No último debate quinzenal, a 26 de abril, Pedro Passos Coelho acusou António Costa de estar a violar um acordo antigo firmado entre o Governo de José Sócrates e o PSD. Em causa estava a recusa do primeiro-ministro em aceitar os nomes propostos pelo Banco de Portugal e pelo Tribunal de Contas para integrarem o Conselho das Finanças Públicas. No confronto parlamentar de há 15 dias, António Costa recusou-se a “dar satisfações” e a explicar no Parlamento a razão de não ter aceitado os nomes. E defendeu-se com a lei. Mas teria Passos Coelho razão ao dizer que Costa estava a violar o espírito da lei e um acordo com o PSD?
O que está em causa?
O Conselho das Finanças Públicas, liderado por Teodora Cardoso, é composto por cinco membros. Os mandatos de Jurgen von Hagen (vice-presidente) e Rui Baleiras (vogal executivo) terminaram em fevereiro, mas os dois só podem deixar os respetivos cargos depois de encontrados os sucessores. A iniciativa para avançar com o nome dos candidatos é uma competência conjunta do Banco de Portugal e do Tribunal de Contas, mas a nomeação formal depende do Governo.
Apesar de não existir nenhuma confirmação oficial — Governo, Banco de Portugal e Tribunal de Contas nunca comentaram o caso –, as escolhas do governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, e do presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira, recaíram sobre Luís Vitório e Teresa Ter-Minassian, como explicava aqui o Observador.
Desafiado por Passos Coelho a explicar o motivo do “chumbo” dos nomes desta entidade independente, António Costa recusou-se a fazê-lo no Parlamento, sugerindo que só devia explicações ao Banco de Portugal e ao Tribunal de Contas — isto, mesmo perante a insistência do líder social-democrata.
A única informação que o primeiro-ministro adiantou foi que, num primeiro momento, tinha transmitido por “via informal aos dois responsáveis dessas instituições” que os nomes propostos não mereceriam a aprovação do Governo por “não reunirem o perfil para o exercício dessas funções”. Depois, continuou Costa, perante o facto de Teodora Cardoso ter dito publicamente que o Governo não a tinha informado de nada, o líder socialista viu-se “forçado” a “formalizar discretamente” essa recusa.
A discussão surgiu num momento em que os sociais-democratas acusam o Governo socialista de estar a tentar controlar politicamente as entidades independentes que têm apontado críticas e insuficiências ao caminho seguido pelo Executivo de António Costa. À cabeça: o Banco de Portugal liderado por Carlos Costa e o Conselho das Finanças Públicas de Teodora Cardoso, cujas análises, previsões e recomendações têm chocado de frente com o Governo.
Mas terá Pedro Passos Coelho razão quando diz que António Costa está a desrespeitar o acordo desenhado entre o Governo de José Sócrates e o PSD de Passos, em 2010, e que esteve na base da criação do Conselho das Finanças Públicas?
[jwplatform bRsD04HV]
E quais são os factos?
Em 2010, durante a discussão do Orçamento do Estado para 2011, o Governo de José Sócrates e o PSD de Passos Coelho acertaram, como moeda de troca para a viabilização do Orçamento pelos sociais-democratas, a criação um grupo de trabalho para estudar e lançar as bases do Conselho das Finanças Públicas, um órgão que se queria independente. Depois do acordo para o Orçamento assinado por Eduardo Catroga com Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, o PSD assinou outro documento com o Governo para a constituição do grupo de trabalho para se criar um “conselho para a monitorização das contas públicas e política orçamental” — era assim a designação inicial. O segundo acordo foi rubricado por Diogo Leite Campos, que era vice-presidente do PSD. Em ambos os documentos há referências a um “grau de independência adequado” e à “independência técnica”, mas em nenhum dos acordos se faz referência à forma de nomeação dos membros da entidade a criar.
