, em papel: Público, Diário de Notícias e i, mais Expresso ao fim de semana e a Visão, que assino. Às vezes, até tiro notas. Depois, despacho a correspondência, e leio. Mesmo assim falta-me tempo. Chega-me muita coisa. Só ontem foram dois manuscritos.
É tão difícil encontrar novas vozes como se diz?
Há muita coisa mal feita. Chegámos a receber 700 propostas de edição num ano. Depois, há uns que a gente lê e acha que são extraordinários. São raros. Os mais complicados são os assim-assim. Um editor tem sempre medo de deixar passar uma obra-prima.
Já lhe aconteceu?
Que eu saiba, não. Mas admito que possa ter acontecido.
Olhando para o seu percurso, o que é que o jovem Zeferino Coelho, comunista na clandestinidade e depois jovem editor na Caminho, pensaria do Zeferino Coelho atual, premiado, editor de um Nobel, mas que já não está nem na clandestinidade nem numa pequena editora, mas num grande grupo editorial?
Ser-me-ia agradável. Sinto-me realizado.
Surpreendê-lo-ia?
Muito. Tive uma vida bastante banal: nunca me propus nenhum objetivo especial. Foi tudo um bocado fruto das circunstâncias.
Fazendo a pergunta ao contrário: o que diria o Zeferino de agora ao Zeferino daqueles tempos?
O que fizeres, tenta fazer bem feito. Depois, o que tiver de acontecer, acontecerá. Não olhes para trás; olha sempre em frente. Sempre decidi com absoluta determinação. As dúvidas deixo-as para trás.
Tranquilamente?
Com muita determinação. Não acho que seja modo de viver, sempre na dúvida. Tenho dúvidas, mas de outra natureza.
De que natureza?
A vida é complicada. Sobretudo, para uma pessoa que decidiu que o que tinha a fazer era reformar o mundo e anda nisto há não sei quantos anos e parece que a coisa está cada vez mais longe. Portanto, dúvidas há muitas. E temos de viver com elas.