Um utilizador publicou no Facebook uma mensagem defendendo que Adolf Hitler “era socialista”. A ideia de que os nazis eram socialistas, que há muito circula nas redes sociais, tem raízes históricas e foi recentemente referida pelo Presidente Jair Bolsonaro e por Ernesto Araújo, ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, durante uma visita a Israel, em 2019. Não é, no entanto, verdade que Hitler fosse socialista. Ao contrário de outros líderes do fascismo, como o italiano Benito Mussolini, o ditador alemão nunca teve uma militância socialista, como explicaram ao Observador o politólogo António Costa Pinto e a historiadora Maria Inácia Rezola. A associação do nazismo ao socialismo é, por isso, “descabida e precipitada”, garantiu a também professora universitária.

A organização partidária que ficaria conhecida como Partido Nazi foi fundada em 1919 por Anton Drexler, um serralheiro de Munique com ideias nacionalistas e antissemitas que, durante a Primeira Guerra Mundial, tinha integrado o Partido da Pátria Alemã de extrema-direita (Drexler não participou no conflito porque foi considerado inapto).

Inicialmente, o Partido Nazi chamava-se Partido dos Trabalhadores Alemães. “Era um movimento contrarrevolucionário consagrado aos princípios do que designavam por ‘nacional-socialismo alemão’ por oposição do bolchevismo russo ou ao ‘marxismo judaico’”, esclareceu a historiadora Maria Inácia Rezola, especializada em história contemporânea. Pouco depois, em 1920, o nome do partido foi alterado para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), mas não foi alterada a sua “essência”. “Note-se que o seu programa foi essencialmente elaborado por Hitler e enunciava grande parte das políticas que virão a ser associadas aos nazis quando assumem o poder em 1933”, apontou a professora na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS).

A publicação que questiona se Hitler seria socialista

O programa em 25 pontos do Partido Nazi, divulgado também no ano de 1920, incluía ideias anticapitalistas e pedia a nacionalização da indústria, o que pode sugerir uma rejeição marxista do mercado livre, como apontou Ronald J. Granieri, diretor do Center for the Study of America and the West, no The Washington Post, mas também aspetos racistas e antissemitas, como a defesa da “raça” alemã, a que nenhum judeu podia pertencer. De modo semelhante, o primeiro programa do fascismo italiano previa nacionalizações e outras medidas geralmente ligadas à esquerda, que foram sendo progressivamente abandonadas por Mussolini. Isso não significa, no entanto, que ambos programas tivessem qualquer laço com o socialismo. No caso do nazismo e de Hitler, Maria Inácia Rezola considerou a associação ao socialismo “descabida e precipitada”.

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Na verdade, nenhum dos dois pode ser considerado como sendo de esquerda ou de direita, uma ideia defendida por Zeev Sternhell, cientista político israelita e sobrevivente do Holocausto e um dos principais especialista nos fenómenos fascistas do século XX. “Zeev Sternhell deu origem inclusivamente a polémicas académicas em França, porque ele desenvolveu um grande estudo sobre os ideólogos iniciais fascistas do início do século XX, sublinhando que eles não eram nem de esquerda nem direita. [A sua ideologia política] era uma superação de um novo modelo ideológico”, afirmou António Costa Pinto, apontando que “é aí que está a raiz desse debate”, juntamente com a ligação de alguns líderes do fascismo a uma militância socialista, que mais tarde abandonaram.

Para o especialista e professor universitário, é importante “distinguir origens ideológicas de regimes políticos”. “E os regimes políticos associados ao nacional-socialismo e ao fascismo italiano não têm como origem política a esquerda ou o marxismo”, frisou. “E quem diz regimes políticos, diz partidos políticos, como o Partido Nacional Socialista [alemão] a caminho da tomada do poder. Mas esse nacionalismo revolucionário dos primeiros fascistas alimenta justamente essa dúvida.”

No caso alemão, duas figuras que contribuíram para a confusão entre nazismo e socialismo foram Otto e Gregor Strasser, membros proeminentes do Partido Nazi com uma origem ligada ao socialismo. E não eram os únicos: “Alguns fundadores do nacional-socialismo alemão, que não Hitler, tiveram uma origem política mais social, nomeadamente alguns reivindicantes do nacional bolchevismo, da união entre nacionalismo e socialismo”, disse o politólogo, frisando que, ao contrário destes, o líder nazi não teve qualquer origem socialista. Mussolini, por exemplo, era dissidente do partido socialista italiano (foi expulso por altura da Primeira Guerra Mundial), uma ligação que Hitler nunca teve, apontou também Maria Inácia Rezola. Além disso, uma vez no poder, o ditador alemão fez questão de afastar os membros mais à esquerda do partido, nomeadamente os Strasser, que tiveram um papel importante na difusão do nazismo. Vale a pena por isso olhar um pouco para a história dos dois irmãos.