A 6 de abril de 2011, esse grupo de trabalho constituído por António Pinto Barbosa, Teodora Cardoso e João Loureiro, divulgou uma proposta de estatutos onde era claro que a nomeação dos membros não dependia de uma aceitação prévia dos nomes por parte do Governo:
A nomeação dos membros do órgão máximo do Conselho das Finanças Públicas (que é o Conselho Superior) é efetuada, conjuntamente, por duas entidades politicamente independentes, o Banco de Portugal e o Tribunal de Contas.”
Com o pedido de ajuda financeira e a queda do Executivo de José Sócrates quase em simultâneo, o dossiê passou para o Governo seguinte. Como o relatório daquele grupo de trabalho não era vinculativo, o Governo, então já liderado por Pedro Passos Coelho, não tinha de transpor as recomendações vertidas no documento.
Foi precisamente isso que aconteceu. Na proposta de lei que levou ao Parlamento para criar o organismo independente, o Governo PSD/CDS introduziu uma diferença substancial à proposta de estatutos do grupo de trabalho: as nomeações para o Conselho das Finanças Públicas não dependeriam diretamente do Banco de Portugal e do Tribunal de Contas. Segundo o diploma desenhado pelo Governo, estas entidades teriam competências para escolher os nomes, mas seria o Governo a ter a última palavra: nomear ou não nomear.
Durante a discussão da proposta de lei no Parlamento, o grupo parlamentar socialista, então já na oposição, sugeriu uma alteração ao diploma: que fosse o Parlamento, por maioria de dois terços, a escolher os membros do Conselho das Finanças Públicas. O PSD e CDS rejeitaram.
Assim, a lei aprovada pelo Governo PSD/CDS ficou clara:
Os membros do conselho superior são nomeados pelo Conselho de Ministros, sob proposta conjunta do Presidente do Tribunal de Contas e do Governador do Banco de Portugal”.
O diploma foi aprovado a 8 de setembro com votos contra da esquerda, abstenção do PS e votos a favor de PSD e CDS. Paulo Otero, professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito de Lisboa, explica ao Observador que “não é possível obter a nomeação para o CFP sem a aprovação do Conselho de Ministros”. Segundo este especialista, “a iniciativa de apresentar os nomes não pertence ao Conselho de Ministros, mas a nomeação sim”, é competência daquele órgão. E quem tem a iniciativa de sugerir os nomes, o Banco de Portugal e o Tribunal de Contas, “não os pode nomear”.
Conclusão:
A afirmação de Pedro Passos Coelho estava errada em duas partes. Para lá da questão sobre se Costa tem ou não o dever de informar o Parlamento sobre as razões do veto aos nomes — tema que o Observador analisou aqui — a verdade é que, de acordo com os estatutos do Conselho de Finanças Públicas, a decisão de aprovar os nomes propostos por Banco de Portugal e Tribunal de Contas é da responsabilidade do Governo.
Primeiro: nesse debate quinzenal, o líder social-democrata disse que o PS violou um acordo com o PSD. Ora, o acordo entre os dois partidos visava estabelecer um grupo de trabalho para propor a criação daquela entidade independente, como moeda de troca para a aprovação do Orçamento para 2011. Não incidia sobre a forma de nomeação dos membros do organismo que ainda não tinha sido criado. Essa matéria seria tratada já com o Governo de Passos Coelho em funções.
Segundo: Passos Coelho ainda lembrou que, enquanto primeiro-ministro, aceitou as escolhas do Banco de Portugal e do Tribunal de Contas. É verdade. De facto, fê-lo, quando foi o seu Governo a decidir. Mas o líder do PSD foi recuperar, no debate com Costa, a proposta de estatutos do grupo de trabalho sobre o CFP para invocar o espírito da lei e dizer que o seu Governo “aceitou” essa proposta. Ora isso não é verdade. Passos omitiu a alteração que o seu próprio Governo introduziu, ao mudar tanto o espírito como a letra da lei, fazendo a aprovação dos nomes apresentados depender da aceitação do Governo (o grupo de trabalho propunha que a capacidade de nomeação pertencia ao Banco de Portugal e o Tribunal de Contas). Não há, assim, nada na lei que obrigue o Executivo a aceitar os nomes sugeridos, como respondeu António Costa, nem havia qualquer acordo entre o PSD e o PS nesse sentido.