A história vinha do baú e era a seguinte: no ano 2000, a atual líder do Bloco de Esquerda tinha participado como atriz no programa “Zapping”, de Luís Osório, que era transmitido na RTP2. O programa está agora a ser repetido nas madrugadas daquele canal e o próprio Luís Osório, a 14 de maio, escreveu no Facebook que descobrira, o que até então não se recordava, que Catarina Martins tinha participado no seu programa com 27 anos. A revista Sábado, na edição imprensa de 21 de maio, foi recuperar as frases que Catarina Martins tinha alegadamente dito na altura — queixava-se de como era difícil ser atriz “nesta merda de país”, colocava a hipótese de “assaltar bancos” e chamava “bovinos” aos portugueses. É, no entanto, falso: a atriz na imagem não é Catarina Martins.

Seguindo as normais práticas jornalísticas, quando conseguiu confirmar que tinha errado, a revista Sábado pediu desculpa e corrigiu o erro, mas isso não impediu que a informação continuasse a ser partilhada por vários utilizadores do Facebook. Só três dessas publicações foram vistas por mais de 100 mil utilizadores.

Apesar de o artigo da Sábado ter sido corrigido, as publicações são partilhadas ignorando essa correção (mesmo de forma involuntária, acabam por espalhar uma notícia falsa)

É preciso voltar ao início da história para se perceber como uma sucessão de erros se transformou em desinformação viral. A 14 de maio às 17h12, o antigo diretor d’A Capital escreve uma publicação no Facebook em que diz que se esqueceu por “completo da colaboração de uma jovem atriz que, mais tarde, se tornaria uma líder extraordinariamente influente”. E recomenda, ao mesmo tempo que partilha o excerto de um vídeo: “São 16 segundos, mas valem bem a pena“.

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A publicação original de Luís Osório a 14 de maio, que o próprio desmentiria 6 dias depois em nova publicação

No dia 21 de maio, a Sábado publica na sua edição impressa (edição epaper, fechada) uma página com as várias frases alegadamente ditas por Catarina Martins. Algumas das frases citadas na revista as seguintes:

A realidade ‘tá muito negra. O que eu queria falar era sobre ser ator nesta merda de País”

Estou a falar de ser ator, ator, ator a sério, ator que estudou para ser ator e não ator porque aconteceu, conheceu sei lá quem, fez um filme e já é ator, ou um moldelo que tem celulite, já não pode mostrar as pernas e é ator

Não percebo o povo português. Porque é que rumina tanto, porque é que aceita tanto. Parecem bovinos (…) Eu não sou racista, mas macacos me mordam, começo a ver um camone e começo a ter vontade de lhes dar umas estaladas na cara”.

É preciso ser-se doido para continuar aqui como nós continuamos. Mas também se não for isto, macacos me mordam se não vou para aí assaltar bancos e se me apanharem digo que estou a ensaiar”.

No dia em que saiu a edição da revista Sábado, a própria Catarina Martins comentou às 20h58 o post de Luís Osório: “Luís, gostaria muito de ter participado no zapping mas nunca aconteceu. Julgo que é um sketch da Marina Albuquerque.

Comentário da líder do Bloco de Esquerda na publicação de Luís Osório

Catarina Martins estava, como é natural, certa sobre não ter sido ela própria a participar no programa, mas a atriz em causa não era Marina Albuquerque e não se tratava de um sketch, mas de um testemunho não ficcional. É a própria revista Sábado que acaba por esclarecer tudo, a 23 de maio. A 22 de maio, Luís Osório fez um novo post — sem apagar ou alterar o anterior — a retificar a informação e a pedir desculpa pela “grande argolada” que cometeu:

Na semana passada, inadvertidamente, afirmei que Catarina Martins tinha participado no Zapping, programa da minha autoria (já lá vão uns 20 anos). Afirmei-me surpreso na medida que, por estranho que parecesse, não me recordava de ela ter colaborado. Com tantos nomes ilustres esquecera-me do dela. Afinal, pus a pata na poça. A atriz na imagem não é Catarina Martins, mas sim Marina Albuquerque. Falei ontem alguns minutos com a coordenadora do Bloco de Esquerda e ainda nos rimos um bocadinho com a situação… de qualquer maneira peço muitas desculpas à Catarina, que grande argolada a minha.

O momento em que Luís Osório corrige a informação na sua página de Facebook

Nesse mesmo dia, o assessor do Bloco de Esquerda João Curvêlo desmente a informação através do Twitter:

Acaba por ser a própria Sábado a repor a verdade por completo. Após contactar Marina Albuquerque e Catarina Martins havia a suspeita de que a atriz não era Marina Albuquerque, mas a atriz Inês Câmara Pestana. A atriz — que participou em filmes como “Corte de Cabelo” e “Desvio” em meados dos anos 1990, confirmou à Sábado, após ver o vídeo, que era ela a pessoa no vídeo em causa: “Sou eu”.

Quando foi esclarecida, já a história se tinha transformado numa arma de arremesso partidário. Ainda antes da correção da revista Sábado, o partido Chega, através da sua página no Facebook, fez um post a criticar as declarações de Catarina Martins. O partido liderado por André Ventura ataca o “extremismo” da líder bloquista e utiliza como fonte o artigo da revista. O post do Chega foi feito a 23 de maio às 09h28, antes da correção da Sábado às 12h50 do mesmo dia. Ou seja: no momento da publicação a informação ainda não tinha sido corrigida. A publicação não foi, no entanto, atualizada.

Houve outras páginas associadas ao Chega como, por exemplo, a página “Chega Vila Real” que insistiram no tema já após a retificação. A mesma página escreveu que “Catarina Martins até pode não ter dito isto, mas de certeza que pensou. Muitas vezes”.

A publicação do Chega de Vila Real já após a correção da revista Sábado

O fundador e antigo líder do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, reagiu a este mesmo post do Chega de Vila Real para dizer que este é “um maravilhoso exemplo sobre a técnica da mentira”. Reiterou que Catarina Martins nunca disse e “nunca esteve naquele programa” e disse que “o Chega parece o cozinheiro sueco dos Marretas dos anos noventa do século passado: se atirar a panqueca para o teto, ela ficará pronta.”

A publicação do fundador do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, sobre o assunto

Após questionado sobre o assunto, o Bloco de Esquerda fez chegar ao Observador uma nota em que Catarina Martins reitera que nunca esteve presente no programa: “Nunca proferi tais afirmações (…) nunca participei sequer no programa televisivo a que a Sábado se refere“.

Conclusão

Um erro inicial do jornalista Luís Osório no Facebook e, dias depois, um erro da revista Sábado na sua edição impressa — que ambos depois retificaram — levaram à proliferação da informação falsa de que, no ano 2000, Catarina Martins se referiu a Portugal como “este país de merda” e outro tipo de expressões. Na verdade, a líder bloquista não fez aquelas declarações nem nunca esteve naquele programa (o Zapping, na RTP2). A atriz em causa era Inês Câmara Pestana e não Catarina Martins. Apesar disso, nas horas e nos dias seguintes, as frases continuaram a ser falsamente atribuídas por diversos utilizadores à líder bloquista.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: Este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de factchecking com o Facebook e com base na proliferação de partilhas — associadas a reportes de abusos de vários utilizadores — nos últimos dias.

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