Em 1920, Gregor Strasser, oriundo de uma família de classe média da Bavária, juntou-se ao recém formado Partido Nazi. Após o Putsch de Munique (1923), o golpe falhado de Hitler, assumiu um cargo de liderança dentro do partido entretanto ilegalizado. Comunicador dotado, após a libertação de Hitler tornou-se responsável pela secção norte da organização partidária. Foi eleito para a câmara baixa federal e responsável pela expansão do NSDAP fora da Baviera, juntamente com o irmão Otto e Joseph Goebbles, futuro ministro da propaganda, os seus principais aliados.

De acordo com o historiador Michael Ray, o seu discurso de defesa do socialismo e a sua terminologia nacionalista e racista tornaram-no popular junto das classes mais baixas, que procuravam uma saída da grave crise económica que a Alemanha atravessava. Segundo Ronald J. Granieri, foi junto dos habitantes de zonas rurais e pequenas localidades que os nazis conquistaram os primeiros apoiantes. Estas pessoas, geralmente pouco informadas e desconfiadas do que se passava nas grandes cidades, associavam o socialismo e o capitalismo aos judeus e estrangeiros.

Com a economia alemã cada vez mais em queda, no final dos anos 20, Hitler conseguiu o apoio de importantes industriais que defendiam políticas descaradamente antissocialistas. Desiludido com o rumo do partido, que se afastava cada vez mais dos trabalhadores, Otto Strasser desvinculou-se da organização, formando, em 1930, a anticapitalista Schwarze Front. O seu irmão permaneceu ao lado de Hitler, ocupando o lugar de número dois do partido, tanto em posição como em popularidade, mas por pouco tempo — enquanto líder da fação mais à esquerda do Partido Nazi, Gregor Strasser mostrou-se contra a aproximação de Hitler aos grandes empresários, as medidas racistas e antissemitas e a favor de reformas sociais de índole nacionalista. Em 1932, deixou o partido. Apesar da sua popularidade, o líder dos nazis conseguiu evitar demissões em larga escala.

Com a subida de Adolf Hitler ao poder nesse ano (foi nomeado chanceler a 30 de janeiro de 1933, avançando rapidamente para eliminar qualquer oposição), Gregor Strasser perdeu toda a influência. “Caso ainda houvessem dúvidas relativamente ao carácter político da revolução Nazi”, referiu Michael Ray num artigo publicado na enciclopédia Britannica, Hitler ordenou a morte do seu antigo aliado, apagando qualquer eventual traço de socialismo do regime nazi. Gregor Strasser foi assassinado no dia 30 de junho de 1934, durante a Noite das Facas Longas. O seu irmão, Otto, conseguiu fugir, estabelecendo-se no Canadá, onde viveu até aos anos 50, quando regressou à Alemanha. Morreu em Munique, em agosto de 1974.

Os Strasser são um exemplo das perseguições que acompanharam a ascensão dos nazis, que tiveram como principal alvo os judeus, mas também os comunistas. Com a extinção do Partido Comunista e do Partido Social Democrata (SPD), em 1933, muitos membros da esquerda alemã foram detidos, exilados para Praga, na República Checa, ou levados para campos de concentração, onde eram apenas ultrapassados em número pelos judeus. O primeiro campo de concentração nazi, construído nesse mesmo ano em Dachau, foi inicialmente concebido para receber os opositores do regime nazi. Hitler era também crítico dos sociais-democratas que tinham liderado a Alemanha após a Primeira Guerra Mundial e assinado o Tratado de Versailles, que determinou o pagamento de pesadas indemnizações pelos danos causados pelo conflito. Foi este pagamento que causou a ruína económica do país, aproveitada por Hitler para ascender ao poder.

Conclusão

Adolf Hitler não era socialista. Ao contrário de outros líderes do fascismo, como Benito Mussolini, dissidente do partido socialista italiano, o ditador alemão não teve qualquer militância socialista. E apesar de alguns membros-fundadores do Partido Nazi terem tido uma origem próxima do socialismo, a organização partidária não pode ser considerada de esquerda ou de direita, como sugeriu o importante politólogo Zeev Sternhell.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

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FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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