Na terça-feira, foi publicado no Facebook um excerto de um vídeo do primeiro-ministro António Costa a fazer uma declaração, no mínimo, estranha: “Disse que é o crescimento que gera emprego, e é verdade, mas o desemprego também gera crescimento e o desemprego, sobretudo, gera uma forma mais sã de sanearmos as nossas contas públicas e é por isso que essa tem de ser, e continuar a ser, uma prioridade fundamental da nossa política económica”. O vídeo, que é acompanhado da legenda “O homem passou-se de vez! Estamos entregues aos bichos“, teve nas 24 horas após a publicação mais de 21 mil visualizações.

A declaração, como se pode ver no vídeo, foi transmitida pela RTP3, em direito do Porto, durante a cerimónia de entrega do prémio Manuel António da Mota. Isso é o que podemos depreender da análise ao vídeo. Apesar de o vídeo não remeter para a data em que foi transmitido, facilmente percebemos que não é de agora — basta olhar para o rodapé da imagem televisiva, no qual são divulgadas informações sobre a realização de vários jogos da Primeira Liga de futebol. Problema: a liga foi suspensa quando começou o estado de emergência devido ao surto da Covid-19, não havendo jogos desde o mês de março.

Publicação no Facebook dá a entender que estas declarações do primeiro-ministro são recentes

Depois, percebemos rapidamente que esta entrega de prémios Manuel António Mota, onde o primeiro-ministro discursou, aconteceu a 3 de dezembro de 2017, há mais de dois anos. Ou seja, em primeiro lugar é importante dizer que, mesmo que António Costa tenha dito que o “desemprego gera crescimento”, não o disse agora, a propósito do aumento do desemprego a que estamos a assistir devido à pandemia da Covid-19 — e que se prevê que venha a aumentar ainda mais, com o decorrer da crise económica associada à paralisia da atividade empresarial.

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Mas António Costa disse mesmo que o desemprego gerava crescimento? Na verdade, disse, mas tudo indica que se tenha tratado de um lapso. Queria dizer “emprego” e não “desemprego”. Notícias dessa altura dão conta disso mesmo: que terá sido uma gafe.

Na altura, embora personalidades da área da direita, PSD e CDS, se tenham indignado com a declaração do primeiro-ministro, dizendo que “se fosse com Passos Coelho, era abertura de telejornais”, como afirmou o deputado social-democrata Duarte Marques, a verdade é que foi unânime de que se tinha tratado de uma gafe. Não faria sentido o primeiro-ministro dizer que “o desemprego (…) tem de ser, e continuar a ser, uma prioridade fundamental da nossa política económica”. Já faria sentido se tivesse dito “o emprego tem de ser, e continuar a ser, uma prioridade fundamental da nossa política económica”.

Ou seja, se substituirmos, na frase, a palavra ‘desemprego’ pela palavra ’emprego’, o que o primeiro-ministro queria dizer era que, sendo verdade que o crescimento gera emprego, também é verdade o inverso — que o emprego gera crescimento e gera, sobretudo, “uma forma mais sã de sanearmos as nossas contas públicas”.

Apesar da indignação de algumas vozes à direita, à esquerda o incidente foi entendido como lapso de língua e ninguém levantou problemas. Em resposta ao jornal i, na altura, o gabinete de Heloísa Apolónia, que era em 2017 deputada dos Verdes, foi o único que comentou o incidente.

“Não conseguimos entender senão como um lapso, porque [os termos] são contraditórios. Nunca o desemprego poderá levar ao desenvolvimento da economia”, além de que “a sustentabilidade da Segurança Social faz-se com o menor número de desempregados”, disse.

Ou seja, não há como aquela frase ter sido dita de outra forma que não assente num lapso de língua. Nem o gabinete do primeiro-ministro nem os restantes partidos, à esquerda, quiseram comentar na altura a gafe de António Costa, desvalorizando dessa forma o incidente.

Mais: se formos ouvir e ler sobre o que António Costa disse no resto do discurso desse dia, durante a atribuição dos prémios Manuel António da Mota, percebemos que o foco do discurso de encerramento da cerimónia foi a ideia de que o Governo deve “continuar a apostar no emprego”, que é “uma grande prioridade” e “seguramente é o maior e mais importante” fator de “coesão social”.

Como se pode ouvir aqui, numa peça da Antena 1 sobre o discurso de António Costa dessa tarde no Palácio da Bolsa, no Porto, António Costa diz que, depois de, nos últimos dois anos, o executivo ter criado mais de 240 mil empregos, o caminho está traçado: “Temos, por isso, boas razões para continuar a apostar no emprego como grande prioridade, porque o emprego é seguramente, e o emprego de qualidade, o maior e mais importante fator de coesão social, de combate à pobreza, e o maior contributo para o nosso desenvolvimento económico e para a sustentabilidade das nossas finanças públicas”, disse.

Erradicar a pobreza e a exclusão social foi outro dos “grandes desafios” que enumerou nesse discurso, com o primeiro-ministro a concluir que Portugal precisa de ultrapassar o “défice de conhecimento”, que é maior do que o défice das finanças.

Conclusão

Dito isto, o vídeo que foi partilhado na semana passada com um excerto da declaração do primeiro-ministro, sem referência à data em que a declaração foi proferida, é, no mínimo, enganador. É verdade que António Costa disse que o “desemprego gera crescimento”, mas tratou-se de uma gafe, como prova o resto do conteúdo do discurso que fez nessa tarde no encerramento dos prémios Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto. Mesmo sendo verdade, a publicação da semana passada não refere nem que se trata de uma declaração antiga, de dezembro de 2017, nem de uma gafe, o que leva os leitores ao engano de forma abusiva. Não é, por isso, verdade que António Costa tenha dito aquela frase neste contexto de pandemia, onde é previsível que o desemprego vá disparar.

De acordo com o sistema de classificação do Observador este conteúdo é:

Enganador 

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

ENGANADOR: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

Nota 2: O Observador faz parte da Aliança CoronaVirusFacts / DatosCoronaVirus, um grupo que junta mais de 100 fact-checkers que combatem a desinformação relacionada com a pandemia da COVID-19. Leia mais sobre esta aliança aqui.

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